Viagens (entre)cruzadas
Interpretar o viajante, na actualidade, decorre de um pensamento multilateral ampliado pela situação geográfica e cultural que existe entre o ponto de partida e o ponto de chegada. A latitude humana que se encontra nas distâncias percorridas entre princípio e fim de um percurso é, para muitos, um agente provocador que resulta num campo de experimentação artística e intelectual, onde a força de espaços inócuos nos leva a partilhas e à construção de conceitos.
Ser deslocado apresenta-se como outra alternativa ao ser viajante. Constrói uma miríade de sentidos, onde se vê a nação à distância e se procura outras formas de viver em estados de permanência.
Em ambos os casos, temos uma condição humana actual, numa sociedade global e globalizante onde as fronteiras humanas e territoriais parecem, em muitos casos, dissipadas.
O artista como – viajante e deslocado – tem uma dupla atitude que importa realçar. Alguns desenvolvem as suas carreiras artísticas aportando em moradas transfronteiriças. Outros constroem relações internacionais, assumindo um lugar como eixo da sua trajectória e invocando o nomadismo como forma de estar. Aqui, poderíamos encontrar uma linha de apresentação de António Alonso. No entanto esta seria inconclusiva e não conduzível. A sua linha é uma viagem permanente – geográfica, social e humana – que ele enuncia e a sua obra consolida.
O artista assume-se como um “Português que nasceu em Angola e não como um angolano que vive em Portugal”. Esta posição politicamente sensível, quando se fala de um país com um passado colonial recente e com sequelas ainda por sarar, provoca, em quem conhece o artista, uma experiência que supera contradições e constrói um diálogo na sua relação com África. Nela, a pertença a um lugar é construída pelas influências que fundaram a sua vida e que vêm edificando todo o seu percurso artístico.
As obras de António Alonso assumem uma força construída de cores explosivas, de formas, de ritmos, esteticamente resolvidos pelas vivências dos espaços que influenciam a sua decisão artística. Interpretá-lo como artista africano, não nos conduz a um verdadeiro discurso semântico da sua arte, porque essa não é a sua órbita. O seu mundo rodeia-se de outras dúvidas e de outras tantas certezas, onde Alonso assume que teve uma infância num outro continente, que esse passado influencia inevitavelmente o processo criativo e que dele brotam interferências representadas nas Áfricas das suas cores assim como na moamba que, com regularidade, compartilha em sua casa.
Num dos encontros que antecederam a construção desta exposição, Alonso descreveu… “esta exposição apresenta diferentes formas que resultam de sensações e de visualizações de um planisfério criado mais ou menos ao acaso…”. E quis a força do acaso que percorresse a América Latina, Cabo Verde, o Japão e Nova Iorque.
Nestes lugares experienciou emotivamente um mundo de sensações, revivendo as suas raízes. Porque as mangas e os abacates não existem apenas em Angola e as passagens pelos trópicos foram, para si, um reencontro com África, influindo na construção de um conjunto de obras que dão corpo ao primeiro núcleo desta exposição.
Ao descer o rio, na pintura Amazonas, as ondulações pictóricas vibram na construção de um percurso espacial constrangido pelos limites de uma superfície de cartão. Esta experiência conduz-nos a outras geometrias, nas vibrações, que aparecem nos Trópicos de Capricórnio. Um conjunto de obras que surge na sequência do seu percurso pela América Latina ensaia a horizontalidade numa construção longitudinal, onde se unem eixos distantes e se ensaiam fórmulas para uma reaproximação a África.
Em Cabo Verde, na esfera crioula, António Alonso passou uma temporada vivendo com os Rabelados. Com a mesma intensidade com que foi abraçado por aquela comunidade construiu, posteriormente, um núcleo de obras desenvolvidas em diferentes suportes, partindo de objectos recolhidos e posteriormente intervencionados, que podemos encontrar em Lavadeiras pintadas e nas Máscaras de lata que dão a ver algumas das faces da sua África.
Um outro núcleo é dedicado à sua recente passagem por Nova Iorque, cidade que à semelhança de outras grandes metrópoles, interpela a acções instantâneas na vivência dos diferentes níveis de uma urbe que nunca pára, nem dorme. Mais uma selva, agora com grandes prédios e amplas janelas. Uma planificação do olhar que originou um conjunto de pinturas, onde mistura vários tipos de linguagens, com figuras que renascem de linhas estéticas do início do seu percurso.
Também neste conjunto se apresenta a intervenção sobre os mapas da cidade, cartografando simbologias nas artérias de uma geografia urbana que ele tenta decifrar.
Já no universo nipónico surge, com particular relevo, a consonância entre percorrer o Japão, onde também vivenciou a grande Tóquio, e a descoberta, com fascínio, de novas soluções técnicas. Entre papéis de arroz, pincéis que soltam a escala e tintas metálicas, traduz uma proposição, que engole horas dedicadas às memórias que permanecem após uma viagem.
Cada viagem funciona como catalisador de energias artísticas, que explodem numa produção frenética e permanente, num atelier redondo, construído por si, no meio rural de Barão de São João, perto de Lagos.
Esta aldeia, curiosamente, é um espaço de viajantes que decidiram ficar. Um ponto de encontro multicultural, decifrado nas diferentes nacionalidades que podemos encontrar em muitos dos momentos de convívio nos espaços públicos e privados da aldeia.
Alonso, tem uma construção artística, ancorada numa posição política descontraída, mas não inocente, que o reporta à globalidade do seu microespaço, sem nunca esconder que a sua África Continental continua por resolver, num desafio, a curto prazo, geográfico e emocional.
Enquanto esse dia não chega, entre viagens e viajantes surgem outras Áfricas, aquelas que se lêem nas entrelinhas desta exposição…
Viagens e outras Áfricas é uma exposição, que teve lugar no Palácio da Galeria em Tavira e que contou com a colaboração do LAC – Laboratório de Actividades Criativas de Lagos. Foi o resultado de um trabalho de um artista que nos últimos anos tem desenvolvido uma intensa produção de pinturas conceptualmente influenciadas pelas sensações e visualizações das suas experiências de viagem.
As obras de António Alonso revelam uma “…força construída de cores explosivas, de formas, de ritmos, esteticamente resolvidos pelas vivências dos espaços que influenciam a sua decisão artística”. O artista assume ainda que ter vivido a sua infância num outro continente influencia o seu processo criativo e que dele brotam interferências representadas nas Áfricas das suas cores.
site da exposição, texto publicado originalmente aqui