“Se não lemos, achamos que o mundo começa e acaba no nosso umbigo”, entrevista a Inocência Mata
Inocência Mata começou o seu percurso de ensino como professora do secundário, mas por um acaso tornou-se professora universitária. Doutora em Letras, atualmente leciona na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na área de Literaturas, Artes e Culturas. A sua paixão pelas letras vai para além do ensino, estendendo-se nas suas diversas obras como O Papel do Cidadão em Tempos de (Des)Encantos. É nas suas aulas, iniciadas com a máxima “Toda unanimidade é burra”, que Inocência Mata desafia os seus alunos e também a si mesma a expandir as suas perspectivas. A sua habilidade e afeto pelo ensino e partilha do saber são visíveis nesta entrevista, onde, com entusiasmo, desenvolve sobre alguns temas conectados à sua área de estudos.
O que a motivou a seguir a carreira de ensino universitário?
Ser professora universitária foi um acaso. Quando concorri à faculdade, estava a concluir o mestrado e dava aulas no secundário. Eu era professora de português. Não foi uma experiência agradável.
Estou muito contente pela opção que fiz porque ensino literatura, estudos literários e estudos pós-coloniais, que são áreas de grandes questionamentos. Eu não gosto do saber “congelado” ou do saber que não se discute. Não gosto de ideias dogmáticas. Gosto de discutir ideias, considero que existe sempre outra forma de ver o mundo, particularmente na área das humanidades e das ciências sociais, que não são ciências exatas.
Gosto muito de ser professora. Gosto de olhar para os alunos e ver as ideias que põem em causa, as suas próprias ideias. Aprendo muito com os meus alunos, por vezes estou convencida de algo e, quando falo com eles, obrigam-me a olhar para o mesmo objeto a partir de outra perspectiva. Ser professora universitária foi um acaso, mas ser professora não foi um acaso. Eu não sabia professora de quê, mas queria ser professora, porque desejava ter sempre esse contacto e confronto de ideias.
As perguntas que os alunos levantam, a partir do que nós professores fazemos, são perguntas muito interessantes, que nos obrigam a repensar e levam-nos a novos conhecimentos e novas perspectivas. Existem dois tipos de alunos: há o aluno que facilita a vida do professor e não faz perguntas nenhumas e aqueles que fazem perguntas e nos obrigam a pensar. Prefiro os que fazem perguntas, obrigam-nos a ir adiante. A primeira coisa que escrevo nas minhas aulas, sejam de licenciatura, mestrado ou doutoramento, é uma frase de Nelson Rodrigues “Toda a unanimidade é burra”.
Quais pensa que sejam os temas mais tratados na literatura africana e o porquê de estes serem os mais abordados?
Os temas variam muito e dependem do escritor. Em África existe uma tendência para romance político, que é aquele romance que se debruça sobre a atualidade do país, sobre a atualidade local. Não é possível um escritor tematizar a realidade, a atualidade do seu país, sem falar de questões como desigualdades, corrupção, gestão musculada, para não dizer ditatorial, do poder. O exercício do poder como forma de controlo bio-social, questões de cultura, questões relacionadas com a identidade cultural, não uma identidade reificada, mas uma identidade que acompanhe as dinâmicas do mundo moderno, do mundo atual. Estes parecem-me ser os temas transversais.
Depois há outros países… que devido à sua condição, seerá uma escrita sobre a violência da guerra, sobre a violência de género, uma crítica sobre a violência contra o diverso, ou seja, contra outras formas de ser cidadão.
Se lermos um livro portentoso de Pepetela como Predadores, pelo título, diz-nos ao que vamos.
Um romance como Sua Excelência do Corpo Presente, de Pepetela, ao mesmo tempo é uma novidade na arte de narrar, porque é um morto que narra a história, e uma incursão, uma viagem ao âmago do exercício de poder.
Chegamos à conclusão de que o exercício de poder é orgíaco. De tal forma é uma orgia que envolve todos à volta e que, muitas vezes, o aparente detentor absoluto de poder, afinal, não o é. O poder está à sua volta e esse poder distribuído com os que estão à sua volta fazem-no refém do poder.
A questão da condição feminina, a violência de género é muito tratada nas literaturas africanas, não só da África subsaariana, mas também por escritores argelinos e marroquinos. Portanto, em termos de literatura, não faria grande diferença entre a África subsaariana e a outra.
No caso do escritor argelino Yasmina Khadra, a sua romanesca é muito crítica do poder que saiu das independências. Ele é um escritor que olha não apenas para África. O livro Cada Dia é um Milagre, de Khadra, é sobre a condição humana e, ao mesmo tempo, desconstrói as representações do europeu sobre o africano e do africano sobre o europeu.
De que modo a literatura da África Subsariana contribui para a construção de uma identidade africana?
Esta é uma questão que pode ser posta da seguinte forma. Em que medida é que a literatura ajuda a construir uma identidade? A arte questiona as formas fixas de identidade.
Tomemos o exemplo de Portugal, e depois vamos para outros exemplos. Antes de António Lobo Antunes, um dos maiores escritores portugueses, nós não tínhamos uma literatura que questionasse o passado colonial. Quem diz António Lobo Antunes, diz outros escritores como Manuel Alegre, Lídia Jorge, Teolinda Gersão, Dulce Maria Cardoso, Francisco Camacho e José Luís Peixoto. São escritores que trazem para a literatura outras geografias culturais, outras formas de olhar a história, não é? A história que então se conhecia era muito encomiástica da presença de Portugal no mundo.
Os Lusíadas são de 1572, já no século XVI. Convinha que não se olhasse para os Lusíadas como uma celebração acrítica da expansão marítima. Na minha perspectiva, não é isso que Os Lusíadas fazem. Não é uma celebração acrítica da expansão.
Nós estávamos no século XVI, a expansão marítima tinha começado um século antes. Não me parece claro que se celebra a descoberta do caminho marítimo para a Índia, apesar de não ver mal nenhum em celebrar a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Mas Os Lusíadas foram transformados num hino à empresa dos Descobrimentos. E é isso que faz a literatura. Ela tanto constrói imaginários como desconstrói esses imaginários. A literatura tem esse poder de nos pôr a pensar. Quando lemos As Naus de Lobo Antunes, que é um romance em que as personagens têm nomes dos grandes navegadores que são celebrados, personagens horríveis, com uma ética e uma moral muito questionáveis, nós podemos pensar “Afinal, essa empresa da expansão tem muito que se lhe diga!”. Quando lemos romances como Caderno de Memórias Coloniais de Isabela Figueiredo, em que há uma representação terrível do que é um colonialista, nós dizemos: “Afinal, esse colonialismo branco que nos impingem, não é verdade!”.
O colonialismo português foi tão racista quanto com os outros colonialistas. E é isso que a literatura nos obriga, a repensar as narrativas históricas.
Elleke Boehmer (professora de literatura mundial na Universidade de Oxford) diz sobre o que entende como literatura pós-colonial: “a literature which identified itself with the broad movement of resistance to, and transformation of, colonial societies”. Concorda com a sua definição?
Concordo, mas essa é uma afirmação que não nos diz muito. Eu vejo as literaturas pós-coloniais como literaturas que não se limitam a questionar as sociedades coloniais, no tempo da pré-independência e no tempo da independência. Isto é uma literatura pós-colonial. É uma literatura que não funciona em termos de maniqueísmos. Isto é, os maus são os colonialistas, nós somos as vítimas. Não! É uma literatura que questiona as relações internas do poder e isso é que é importante. Tomemos como exemplo a literatura (assumidamente) nacionalista dos países de língua oficial portuguesa, que vai dos anos 40 até os anos 70. Essa literatura não questionava a condição feminina. Era uma literatura entre os colonialistas, eles colonialistas e nós. E dentro de nós não havia relações de poder? Havia relações de poder terríveis e desumanizantes. Esse questionamento só começa depois dos anos 80, portanto, 15 anos depois da independência. Na verdade, a África era um paraíso interno. Quem veio causar distúrbio foram os colonizadores. Isto é verdade! Só não havia nenhum paraíso interno. Como todas as sociedades, as sociedades africanas, pré-coloniais, eram sociedades complexas. Things Fall Apart (Quando Tudo se Desmorona) de Chinua Achebe é precisamente, uma obra interessantíssima que não fala do colonialismo, mas fala de uma sociedade africana tradicional, onde existiam relações de poder, inflexíveis por vezes, como em qualquer sociedade.
Essa ideia que se tem de uma África paradisíaca antes da chegada dos europeus, não é uma ideia verdadeira. O que não quer dizer que os europeus não tenham vindo desestabilizar e destruir as bases das sociedades. Os temas das literaturas pós-coloniais são temas de continuidade das relações coloniais. As literaturas pós-coloniais falam precisamente das relações internas de poder. Essas relações dizem respeito à questão linguística, à questão de género, à questão da orientação sexual, à questão religiosa e à questão social. É preciso ver que as literaturas das antigas potências também são pós-coloniais. Essa nova vaga de escritores afrodescendentes só é precisamente por causa dessa condição pós-colonial. E mesmo escritores brancos, como Lobo Antunes, é uma literatura pós-colonial, é uma literatura que questiona o império. As literaturas pós-coloniais não são literaturas que dizem respeito apenas ao ex-império, são literaturas que também dizem respeito à ex-metrópole.
De que forma considera que a literatura africana auxilia na compreensão da diversidade cultural existente no continente, comparativamente aos media que promovem uma ideia maioritariamente negativa sobre África?
Quando lemos escritores como Telma Tvon, Gisela Casimiro, Kalaf Epalanga ou Kátia Casimiro, lemos escritores africanos que são negros que são portugueses em Portugal e que não sãa africanos. A boa literatura provoca efeito ético. Este é o efeito que após a leitura de uma obra nos obriga a pensar sobre aquela situação, seja ela da condição humana, seja ela de racismo, seja ela de homofobia, seja ela da violência de género, seja ela da condição social, das relações sociais. Esta é a boa literatura, que nos obriga, que após a leitura nos obriga a pensar. Existe uma diferença entre a literatura de entretenimento e a literatura do prazer estético, ou prazer prazer Gnosiológico. Este é um prazer que, para além de nós gostarmos de ler, nos traz conhecimento. Esta é distinção
A primeira vez que eu fui à Colômbia, parecia que já conhecia a Colômbia, por causa do Gabriel García Márquez. É esse conhecimento que a literatura nos traz, essa possibilidade de nós nos imaginarmos em outros lugares. Há duas formas de uma pessoa se deslocar. Numa a pessoa desloca-se geograficamente e noutra a pessoa viaja. Deslocar-se geograficamente significa que não se aprende nada, absolutamente nada. Ao viajar a gente vai acumulando conhecimento. A literatura é como uma viagem. Nós viajamos e vamos acumulando conhecimento. Quando lemos um romance de García Márquez, nós vivemos aquela vida. Quando lemos o romance de Mia Couto, conseguimos entrar na pele daquelas personagens. Quando lemos o romance de Chinua Achebe ou da Chimamanda Ngozi Adichie nós conseguimos viajar. Aprendemos que existem outras formas de viver. Se não lemos, achamos que o mundo começa e acaba no nosso umbigo. Ler é conhecer outros mundos.
Que desafios tem enfrentado enquanto uma professora negra?
Foi muito difícil. E eu só não desisti porque eu tive muito apoio. Continua a ser muito difícil porque, particularmente, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, as pessoas ainda são muito preconceituosas em relação às disciplinas, relacionadas com a África. Acham que são disciplinas menores, matérias menores e que toda a gente pode falar de África. Por exemplo, num concurso há representantes de literatura brasileira, literatura portuguesa, e de estudos africanos não há ninguém. Partem do princípio que é uma área menor. O que é que uma pessoa faz perante isso?
Tem duas hipóteses, ou aceita ou não aceita. Eu como não sou de aceitar, impugno.