Tecer o tempo através das imagens: entrevista com Héla Ammar
Com o título “Telling Time”, a 10ª Edição da Bienal Africana de Fotografia Encontros de Bamako foi inaugurada no último dia 31 de outubro na cidade de Bamako, no Mali. Durante dois meses, até 31 de dezembro, é possível visitar em diferentes espaços da cidade a produção dos 39 artistas reunidos por Bisi Silva em colaboração com os curadores associados Yves Chatap e Antawan Byrd: no Museu Nacional do Mali, no Museu do Distrito, no Memorial Modibo Keïta, no Instituto Francês de Bamako e no espaço público. Depois de uma interrupção de dois anos por conta dos eventos que ocorreram no Mali a partir de 2012, o número de candidaturas de artistas recebidas pela Bienal este ano esteve em torno de 800, na última edição foram 250. Estes números indicam o papel crucial desempenhado pela Bienal no que concerne à visibilidade da produção fotográfica do continente africano e da diáspora. Entre os artistas que contam suas maneiras de experimentar e dar forma ao tempo nesta 10ª Edição dos “Encontros de Bamako” está a artista tunisiana Héla Ammar, que entrevistamos.
Ammar expõe em Bamako a obra intitulada “Tarz”, que significa bordado em árabe, na qual ela mistura fotografias de arquivo a fotografias que ela tirou durante os últimos quatro anos. Através de um processo de envelhecimento das fotos do segundo grupo de imagens, ela dá a todas estas imagens uma homogeneidade temporal que torna quase indiscernível o passado já arquivado pelas instituições oficiais da memória (ou, antes, do esquecimento) do passado recente e muito vivo da história revolucionária da Tunísia. Um bordado em fio de seda vermelho, cor da bandeira nacional tunisiana, religa estas imagens que, isoladamente, não são senão a cristalização de um instante que não necessariamente tem uma relação com o instante cristalizado na fotografia seguinte. Este aspecto lacunar da composição funciona como uma metáfora da aprendizagem da história.
É sobre uma reconstrução a um só tempo poética e política da memória coletiva que “Tarz” se inscreve. A artista nos explicou que “Religando os fragmentos do passado aos do presente, eu quis preencher estes espaços e tecer um campo temporal unificado; o desafio para mim é reconstruir uma memória coletiva arrebentada. O fio vermelho que religa estes fragmentos recoloca o tempo e faz dele o fio condutor. Ele conta o tempo e o transcende. Aqui, ele atravessa um mosaico transgeracional, e se torna símbolo de continuidade e transmissão. Ele se enraíza nos arquivos, reaviva-se na atualidade, institucionaliza-se na bandeira e é realçado na imagem. Ele sutura nossas feridas e unifica o campo arrebentado de nossa memória”.
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Quando e por que as imagens de arquivo ingressaram na sua produção artística?
Foram os eventos que não cessam de abalar meu país desde o 14 de janeiro que me fizeram voltar atrás. A revolução ocorreu para lembrar os valores pelos quais os tunisianos lutaram / lembrá-los, mas também reafirmá-los como se eles tivessem se desfazendo com o tempo. Outros eventos ocorreram para recolocar em questão os próprios fundamentos da república, nosso modo de vida, nossa identidade nacional. São estas grandes mudanças que me fizeram voltar aos arquivos.
Enquanto traços tangíveis do passado, ou enquanto receptáculo da memória, estes arquivos foram para mim um refúgio. É precisamente quando o futuro parece incerto que nos voltamos em direção ao passado. Interrogamos então a memória, seja a coletiva ou a individual, para encontrar respostas não mais apenas sobre o passado mas também sobre o presente e o futuro.
Em Tarz: tisser le temps você borda fotografias de arquivo e fotografias produzidas por você nos últimos quatro anos, estabelecendo uma ligação entre elas através desta delicada costura. Você menciona na apresentação da obra que a revolução tunisiana liberou a imagem da função de propaganda a que a ditadura a tinha restringido até então e que, no contexto revolucionário, a proliferação de novas imagens, documentais, produziu como efeito uma escassez de imagens do passado. Como você pensa os usos políticos das imagens para a escrita da história da Tunísia? Que implicações você vislumbra neste seu gesto de “bordar” uma história a partir de imagens?
A importância da imagem não é mais a de demonstrar, trata-se agora de criar a História. Os políticos compreenderam bem isto ao fazerem da fotografia e do cinema poderosos instrumentos de propaganda. Não é por acaso que seu papel de testemunha crítica tenha sido minimizado em um país como o nosso. A revolução tunisiana permitiu liberar a imagem da função na qual a ditadura a tinha encerrado. Ela tinha inicialmente começado a traduzir a enorme necessidade de imortalizar os momentos únicos da história da Tunísia, para em seguida testemunhar sobre assuntos cuja exploração até então tinha sido interdita. Em quatro anos, a imagem de reportagem ou documental conquistou um lugar de destaque. O que em um certo sentido é uma excelente coisa, na medida em que estas novas imagens constituirão, por sua vez, um verdadeiro arquivo.
É esta nova sede de imagens do instante presente que provocou, em mim, uma fome de imagens do passado. Parafraseando Derrida, eu diria que eu estava “no mal dos arquivos”. Como se esta presença repentina de uma Tunísia em plena efervescência revelasse a ausência de uma Tunísia oculta ou renegada. Foi isto que me deu vontade de voltar às marcas do passado e de religá-las ao presente. Para fazer isto, eu utilizei o bordado porque ele evoca primeiramente o tempo, a paciência ou a abnegação e a precisão. É um trabalho laborioso, que toma tempo. O resultado é frequentemente precioso e delicado. Os materiais utilizados são nobres e frágeis e sua utilização necessita de destreza e precaução. É nesta medida que esta técnica me pareceu ser o meio mais apropriado para falar do longo processo de construção da história da Tunísia. Além disso, eu não faço um relato cronológico, meu trabalho não é o de um historiador ou de um antropólogo. O que eu procurei fazer bordando esta história foi produzir um eco entre o passado e o presente. Uma maneira para mim de me reconciliar com minha própria história.
Em “Tarz” você envelhece as fotografias produzidas por você nos últimos quatro anos, de modo a “igualar” cromaticamente tais fotografias às imagens de arquivos. Gostaria de te ouvir a respeito da temporalidade complexa que emerge deste procedimento. Como pensar as diferenças entre passado recente e passado longínquo e as fronteiras entre memória pessoal e memória coletiva?
Nesta instalação, eu efetivamente misturei fotos de arquivo e fotos recentes que eu fiz em Tunis durante os últimos quatro anos. Eu envelheci as segundas e as alinhei cromaticamente com as fotografias de arquivo a fim de que elas se confundissem entre elas. Então eu as religuei por um bordado em fio de seda vermelho, cor de nossa bandeira nacional. Cada imagem faz referência a uma situação, uma época ou a um fato marcante. Tomadas isoladamente, cada uma constitui um fragmento temporal que não está necessariamente ligado àquele que a precede ou àquele que a sucede. Esta seleção parcial e portanto, lacunar por definição, é uma metáfora da aprendizagem que tivemos de nossa história: temos muitas vezes recebido pequenos pedaços, escolhidos à critério dos regimes políticos que se sucederam.O tempo nos foi contado em pedaços, alguns momentos foram destacados em relação a outros, frequentemente de igual importância. Outros pedaços foram mortos e seus rastros apagados.
Ao religar os fragmentos do passado aos do presente, eu quis preencher estes espaços e tecer um campo temporal unificado; o desafio para mim é reconstruir uma memória coletiva arrebentada. O fio vermelho que religa estes fragmentos recoloca o tempo e faz dele o fio condutor. Ele conta o tempo e o transcende. Aqui, ele atravessa um mosaico transgeracional, e se torna símbolo de continuidade e de transmissão. Ele se enraíza nos arquivos, revive na atualidade, institucionaliza-se na bandeira e é realçado na imagem. Ele sutura nossas feridas e unifica o campo arrebentado de nossa memória. É nesta perspectiva que não há mais fronteiras entre passado e presente, entre memória coletiva e individual. O que é, no entanto, extraordinário, é reencontrar por exemplo os mesmos slogans “liberdade… dignidade… abolição de privilégios” etc entoados dentro de um intervalo de mais de 5o anos. O tempo parece suspenso. O mesmo fervor é palpável quando se trata de lutar por um futuro melhor.
A emergência e popularização de dispositivos digitais portáteis de produção de imagens vem desempenhando um papel importante na criação e compartilhamento de imagens das lutas políticas contemporâneas. Se por um lado estes dispositivos multiplicam as perspectivas sobre os conflitos e viabilizam a circulação de narrativas não-oficiais, o fluxo de imagens que provém daí, de tão volumoso e veloz, pode ter como efeito uma certa banalização dos acontecimentos. As fotografias produzidas por você e envelhecidas em “Tarz” são digitais? Uma materialidade que remeta à fotografia analógica pode instaurar uma outra relação do espectador com a imagem? Como a questão material da produção de imagem é encarada em suas pesquisas?
Todas as fotos que eu utilizei na instalação são fotos digitais, aquelas que eu mesma fiz durante os últimos quatro últimos anos mas também as fotos de arquivo (uma vez que eu as tinha digitalizado). Pensamos por muito tempo que o analógico oferecia uma relação única com o tempo, mas o digital é capaz de oferece esta mesma relação e muitas outras mais, graças às diversas manipulações que ele permite. Poderíamos dizer que envelhecendo estas imagens e alinhando-as com as fotos de arquivo, eu criei um “falso passado”. Mas em realidade, a partir do momento em que a imagem é produzida nós já não estamos no presente, mas em um presente que já é passado. Nisso, digital e analógico coincidem. Quando estas imagens foram feitas, dirigimo-nos inelutavelmente em direção ao futuro para nos questionar o que se passaria depois. É precisamente sobre esta dialética que eu tentei trabalhar ao intervir nestas imagens.
“Tarz” é a palavra, em árabe, para bordado. Chama a atenção, na instalação, uma certa tensão entre as imagens, produzidas tecnicamente, e a maneira artesanal pela qual tais imagens são costuradas. O bordado é supersaturado simbolicamente, associando-se à passagem do tempo, como o subtítulo do trabalho - “tisser le temps” – sintetiza bem, mas também ao feminino, tema que aparece em projetos anteriores (penso em Identités, por exemplo). Como o feminismo te ajuda a repensar as relações entre imagem, arquivo e história política na Tunísia contemporânea?
A trama desta instalação vai do protetorado até a 2ª República. Vemos se sucederem o último Bey de Tunis e os 4 presidentes da república, como encontramos as referências aos eventos de 2011. É nesta medida que ela oferece uma leitura política da História da Tunísia. Mas eu integrei igualmente as imagens que fazem referência à sociedade tunisiana e aos grandes canteiros de obra do Estado em diferentes épocas. A mulher ocupa um lugar de destaque. O papel que ela desempenhou todo o tempo e que ela continua, ainda hoje, a desempenhar marca, na minha opinião, a especificidade da Tunísia. Apresentamos frequentemente seu estatuto privilegiado como obra de Bourguiba, mas eu queria também mencionar que os movimentos feministas já lutavam por sua emancipação bem antes da independência. Encontramos a mulher em todas as frentes; hoje, mais do que nunca, ela permanece o elo forte de nossa sociedade. A mulher não poderia portanto faltar na imagem, seja ela antiga ou contemporânea.
De maneira geral, a imagem feminina é quase onipresente em meu trabalho. Em “Identités”, eu me inspirei na minha condição de mulher na terra do Islã e me coloquei em cena para me interrogar sobre a imagem da mulher e o lugar do corpo feminino. Em uma sociedade como a nossa, sua imagem e sua condição oscilam sempre entre modernidade e arcaísmo, fantasmas e realidade.
As noções de justiça e de direito, centrais para compreendermos sua produção sobre o universo carcerário tunisiano (Counfa e Corridors), parecem estar também presentes em “Tarz”. Isto se dá tanto no sentido de reivindicar o direito de acesso público aos arquivos, quanto no direito à construção de uma memória coletiva que alimente projetos de futuro mais justos. Você concorda com a centralidade destas noções no conjunto da sua obra? Você lança mão deliberadamente de instrumentos teóricos/políticos provenientes de sua formação em direito no desenvolvimento de sua produção artística? De modo mais abrangente, como você pensa as relações entre estética e política?
Eu sempre considerei o ato artístico com um ato político na medida em que o artista apresenta sua própria visão da sociedade na qual ele evolui. É primeiramente nesta medida que uma grande parte de meu trabalho fotográfico trata da condição da mulher na Tunísia. A revolução me forneceu a ocasião para aprofundar estes procedimentos, posicionando-me sobre temas mais delicados como a repressão sob o antigo regime. Eu tive a oportunidade, em 2011, de visitar as prisões tunisianas o que me permitiu testemunhar o estado do universo carcerário e, de modo mais geral, as violações aos direitos dos detentos através de uma série de instalações apresentadas na Bienal Dream City (Tunis, 2012) e através de um livro, “Corridors” que reúne as fotos e os testemunhos dos detentos (Cérès éditions, 2015).
Hoje, a atualidade política tem um peso ainda maior no meu cotidiano. Eu não penso, aliás, ser a única nesta situação; os eventos que vivemos desde os primeiros levantes esvaziaram a intimidade de todos os tunisianos. Esta atualidade, além de seu caráter estritamente político e, portanto, público à priori, não cessa de provocar questionamentos e desafios na escala individual. Cada um de nós procura pontos de referência e é seguramente neste registro que se inscreve este último trabalho. Não se trata, para mim, de repensar a política mas de traduzir, pelo caminho da arte, as várias questões que ela coloca. A percepção que dela resulta não é de natureza estritamente cognitiva, ela inscreve-se primeiramente no sensível. Aqui, a carga evocadora das fotos que eu utilizo ultrapassa a simples descrição. Se a memória ocupa um grande lugar neste trabalho, ela deixa também espaço ao sentimento e ao imaginário. É este mesmo procedimento que eu venho privilegiando no conjunto de meu trabalho. Minha prática interpela todos os sentidos. Ela não oferece resposta mas incita ao questionamento e à reflexão.
Você tem algum novo projeto em mente? Há alguma questão política, ética e/ou estética que te ocupa neste momento e que pode vir a se tornar um novo projeto?
Meus novos projetos situam-se ainda no quadro desta reflexão sobre os desafios da memória. A identidade está frequentemente no centro, a do indivíduo, a de uma coletividade ou a de uma população inteira.
Meu último trabalho, do qual “Tarz” faz parte, apoiou-se sobre uma memória nacional recolocada em questão pelos últimos eventos que sacudiram a Tunísia. Este trabalho constituía na realidade uma afirmação de uma identidade nacional. Mas esta identidade frequentemente apresentada como única, não pode negar a existência das identidades étnicas que a precederam e que a sobrevivem. A história da África nos ensina que a noção de Estado é muito recente e que as fronteira atuais foram traçadas pelas potências coloniais, muitas vezes em detrimento das etnias e das populações migrantes. Frequentemente renegadas, marginalizadas ou simplesmente esquecidas, estas identidades não cessam hoje de serem reafirmadas, às vezes até mesmo à custa de sangue. Um trabalho de memória que se apoie sobre estas identidades anteriores me parece necessário. É apenas sob esta condição que poderemos nos reconciliar com nosso passado e projetar um futuro pacífico em comum. Uma exposição individual sobre este tema está prevista. Se tudo correr bem, ela acontecerá em Tunis na próxima primavera.
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Héla Ammar nasceu em Tunis em 1969. Ela é artista visual e doutora em Direito. Desde 2003, Héla expõe regularmente, individualmente e em coletivas, na Tunísia e no exterior. Suas obras foram apresentadas no MuCem (Marseille, 2015), no 27èmes Instants Vidéo: Festival numérique et poétique (Marseille 2014), no World Nomads (New York City, 2013), Les rencontres photographiques d’Arles (Off, 2013), na Printemps des Arts Fair (Tunis 2012), na The Harassment Exhibition (Darb Center, Cairo 2012), nos Rencontres de Bamako (Mali, 2011), na Dream City (Tunis, 2012 e 2010), na Marrakech Art Fair 2010, na Art Dubai 2008, na Bienal de Barcelona 2007, na Art Paris AbuDhabi, 2007 etc. Suas obras foram igualmente objeto de numerosas publicações nacionais e internacionais.