Vandrea Monteiro. Atriz nas horas vagas.

“Se eu pudesse viver do teatro? Acho que esta é uma das maiores certezas que eu tenho na vida. Mas, infelizmente, em Cabo Verde ainda não nos podemos dar ao luxo de viver da arte”. 

Vandrea MonteiroVandrea Monteiro

São dezasseis anos de muita dedicação. 

No palco, despe-se de Vandrea Monteiro. A adrenalina invade o seu corpo e encara a plateia entre uma e outra fala. Sala cheia. Cheia de expectativas, aplausos e agradecimentos.

Quando as cortinas fecham os olhos abrem. Vandrea lembra que ainda não terminou de organizar a agenda do seu chefe e que ainda falta acertar alguns detalhes de um evento que irá acontecer em breve. 

Jornalista de formação, assessora de comunicação e relações públicas em exercício. Atriz nas horas vagas. 

Vandrea Monteiro tem trinta e quatro anos, formou-se pela Escola Superior de Comunicação de Lisboa. Foram dez anos em Portugal e um em Inglaterra, longe da família, dos amigos e do seu maior sonho, o teatro. Foram anos nos quais, enquanto ia para a faculdade, em dias muito frios, lembrava-se da sua doce infância, das brincadeiras com os meninos do bairro de Bela Vista, em Santiago.

Brincadeiras nada comuns para crianças da sua idade. Com oito, um senhor de quem embora se lembre das feições não recorda o nome, apresentou-lhe, conjuntamente com os seus colegas, o livro “Na boka noti”, traduzido para português “No início da Noite”, e começou a ensinar-lhe a ler em crioulo e a representar o que liam. 

Foi amor à primeira vista. Passou toda a sua infância fascinada pela televisão (desenhos, filmes, novelas) e com tudo que tinha a ver com a arte de representar. 

Com nove anos participou numa peça de teatro da igreja e foi dali que saiu a certeza de que era este o seu grande sonho. Procurou saber se existia algum grupo de teatro na Praia, cidade onde nasceu e cresceu, mas não conseguiu nada. 

Chiquinho - FLADO FLAChiquinho - FLADO FLAChiquinho - FLADO FLAChiquinho - FLADO FLA

Com 18 anos, vê na televisão  a companhia de teatro “Fladu Fla”. Poderia ser uma porta a abrir-se, pensou. 

Embora fosse na altura um grupo amador, em que nenhum dos atores tinha qualquer tipo de formação ou curso na área, seria o primeiro passo para perseguir o sonho de ser atriz. 

Com brilho nos olhos lembra a sua primeira peça, “Profecia de um crioulo”. A sua primeira apresentação em grande escala foi no Mindelact, em setembro de 2006. Mas a alegria de ter representado num festival de teatro onde participam grupos teatrais do mundo todo foi interrompida dois meses depois, quando teve que deixar para trás a paixão pelo teatro para prosseguir os estudos em Portugal. 

Estava a seguir um outro sonho, o de ser jornalista. Ficar não era uma opção, nem para ela e muito menos para a sua mãe que via o teatro como “brincadeira”. 

Fora da sua realidade, do que mais sentia falta para além da família era do teatro. Estava atenta a todos os castings realizados, fosse para televisão ou grupos de teatro, mas sem sucesso. Acredita que a questão racial foi sempre um dos grandes entraves. 

2007, o ano em que tudo mudaria. Perdeu a sua avó, mulher em quem sempre se inspirou e na qual via a figura paterna que nunca teve em vida. Frágil e sem qualquer suporte emocional, recomendaram-lhe ajuda profissional. Uma psicóloga que depois de alguns meses chegou à conclusão que o teatro poderia ser a solução do seu problema. A sua “anjo da guarda”, como se lhe refere entre sorrisos, foi uma das grandes impulsionadoras da sua carreira como atriz. Conseguiu que frequentasse uma escola de teatro e de forma gratuita. Era o seu primeiro contato com o teatro de forma profissional. De regresso a Cabo Verde, nos finais de 2016, encontrou o grupo “Flado Fla” praticamente inativo.

Começou a contactar alguns atores que conhecia enquanto matutava como iria fazer para “ressuscitar” o grupo. Um recomeço árduo, com apenas três atores, mas que com o tempo, o Centro Paroquial que serviu de palco para muitos ensaios, já escasseava de espaço para tanta gente interessada.

“Homem, o eterno prisioneiro”, a peça de estreia na qual Vandrea foi protagonista. Um sucesso. A procura foi tanta que os atores tiveram que representar duas vezes no mesmo dia. 

Mas quis o destino, uma vez mais, que Vandrea abandonasse os palcos. Estava à espera do seu primeiro filho e, devido ao fato das peças que estavam a trabalhar na altura exigirem muito esforço físico, optou por apenas trabalhar os guiões. Mal teve a sua bebé regressou em pleno ao teatro. “Uma vez ouvia a minha filha chorar no backstage enquanto estava a actuar”, recorda. Entre sessões de amamentação e choros que apenas o colo aconchegante de uma mãe poderiam acalmar, Vandrea não desistiu. Numa das apresentações, com a peça “Menos Um”, adaptação do livro Contra Mar e Vento, de Teixeira de Sousa, o Ministro da Cultura convidou o grupo para aquela que seria a primeira apresentação internacional. O destino? Macau e Portugal. 

Homem Eterno Prisioneiro - Fladu FlaHomem Eterno Prisioneiro - Fladu FlaHomem Eterno Prisioneiro - Fladu Fla Homem Eterno Prisioneiro - Fladu Fla

Pisar palcos internacionais não só era um sonho como uma oportunidade para evoluir enquanto atriz e profissional, até porque ela nunca conseguiu separar os dois mundos. Entre organizar eventos, escrever textos, briefings e sem esquecer as inúmeras viagens, mal teve tempo para os ensaios. Nas poucas vezes que acontecem têm de ser aos fins de semanas, à noite ou online. Vê-se muitas vezes entre um gole de café e uma fala. Dormir? Só depois de tudo estar na ponta da língua. 

“A última peça, “Chiquinho” do autor Baltazar Lopes, foi um caos. Estávamos com uma grande responsabilidade em mãos”. Uma obra de referência da literatura lusófona e cabo-verdiana que retrata “a vida no arquipélago na primeira metade do século XX: a ligação à terra e o significado do convívio no seio da família; a descoberta do mundo através das letras; a necessidade de contacto com as ilhas, neste caso, São Vicente, para frequentar o liceu; a emigração como saída para uma vida melhor. Elementos, aguçados pela condição insular, que interferiram de forma decisiva na formatação da identidade do povo das ilhas.” 

Mamãe - Menos Um - Fladu FlaMamãe - Menos Um - Fladu FlaMamãe - Chiquinho - FLADO FLAMamãe - Chiquinho - FLADO FLA

Com seis apresentações e bilheteiras esgotadas, o espetáculo foi resultado de uma parceria entre a Companhia de Teatro Fladu Fla e Chão de Oliva – Companhia de Teatro de Sintra – Portugal. Foram dias intensos durante os quais a sua mente era frequentemente invadida pela pergunta “E se eu pudesse viver do teatro?” “Acho que esta é uma das maiores certezas que eu tenho na vida. Mas infelizmente em Cabo Verde ainda não nos podemos dar ao luxo de viver da arte embora alguns consigam viver da música”. Muitos afirmam que o teatro está no sangue dos cabo-verdianos desde os tempos do povoamento das ilhas, quando se realizavam desfiles, devidamente trajados, como reivindicação da situação política vivida numa altura em que não era permitida qualquer manifestação contra o regime colonialista. 

Atualmente pode-se encontrar o teatro enraizado no Funaná, no Batuque, nos festejos da Tabanca, e não só. Manifestações culturais que são palcos de reprodução da história do povo cabo-verdiano e os seus dramas sociais, sendo instrumentos didáticos e pedagógicos de comunicação. 

Entretanto, os desafios têm sido enormes tanto para as companhias de teatro como para os pequenos atores emergentes, devido à falta de incentivos financeiros e credibilidade à profissão. Queixam-se da ausência de espaços para a realização dos espetáculos e ensaios, da insuficiência de materiais técnicos e escolas para formação de atores e do fato da sociedade ainda ver o teatro apenas como um “hobbie”. A esperança é deste paradigma mudar num futuro próximo e que atuar seja sinónimo de trabalhar. 

Enquanto isso, Vandrea Monteiro vai tentando se adaptar e “conformar-se” em ser atriz só nos finais de semana.

 

Artigo produzido como trabalho final do curso Comunicação Cultural para os PALOP, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, coordenado por Marta Lança (BUALA).

 

por Denise Fernandes
Cara a cara | 14 Fevereiro 2022 | Cabo Verde, carreira, Companhia de Teatro Fladu Fla, teatro, Vandrea Monteiro