Algumas cidades da África contemporânea e os rituais e experiências no bifronte tradição versus modernidade: Cidade do Cabo, Accra, Kigali (muti, haucá, hutu).

A fim de exercer adequadamente sua função, os historiadores precisam de uma capacidade de percepção imaginativa, sem a qual os ossos do passado continuam ressequidos e sem vida. Exercê-la é, e sempre foi, uma tarefa repleta de riscos.

Isaiah Berlim

 

Rastrear historicidades fugidias pode significar o encontro com surpresas inesperadas, com dinâmicas que ocultam, por detrás de seus ruídos, experiências potencializadoras cuja conexão com nossas próprias experiências dialoga intertextualidades do inusitado, revelando-nos mais de nós mesmos do que sua própria e peculiar revelação.

Experiências de rupturas, dessas cuja força extravasa em múltiplos paroxismos, anéis cujo escrúpulo deve ser quebrado se quisermos minimamente tocar a rede de complexidades desse tempo em que convergem, a todo instante, diacronias, sincronias, acronias e anacronias.

Nossos olhares buscam territorialidades ancestrais, alargam experiências de diásporas, transitam por redes que reviram o dentro e o fora, que misturam o eu, o tu, o isto e que logo diluem o eu, o tu, o isto em identidades desfeitas, refeitas, mutáveis, inconclusas, e logo em desidentidades, complexidades (com plexus – “tecer juntos”, com o plexus da alteridade, da outridade, da diferença que aproxima) que se traduzem por encontros, sempre encontros. Finalmente concebemos em nossa medula a impossibilidade de vivermos sós. Nosso corpo necessita de outros corpos e com isso nossa mente se descoloniza, ligeira: eis o imperativo do encontro!

Mas tocar na experiência do encontro é antes de tudo reconhecer historicidades fracassadas de poder, experiências que nunca ficam impunes, que jamais adormecem no silêncio da história. O encontro das diferenças só é possível quando reconhece que o encontro das desigualdades, experiência moderna, confrontou finalmente os seus limites indenes.

LuandaLuanda

Olhar para algumas das cidades da África contemporânea é enfrentar os desdobramentos de sua dilaceração colonial, é atentar para as repercussões que o poder, essa articulação dimensional da dominação, imprime naqueles em que toca. A proporcionalidade da resposta, da interacção, está diretamente ligada à sua efusão. Tais vestígios são sempre contundentes, pois se inscrevem na carne como um pontiagudo arabesco de sangue, pus e baba. Ao desespero de sua emergência contrapõe-se em quase tudo, quase tudo, a racionalidade do poder que o encetou. Restarão fios delicados a nos lembrar que esses outros estão atentos às limitações racionalistas de seus algozes inspirados e que depois serão transpirados como suor, como sangue, como nervos.

Suas respostas não serão caricaturas simplesmente.  Nem será como um martírio que “falarão” suas ações. Esses espetáculos macabros que seguiremos com cautela são muito mais que traduções corrompidas do passado recente africano: são rituais cuja experiência colonial emancipou após a parturiente carnificina de modernidades em fluxogramas geométricos, em riscos concêntricos de bisturis, em desenhos reconhecíveis contornados pelo plasma de todo um continente.

Fausto e Frankeinstein na pele endurecida pela extravagância colonial. Invocam seus antigos senhores nos sinais reconhecíveis de suas passagens, num êmulo travestido, numa entidade incorpórea, num órgão de criança, enfim, onde for possível encontrar esses arremedos de senhores, esses faustos enfiados em suas barbas, esses novos frankeinsteins alcançam, com suas mãos prenhes não de vingança, não, prenhes de história, de uma história impossível de ser esquecida e que não necessita ser elucidada, não precisa de explicação alguma, que jamais será edulcorada por nenhuma cerimônia de seu receituário. Sua vivência será no sangue da experiência que, invocada por seus novos griots-frankeinstein, confere sentido ao que já foi, ao que permanece, ao que muda. 

Frisemos que pela ótica desses corpos históricos, receptáculos do projeto expansionista europeu, as razões da caça ao butim foram narcolepsias (mais que um distúrbio do sono, narcóticos que induzem à catalepsia, a uma primeira morte) preventivas, êxtases da morte, volúpia pelo poder absoluto sobre a vida e a morte de seus anfitriões, inversão de papeis pela vertigem da experiência do poder: de classes perigosas a laboriosos funcionários do poder, emissários apopléticos de uma aristocracia pomposa, eficientes matadores de negros, de árabes, de asiáticos, de muçulmanos, de todos aqueles que tinham na pele a distinção necessária (“selvagens”, “incivilizados”, “brutos”, “exóticos” e sabe-se lá que outras denominações receberam para caracterizar sua “inferioridade”).

life goes on, foto de Mário Macilaulife goes on, foto de Mário Macilau

A brutalidade de todo o processo chama a atenção para um cenário em que a dominação, projeto eurocêntrico tecido nos bastidores do concerto das nações, a ante-sala de Napoleão III, revelada a tempo por Maurice Jolie em seu satírico Diálogos no inferno entre Maquiavel e Montesquieu, essa jóia esquecida em 1864 e que ganhará todo o sentido nos acordos de Berlim, concebe-se como Uroboru, capicúa, geometria circular, cobra perseguindo o próprio rabo. Se resolve um problema social interno resolve igualmente um externo e transforma em lucro o objetivo do processo (muito embora a enorme devastação implementada pela Bélgica no Congo tenha, pela motivação econômica, a capacidade de provocar riso: o marfim era utilizado para a fabricação de teclas de piano, pentes e bolas de bilhar), que é conter o fervor revolucionário europeu.

Em grande medida, a materialização desses fenômenos se deu na prática urbana, na formação das modernas cidades africanas. E só para não nos esquecermos, ouçamos um eco ao menos desse conceito que é, em si, complexidade:

“Sob a aparente desordem da velha cidade existe, onde quer que a velha cidade funcione com sucesso, uma maravilhosa ordem que mantém a segurança das ruas e a liberdade da cidade. É uma ordem complexa. Sua essência é a intimidade do uso da calçada, trazendo consigo uma constante sucessão de olhos. Esta ordem é toda composta de movimento e mudança e, apesar de ser vida, e não arte, podemos fantasiosamente chamá-la de arte da cidade e ligá-la à dança – não uma dança simplista e precisa em que todos pulam ao mesmo tempo, girando em uníssono e agradecendo, fazendo reverências em massa, mas um intricado balé no qual os dançarinos solistas e os conjuntos têm, todos eles, papéis específicos que milagrosamente reforçam-se mutuamente e compõem uma unidade ordenada”[1].

Veremos, contudo, como é paradoxal e imprevisível essa dança!

Tratarei de três fenômenos convergentes em muitos pontos: a utilização de facões pelo poder Hutu em Ruanda e Burundi em 1994, assassinos Muti na África do Sul do pós-apartheid e uma cerimônia de incorporação e possessão na Costa do Ouro, em 1954, protagonizada pelos haouka. Hutu, muti, haouka, serão nossos anfitriões nesta surpreendente jornada pelo mapa de uma outra África que poderia não ter existido jamais.

Percorrer esse caminho inusitado tem como objetivo confrontar nossa sensibilidade, mais que nossa racionalidade; alem disso, captura afasias e liga um continente por fios similares. Mas o mais importante é que opera com simulacros tangíveis: mais que antropófagos, mais que homens-cópia são divindades purificadas, ou, na feliz concepção do direito romano, homo sacer (Agamben, 2002)[2], são como homens sagrados, homens matáveis, que esses novos griots[3] lançam suas vidas no mergulho inebriante da experiência da transformação, sejam eles hutu, muti ou haouká.

Não negam o passado, não reproduzem o passado, vivem o passado de um modo absolutamente constrangedor para nossos olhos de pedra. Portanto já adianto: julgá-los é uma temeridade!

Diálogo, confronto, mutação, o histriônico rompante dos acordes finais que essas sonoridades emitem hão de, espero, patrocinar uma mudança em nossos olhos de pedra, pedra vítrea, endurecida por um complô de imagens de acalanto, de violências sem história, de histórias sem fim de violências, sem as devidas historicidades, que as tornariam visíveis.

Assisto ao filme Hotel Ruanda; de fato, é a primeira vez que me esforcei para entender os massacres que há muito deixaram os noticiários televisivos. Talvez pense que agora posso compreender, a uma distância segura de tempo, muito embora há muito deixei de temer qualquer possibilidade de envolvimento (num passado longínquo me inscrevi para colher café na Nicarágua recém revolucionaria). Quando o filme termina, estou tonto, algo atingiu a base do meu estômago: compreendo que o filme é apenas a ponta do iceberg ruandês. No outro dia tenho em mãos o ótimo livro de Philip Gourevitch, Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias.[4]

Empatia, simpatia, antipatia, apatia, pathos, todo o diagrama destes termos serão sinônimos das enormes sensações que experimentei na leitura voraz da obra jornalística de Gourevitch. Entender a importação de um milhão de facões pelas milícias hutu naquele início do ano de 1994 nos remete, agora o sei, ao mito hamítico, esse prosaico fundamento europeu.

Kigali, RuandaKigali, Ruanda

Facões não são armas de fogo, não são assépticos nem tampouco silenciosos, não admitem distância: facões repercutem gritos, agonia, sofrimento, amputações, lacerações e dor, muita dor. Mas facões implicam numa quantidade enorme de sangue, plasmado como jorro com poucas vítimas e como oceano quando aquilatamos um milhão de mortos. Não são rápidos em sua operosa impostura nem desavisados em sua ruidosa aproximação: algoz e vítima se medem, se estudam, e por pura pedagogia, sabem no que vai dar. Caim avançou sobre Abel com um facão, Caim, o agricultor que teve sua oferenda recusada pelo Criador, sobre Abel, o pastor cujas ovelhas Deus recebeu com um sorriso. Suponho que Abel não sorriu; Deus ainda pode ouvi-lo em sua agonia lenta e final. Caim, lavado pelo despeito, pelo ciúme e agora pelo sangue do irmão, não tentou refugiar-se. Aceitou a condenação de viver eternamente vagando sobre a terra como adequada ao crime impetrado. Baixou a cabeça e pôs-se a caminhar. Tornara-se um homo sacer[5]. Pelo menos era assim que o “bondoso” monsenhor Leon Classe, primeiro bispo de Ruanda e grande defensor da cassação dos direitos civis dos hutu, euforicamente pregava de seu púlpito para uma audiência maciça de tutsi ainda nos anos 1930 (Gourevitch, 2006, p.54)[6].

Eis o mito hamítico: haveria sido introduzida nessa parte da África uma raça descendente do rei Davi, vinda provavelmente do norte, altos, de nariz afilado, criadores de rebanhos, tribo caucasóide de origem etíope, absolutamente distinta dos “negróides nativos”, na comprometida descrição de Speke, “descobridor” do Nilo. In extremis, o mito hamítico remetia à progenitura de Cam[7] e Sem, os filhos de Noé e de Caim e Abel, os filhos de Adão. Na África, ele ganharia status de história.

Difícil saber a história dessa região central da África anterior ao final do século XIX. A construção operada pela força da cultura escrita que demarca a chegada dos europeus em sua busca pela nascente do Nilo impôs-se severamente e refez o passado. Os europeus traziam em sua bagagem o mito hamítico e “viram” uma “imponente raça de reis guerreiros, cercada de rebanhos de longos chifres e uma raça subordinada de camponeses pequenos e escuros, desencavando tubérculos e colhendo bananas. Os homens brancos presumiram que essa era a tradição do lugar e a consideraram um arranjo natural”(Gourevitch, 2006,  p.48).

De fato, entupidos das teorias racistas de Gobineau e quejanos imprimiram ao ignoto sua epistemologia solipsista, já tão arraigada de certezas.

Ainda assim, não deve ter sido fácil construir uma identidade tutsi, aproximando-os do Abel bíblico contraposta a uma identidade hutu, descendentes do maldito Caim. O difícil seria convencer esses povos que não se viam desiguais a vestirem suas novas funções ideológicas.

E até aproximadamente 1959, quando ocorre o primeiro confronto entre tutsi e hutu, todas as arquiteturas dessa nova realidade haviam sido infrutíferas.

“Nada define tão vividamente a partilha quanto o regime belga de trabalhos forçados, que requeria verdadeiros exércitos de hutu para labutar em massa nas plantações, na construção de estradas e na silvicultura, sob as ordens de capatazes tutsi. Décadas depois, um velho tutsi rememorou a ordem colonial belga a um repórter com as palavras: ‘você açoita um hutu ou nós açoitamos você’ (Gourevitch, 2006, p.55-56).”

E isso depois dos belgas terem oficialmente construído identidades étnicas documentais, de seus “cientistas” terem vasculhado com suas ferramentas os corpos das pessoas atrás dos vestígios do mito hamítico. Os 14 por cento de tutsi restante foram obrigados, não sem alguma adesão, a submeterem os 85 por cento hutu a uma humilhante submissão pessoal e coletiva. Eram os mesmos anos 1930 da pregação do pastor Classe: Igreja e Estado Dominador tinham, então, uma estranha convergência de propósitos.

O Estado belga usufruiu bem de sua obra até 1957, quando um grupo de intelectuais lança o manifesto hutu, reivindicando “democracia”. Esse manifesto se colocava fortemente contrário à abolição das identidades étnicas, chamados então de cartões de identidade étnica que, numericamente, daria a vitória para o acesso ao poder pelos hutu.

Em 1º de novembro de 1959, um grupo de ativistas políticos tutsi espancam até a morte um ativista hutu. Até então, nunca houvera registros de violências entre hutu e tutsi, exceto aquelas naturalizadas pelo dominador, a cotidiana e insistente violência da submissão. Estranhamente, quando se aproxima a autonomia de Ruanda, os belgas passam a apoiar os hutu nos confrontos e no seu direito “histórico” de justiçar os tutsi. Haviam criado a dominação bipolar e se fartavam até a derradeira gota de seu espetáculo (laboratório? vitrine? meros expedientes burocráticos?).

Nas palavras de um conhecido agente belga na passagem do poder tutsi ao poder hutu ficam claras as diversas e difusas ironias do poder dominador eurocêntrico:

“Logiest (coronel do exército belga Guy Logiest), que estava virtualmente comandando a revolução, via a si próprio como um campeão da democratização, cuja missão era corrigir o grande equívoco da ordem colonial que ele servia. “Eu me pergunto o que me levava a agir com tanta resolução”, recordaria depois. “Era sem dúvida o anseio de devolver ao povo sua dignidade. E era provavelmente também o desejo de derrotar a arrogância e expor a duplicidade de uma aristocracia basicamente injusta e opressora.” (Gourevitch, 2006, p.59).

Essa aristocracia eram os tutsi. Os opressores haviam sido transmutados e agora podiam ser extintos por uma revolução patrocinada justamente pelos criadores dessa mesma aristocracia. Em 1962, quando finalmente Ruanda conquistava sua independência, os hutu estavam livres para complementar sua obra.

O genocídio do Ruanda fez pelo menos 800 mil vítimas  (Radu Sigheti/Reuters)O genocídio do Ruanda fez pelo menos 800 mil vítimas (Radu Sigheti/Reuters)

Assim como Deus havia sido tolerante com Caim, os belgas haviam relegado aos hutu os anos seguintes para recriarem, a seu jeito, a pitoresca fábula bíblica. 1963, 1973, 1994, pela ação da Frente Patriótica Ruandesa e pelas milícias do poder hutu, mais de um milhão de pessoas foram mortas com facões importados da China. A mesma ação provocou a maior diáspora de toda a África: 3 milhões de ruandeses refugiaram-se em vários países da África central apenas em 1994. Notícias recentes apontam para mais um milhão de mortos nos confrontos de 2004 até hoje[8].

Os massacres começaram em Kigali, a maior cidade de Ruanda e se estenderam em trajetórias randômicas para as comunas de Kibungo, Kanzenze, H’tarama, chegando finalmente a Muyange (antiga Leopold) e Nyamata.

Os historiadores tiveram um papel fundamental nesses massacres:

“Quando Paris tomou conhecimento de que os anglófonos tútsis, deixando a anglófona Uganda, tinham invadido o território francófono de Ruanda, considerou ameaçadas as fronteiras da Francophonie.

As colunas da Frente Patriótica Ruandesa já estavam próximas da capital e o clã e o governo de Habyarimana já tinham as malas prontas, quando pára-quedistas franceses chegaram ao aeroporto de Kigali. Eram apenas duas companhias, mas bastaram. Os tútsis queriam combater o regime de Habyarimana, e não travar guerra contra a França, na qual não teriam a mínima chance. Interromperam, portanto, o avanço sobre a capital, mas permaneceram em Ruanda, ocupando, de forma permanente, os territórios a nordeste do país. Ruanda ficou dividida em duas partes, ambas considerando a situação como temporária, provisória. Habyarimana esperava fortalecer-se para poder expulsar os invasores, enquanto estes aguardavam a retirada dos franceses, com o que a queda do regime do clã Akaz seria questão de dias.

(…) Entre a ofensiva de novembro de 1990 e a carnificina de abril de 1994, passaram-se três anos e meio. Uma violenta discussão irrompe entre os governantes de Ruanda, entre os que desejam fazer um acordo e compor um governo de coalizão (partidários de Habyarimana e membros das forças de ocupação) e o fanático e despótico clã Akaz, comandado por Agathe e seus irmãos. Habyarimana tergiversa, hesita, não sabe o que fazer e passa a ter cada vez menos influência no desenrolar dos acontecimentos. Em pouco tempo, a facção chauvinista do clã Akaz começa a ditar as regras do jogo. O clã tem seus ideólogos, intelectuais, estudiosos e professores de história e de filosofia da universidade de Ruanda, em Butare: Ferdinand Nahimana, Casimir Bazimungu, Leon Mugesira, entre outros. São eles os formuladores da teoria que justifica o genocídio como a única saída para a sobrevivência do clã. A teoria de Nahimana e de seus companheiros reza que os tútsis são simplesmente membros de uma raça que chegou a Ruanda vinda das margens do Nilo, derrotou os habitantes locais – os hutus – e passou a explorá-los, a escravizá-los e a semear a cizânia em seu meio. Os tútsis apropriaram-se de tudo o que era valioso em Ruanda: terras, gado, mercados e, finalmente, o poder. Os hutus passaram à condição de povo derrotado e condenado a viver por séculos na fome, na pobreza e na humilhação. O povo hutu devia recuperar sua identidade e dignidade e ocupar seu espaço entre as nações do mundo.

No entanto, questiona Nahimana em suas incontáveis palestras, artigos e panfletos –, o que nos ensina a história? As experiências são trágicas e nos enchem de profundo pessimismo. Toda a história das relações entre hutus e tútsis é uma interminável sucessão de pogroms e matanças, extermínios mútuos, migrações forçadas e de ódio incontrolável. Ruanda é pequena demais para abrigar dois povos tão diversos e que se odeiam mutuamente. Além do mais, a população de Ruanda tem crescido em proporções assustadoras. Em meados do século XX, era de 2 milhões de habitantes e, agora, cinqüenta anos depois, chega a 9 milhões. Qual é, portanto, a única saída desse círculo maldito, aliás provocado pelos próprios hutus, como admite Mugesira numa autocrítica: “Nós cometemos um erro fatal em 1959, ao permitir que os tútsis fugissem. Devíamos ter agido, tê-los eliminado da face da Terra”. O professor acredita que chegou agora a derradeira chance de corrigir aquele erro. Os tútsis devem voltar à sua terra natal, nos confins do Nilo. Vamos mandá-los para lá, conclama, “vivos ou mortos”. Aos olhos dos sábios de Butare, essa é a única saída, a solução final: alguém tem de desaparecer, deixar de existir para sempre.

Iniciam-se, assim, os preparativos. O Exército, composto de 5 mil homens, é aumentado para 35 mil e reforçado pela guarda presidencial, unidades de elite com armamento caro e moderno; ela é treinada e armada pela França, e também recebe armas da República Sul-Africana e do Egito. Os maiores esforços, porém, dirigem-se à formação de uma organização paramilitar de massa, a Interahamwe (Juntos Atacaremos). É na Interahamwe que milhares de pessoas provenientes dos vilarejos e cidadezinhas, jovens desempregados, camponenes pobres, alunos em idade escolar, estudantes universitários e funcionários públicos, recebem treinamento militar e ideológico.Formam uma imensa multidão, um movimento popular cuja função é promover o apocalipse. Paralelamente, os prefeitos e vice-prefeitos recebem a incumbência de fornecer listas de opositores do regime e de pessoas suspeitas, não confiáveis, descontentes, pessimistas, céticas e liberais. O órgão ideológico do clã Akaz é a revista Kangura, mas o verdadeiro meio de propaganda e de veiculação de ordens para a sociedade, analfabeta na maioria, é a Radio Mille Collines, que, depois, durante o massacre, lançaria, várias vezes por dia, o seguinte apelo: “Morte! Morte! As valas com os corpos dos tútsis ainda não estão cheias. Apressem-se a enchê-las até a borda”.

Em meados de 1993, os demais países africanos forçaram Habyarimana a entrar em entendimento com a Frente Patriótica Ruandesa, cujos membros deveriam fazer parte do governo e do Parlamento, bem como constituir quarenta por cento das Forças Armadas. Mas um compromisso de tal natureza era inaceitável para os membros do clã Akaz. Perderiam o monopólio do poder, e isso era algo que não admitiam. Chegaram então à conclusão de que havia chegado a hora da solução final.

No dia 6 de abril de 1994, “agentes desconhecidos” abateram com tiros de foguete o avião do presidente Habyarimana, que se preparava para pousar no aeroporto de Kigali. Habyarimana retornava de uma viagem ao exterior, desmoralizado por ter firmado um acordo com os inimigos. Era a senha para dar início ao massacre dos opositores ao regima- tútsis, em primeiro lugar, mas também o considerável número de hutus de oposição. O massacre da população indefesa, perpetrado pelo regime, durou três meses, ou seja, até o momento em que as tropas da Frente Patriótica ocuparam todo o país e puseram em fuga os adversários.

Não se sabe ao certo o número de vítimas. Uns falam em meio milhão, outros em 1 milhão. O mais assustador, porém, é o fato de pessoas ainda ontem inocentes terem assassinado pessoas também inocentes, e desnecessariamente, sem motivo. E mesmo que não houvesse sido 1 milhão de vítimas, mas que apenas um inocente tivesse morrido, não seria essa a prova definitiva de que o demônio vive entre nós e que, na primavera de 1994, encontrava-se em Ruanda?

Meio milhão ou 1 milhão de mortos, esse é, certamente, um número trágico. Contudo, se levarmos em conta o extraordinário poder de fogo do Exército de Habyarimana, seus helicópteros, metralhadoras pesadas, artilharia e tanques, o número de vítimas, após três meses de um sistemático tiroteio, poderia ter sido muito maior. Mas não foi. A maioria das vítimas não morreu abatida por tiros e bombas, mas massacrada por armas mais primitivas, como machetes, martelos, lanças e bastões. A intenção dos líderes do regime não era somente atingir o objetivo, a solução final. Para eles, também era importante a forma pela qual esse objetivo devia ser alcançado. Pretendiam que, na busca pelo Ideal Máximo (a eliminação total e definitiva do inimigo), houvesse uma comunhão de culpabilidade entre toda a nação; que através do envolvimento maciço de todos nos crimes, surgisse um sentimento generalizado de culpa que a todos unisse. Assim, cada indivíduo, tendo a morte de alguém na consciência, saberia que, a partir daquele momento, pairaria sobre ele o irrevogável direito de vingança, através do qual ele vislumbraria o espectro de sua própria morte.”[9]

A Europa fez a mesma coisa durante a segunda guerra, basta analisar o número exorbitantemente superior de vítimas civis e a metodologia nazista utilizada para produzí-las. Portanto já havia aprendido o método, que foi também instalado por aqui com a ocupação belga.

Seleciono apenas um dos muitos relatos pronunciados pelos assassinos na esperança de enquadrá-lo no universo da racionalidade urbana ocidental:

“Em 1994, entre as onze horas da segunda-feira 11 de abril e as catorze horas do sábado 14 de maio, cerca de 50 mil tútsis, de uma população de perto de 59 mil, foram massacrados com facões, todos os dias da semana, das nove e meia às dezesseis horas, por milicianos e vizinhos hútus, nas colinas da comuna de Nyamata, em Ruanda.” (Hatzfeld, 2005, 18)

Um outro trecho da fala de um dos “trabalhadores” na carnificina:

“Leopord: Eu era o jovem responsável pelas matanças na célula de Muyange, o que, claro, era novidade para mim. Portanto, levantava-me mais cedo que os vizinhos para cuidar dos preparativos. Tocava o apito para a chamada, apressava o ajuntamento, repreendia os dorminhocos, contava os que estavam faltando, verificava as razões da ausência, distribuía as recomendações. Se fosse o caso de fazer um sermão ou uma declaração, em seguida a uma reunião dos comandantes, eu fazia sem rodeios. E dava o sinal de partida” (Hatzfeld, 2005, 24).

Levantavam-se cedo, tomavam o ônibus e iam para o trabalho. Trabalhavam das 9 hs, 9,30 h, paravam para o almoço e depois continuavam até as 16 hs. Tomavam o ônibus novamente e chegavam exaustos ao lar, tomavam uma Primus e se preparavam para o dia seguinte. Quem poderia estranhar que todo o seu cansaço consistia no esforço para matar ininterruptamente tútsis com seus facões afiados vindos a China?

Alguns anos antes, a África do Sul acordava em meio a um pesadelo. Ressurgiam sinais inequívocos de bruxaria no campo político.

Desde 1985, inúmeras execuções pelo fogo apontavam para o uso de carne humana na composição de remédios, drogas e amuletos Muti (do Zulu, UMUTI, árvore, medicina, remédio). (Faure, 1996, p.481)

Proibida desde o século XIX pelos colonizadores holandeses, persistiu tanto em Lesoto quanto na Suazilândia a prática muti, assassinos feiticeiros que produziam remédios retirados de órgãos humanos para a invencibilidade de seus guerreiros.

Em meados dos anos oitenta, com a crescente atividade de resistência ao regime branco e ao apartheid, volta a ser utilizada pelos guerrilheiros do Inkata. No entanto, eminentemente ambígua, quando começaram a aparecer corpos com sinais reveladores do comércio de poções à base de órgãos humanos, uma polêmica teve que ser rapidamente silenciada. Foram, portanto, imediatamente condenadas como práticas bárbaras. A caça às bruxas que daí adveio foi correspondentemente espetacular em seu cenário de fumo e fogo, de volição e gritos, de euforia chamuscada pelas labaredas e dos signos da modernidade embrutecida e pirotécnica que encetavam.

Os anos 1990 trouxeram para a África do Sul os prosaicos problemas de outros congêneres pós-coloniais: urbanização descontrolada, “psicose do bunker” pela minoria branca, jovens negros que passam rapidamente da rebelião à criminalidade. Tais fenômenos não podem ser dissociados de certa fascinação exercida pelos assassinos muti.

Entre 1989 e 1993, mulheres e crianças, supostamente portadoras de mais essência vital e, segundo os analistas europeus, mais fáceis de serem capturadas, foram vítimas dos crimes muti, sem preferência cultural ou geográfica, revelando toda semana centenas de corpos mutilados.

Em 1990, após a libertação de Mandela, emergem milícias em feroz caça aos criminosos muti, procurando limpar suas comunidades das práticas antigas, “anti-revolucionárias e bárbaras”.

Os pretensos culpados eram imediatamente imolados pelo suplício do pneu inflamado, em grandes e entusiasmadas manifestações coletivas.

Cabe uma questão importante: como distinguir os assassinos muti, deformação (sic) de práticas antigas, dos que alimentam o comércio de órgãos humanos para exportação e dos crimes políticos disfarçados de crimes rituais?

Fenômeno complexo, não está isolado de um crescimento assustador da delinqüência e do suicídio entre os adolescentes negros e do crescimento das seitas satanistas entre os adolescentes brancos.

Ainda aqui, a impunidade das ações de dominação impetradas pelos europeus em sua busca para expandir um modelo ideal de sociedade (ideal mas nem por isso justo), revela uma atitude do sujeito que deve ser submetido. Essa atitude não pode ser simplificada por seus epítetos, nem negligenciada por julgamentos morais. Tais camadas superficiais devem ser retiradas cautelosamente, qual palimpsesto, na esperança de uma explicação mais adequada ao respeito que sujeitos em ação merecem.

Joanesburgo, Africa do SulJoanesburgo, Africa do Sul

Assassinos médicos, órgãos humanos extraídos à revelia, medicamentos que levam à morte seus doadores involuntários, epifenômenos e placebos, títeres e ventríloquos, falas e silêncios constrangedores, este o cenário em que os assassinos muti se movem, na opacidade moderna, exclusivamente. Onde pensamos ver algumas coisas, vemos outras, onde julgamos ouvir um distúrbio, ouvimos alguma sinfonia, onde tateamos a sinestesia dos toques gélidos, tateamos, in locu, a pegajosa e ainda quente textura de um pulmão, de um rim infantil, de um cobiçado fígado humano, tão escasso pelas bandas da civilidade moral do ocidente. No tráfico de órgãos vitalizado para sustentar os afetos e a reprodução das elites globais, nenhuma das partes conserva sua cor. Vemos-nos pelo avesso e literalmente não nos interessamos de onde isso (esse órgão salvador) veio!

Ah! Mas os órgãos humanos extraídos pelos assassinos muti não chegam à Europa, aos Estados Unidos, aos novos Urais mafiosos. Não. São consumidos em remédios psicotrópicos para os jovens guerreiros da crueldade e do desperdício. Estimulam danças ferozes nas noites da periferia da cidade do Cabo da Boa Esperança. As crianças mortas pelos feiticeiros muti não servem ao tráfico, mas são seu contrapelo, seu antagonismo, seu espelho, seu simulacro, seu semblante, seu ídolo.

É significativo esse enfoque. Se há o apelo e o comércio infame, agora de órgãos, não mais de gentes e seus incômodos custeios, e se a África continua a cumprir seu papel de semente nutriz das loucuras dos dominadores de plantão, de cá e de lá, resistir não é ser o que se fora antanho, mas é ser o que se é hoje, a face esgazeada , o olhar fora das órbitas, o fogo de todos os incêndios como auréola dos cabelos, sem ser jamais o que quiseram e ainda queremos que fossem. 

Mas se hutu e muti confundem seus dialetos próprios com a história da interferência das potências coloniais, os haouká serão sua consagração plástica, não pelo eufemismo de sua sonoridade, nem pela luxuriante força que se deixa mostrar no filme, mas sim em sua pressão em nossa genitália, com força suficiente a nos dobrar os joelhos, a nos arremessar no desconforto.

Nos inícios dos anos 1950, Jean Rouch, então um jovem antropólogo francês, desembarcava na Costa do Ouro, atual Gana, levando na bagagem uma sofisticada filmadora de 16 mm para registrar o encontro dos jovens habitantes dos confins da África com as emergentes cidades modernas do continente.

 Accra, Gana Accra, Gana

Em Accra, pode testemunhar a correria dos pedestres em sua disputa com os carros de aparência tão européia, mas que ali, naquele colorido das tardes africanas, pareciam um estranho festival de vaudeville.

De fato, depois dos traficantes de vária origem, depois dos administradores coloniais franceses, depois de tantos burocratas europeus, dos militares ocidentais, da Cruz Vermelha, dos artistas em busca da exótica estamparia plural, chegavam os intelectuais, qual abutres, ansiosos para roer a carcaça exposta da cultura africana.

Dentre tantos intelectuais que acorreram para a África na primeira metade do século XX, Jean Rouch parecia disposto a criar escola. Partindo da premissa de que a pedagogia de toda tragédia tem sempre que encontrar um narrador, Rouch intuiu que a narrativa escrita seria incapaz de descrever tudo aquilo que via. Então resolveu filmar. Tornaria em breve tempo o papa da antropologia visual francesa.

Por uma limitação tecnológica, sua sofisticada câmera não registrava, juntamente com as imagens, o som. A solução foi genial: filmava e depois, em momento mais adequado, “colava” por cima ora sua narração (Os Mestres Loucos) e ora a narrativa dos próprios protagonistas documentados falando de memória (Eu, um negro e Jaguar).

Tudo o fascinava. Os limpadores de fossas, os traficantes do cais, os soldados vestindo sempre vermelho. Embrenhava-se pelos corredores escuros da cidade de Accra farejando a tensão por detrás daqueles sorrisos inquebrantáveis; subia nas carrocerias dos caminhões apinhados de trabalhadores do Níger em busca da história de suas origens, do trânsito de suas rotas, do estranhamento nos olhos arregalados para a cidade.

Muitos haviam sido efendis, o mais alto grau a que um negro africano poderia alcançar nas fileiras dos exércitos coloniais britânicos.

Um dia do eterno verão de 1954, inesperadamente, trombou com um haouká disfarçado de gente. O convite para participar de um ritual de possessão foi tão prosaico quanto assustador. O registro desse ritual é tão impressionante que ainda hoje, meio século depois, sua mensagem reverbera em algum ponto adormecido de nossa psique.

Os Mestres Loucos, nome mais que apropriado, exibe, no entanto, interpretações renovadas. Camada sobre camada, a cada ano podemos testemunhar sua mutação. As imagens, como que por mágica, esgarçam seus limites e revolvem a tela à nossa frente. Sem o querermos, somos tocados pela força energética da possessão, somos sugados de nossa ocidentalidade confortável para aquele terreiro familiar dos arredores de Accra. Somos nós que incorporamos aqueles corpos negros, nós, as entidades comprometidas com todos os crimes de nosso passado eurocêntrico, tributários de nossos ancestrais brancos e europeus e adesistas de seu modelo criminoso. Somos nós os mestres loucos! Uma vez mais nos vemos como num espelho, especulo, ídolo. Pouco importa que não o saibamos disto. Pela magia, o documentário de Jean Rouch operou um caminho inverso: virou a lente e amaldiçoou o mecanismo: filmou as nossas almas culpadas, sombras elétricas diretamente conectadas a nossa conivência e aos benefícios que auferimos com nossos silêncios, com nossas cumplicidades cotidianas.

'Os Mestres Loucos' de Jean Rouch

Análise precoce, ânsia da redenção. É preciso, contudo, descrever o ritual: afastado da cidade, num terreiro cercado por precárias habitações, há um altar inescrupuloso e obsceno. Nele podemos notar pedaços de metais que já foram um dia um motor de caminhão, podemos discernir lápides funerárias, podemos nos surpreender com bonecas de plástico brancas com um só olho de vidro azul. E mais, muito mais. Tudo amalgamado por um monturo de cal branco, aqui e ali calcinado de um fogo antigo, salpicado de sangue velho e restos de carne e penas.  Essas coisas são tão familiares para nossos olhos que parece que nos encontramos em algum ferro velho de qualquer cidade das Américas. O meio do altar lança para o céu uma seta do mais enferrujado aço de engrenagem e placas balançam em seu reflexo[10].

Em táxis e caminhões fretados, chegam os homens ainda sob os primeiros raios da manhã. É fim de semana e não muito distante dali Accra ainda dorme. 

Os homens conversam e se espalham pelo terreiro e arredores, atrás de arbustos, dentro do barracão. Os que ainda não foram iniciados confessarão seus pecados. Só os pecadores podem ser possuídos pelos haouká. Vão até o centro do terreiro três jovens assustados. Dizem alto seus crimes: fornicadores, absenteístas do asseio e da urbanidade, negadores da existência dos haouká. Agora podem também ser homo sacer.

Pouco depois, as entidades começam a se manifestar nos iniciados: o maquinista da ferrovia, o chefe da guarda, a mulher do médico, o governador. Trajando faixas vermelhas como os administradores e soldados coloniais franceses, com seu chapéu característico, uma a uma as entidades incorporam seus “cavalos”. Os olhos reviram-se nas órbitas e uma baba espessa, mais que mero perdigoto, começa a se acumular no queixo, nas faces, no peito. Empertigados, todos demonstram grande nobreza de movimentos, subitamente inflados de um poder histórico e visto então em qualquer cerimônia ocidental pela África ocupada.

Pela narrativa extemporânea de Jean Rouch sabemos o que dizem os haouká: emitem ordens e vociferam funções. Todos querem mandar:

- Façam isto!

- Façam aquilo!

- Ninguém me obedece!

Todos juntos, numa cacofonia de ordens e de interjeições de comando. Reuniões se sucedem no palácio do governo, simbolizado pelo altar do poder acima descrito. Em dado momento, esses poderosos títeres ousam derrubar o mais forte tabu. Alguém trás um cão vivo fortemente preso nos braços.

Para demonstrar todo seu poder, resolvem matar e comer o animal. Reúnem-se uma vez mais no palácio do governo. Devem decidir quem vai matar o cão.

Exasperam-se.

- Ninguém me escuta!

- Ninguém me obedece!

- Estou mandando, estou mandando!

Essa verdadeira confraria de mandantes, de condutores, de chefes, esse ritual em que apenas os poderosos atuam, fervorosamente emitindo ordens entre si, incapazes, portanto, de cumpri-las, assume o apogeu quando o tabu do consumo do cão é devassado.

O sangue jorra na pedra sacrificial, o palácio do governo; os haouká debruçam-se sobre o altar e o bebem, o lambem, lambuzam-se até se fartarem da iguaria proibida, fervor descarado de seu poder absoluto. Depois cozinham o animal em postas e, enfiando a mão no caldeirão fervente, devoram a cabeça, as tripas, os quartos, numa orgia em que todo o êxtase que o poder contém vem à tona.

- Ninguém me escuta! Ninguém me obedece! Estou mandando! Estou mandando!!!!!

Um a um os haouká vão deixando os corpos dos homens, sob o anúncio da noite. Os chapéus coloniais, as faixas vermelhas da distinção do haouká, o olhar desorbitado, a baba misturada com o sangue, tudo vai repentinamente voltando ao normal e desaparecendo da cena. O exorcismo foi tão surpreendente quanto a possessão.

No dia seguinte, Jean Rouch encontra os mesmos homens em seus afazeres diários. Estão irreconhecíveis em sua “normose” (Weil, 2003), esta sim, a doença da normalidade.

Fanon, o psiquiatra, detecta aí uma canalização provisória da verdadeira violência que o colonizado devota ao colonizador e que mais adiante deveria se manifestar como revolução e libertação. Diz ele:

“Em outra vertente, veremos a afetividade do colonizado esgotar-se em danças mais ou menos extáticas. É por isso que um estudo do mundo colonial deve, obrigatoriamente, dedicar-se à compreensão da dança e da possessão. O relaxamento do colonizado é precisamente essa orgia muscular, durante a qual a agressividade mais aguda, a violência mais imediata são canalizadas, transformadas, escamoteadas. E o círculo da dança é um círculo permissivo. Ele protege e autoriza. Em horas fixas, em datas fixas, homens e mulheres se encontram em lugar determinado e, sob o olhar sério da tribo, se lançam numa pantomima de aparência desordenada, mas na verdade muito sistematizada, na qual, por múltiplas vias, denegações da cabeça, curvaturas da coluna, movimento para trás de todo o corpo, decifra-se facilmente o esforço grandioso de uma coletividade para exorcizar-se, libertar-se, expressar-se. Tudo é permitido…nesse círculo. O montículo aonda se subiu como que para ficar mais perto da lua, a margem para onde se deslizou como que para manifestar a equivalência da dança e da ablução, da lavagem, da purificação, são lugares sagrados. Tudo é permitido, pois na realidade, as pessoas só se reúnem para deixar que a libido acumulada, a agressividade impedida, jorrem vulcanicamente. Execuções simbólicas, cavalgadas figurativas, assassinatos múltiplos imaginários, é preciso que tudo isso saia. Os maus humores escorrem, ruidosos como correntes de lava.

Um passo a mais e caímos em plena possessão. Na realidade, são sessões de possessão-despossessão que são organizadas: vampirismo, possessão pelos espíritos, pelos zumbis, por Legba, o Deus ilustre do vudu. Essa desagregação da personalidade, esses desdobramentos, essas dissoluções cumprem uma função econômica primordial na estabilidade do mundo colonizado. Na ida, os homens e as mulheres estavam impacientes, inquietos, com nervos à flor da pele. Na volta, a calma, a paz, a imobilidade voltam à aldeia.

Durante a luta de libertação, veremos um desinteresse singular por essas práticas. Posto contra a parede, com a faca na garganta ou, para ser preciso, o eletrodo nas partes genitais, o colonizado vai ser intimado a não contar mais fábulas para si mesmo”[11].

Um eco das poucas vozes européias que se insurgem (lucidez, cegueira) vem à baila:

“A perspectiva do poder só tem um horizonte: a morte. E tão frequentemente a vida caminha para esse desespero que no fim nele se afoga. Onde quer que a fresca água da vida cotidiana se estagna, os traços do afogado refletem o rosto dos vivos; o positivo, se olharmos bem de perto, mostra-se negativo, o jovem já é velho e aquilo que se constrói atinge a ordem das ruínas. No reino do desespero, a lucidez cega tanto quanto a mentira. Morre-se por não saber, atingido pelas costas. Por outro lado, a consciência da morte que espreita aumenta a tortura e precipita a agonia. O desgaste que freia, que entrava, que proíbe os nossos gestos, corrói mais do que câncer. Mas nada espalha o “câncer” como a consciência clara desse desgaste. Estou convencido de que nada poderia salvar da destruição um homem a quem incansavelmente se fizesse a pergunta: “Reparaste na mão que, com todo o respeito, te mata?”. Avaliar o impacto de cada agressão, estimar neurologicamente o peso de cada coação, seria suficiente para submergir o indivíduo mais forte num único e absorvente sentimento, o sentimento de uma fraqueza atroz e de uma impotência total. A podridão das coações é gerada no fundo da mente, e nada de humano resiste a ela.” (Vaneigem, 2002, p. 57).

Quando acaba o documentário, ainda estou balbuciando, como um ventríloquo:

- Ninguém me escuta! Ninguém me obedece! Estou mandando! Estou mandando!!!

Me dou conta de que sou um dos mestres loucos, um dos haouká que, por uma espécie singular de tubo epocal, foi abduzido pela rodilha humana de um terreiro da Costa do Ouro africana, cinqüenta anos atrás.

- Ninguém me escuta! Ninguém me obedece! Estou mandando! Estou mandando!!!

- … Dèjá Vu, Saravá!!!

 

originalmente publicado na revista Cordis

 


[1] Johnson, Steven. Emergência, a dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares. Rio de Janeiro, Zahar, 2003, p.37.

[2] Homo sacer, são homens que, julgados pela comunidade culpados do crime que cometeram, foram recusados para a morte. Ao tornarem-se sagrados, podem ser mortos por qualquer um sem que este incorra em penalização. São, portanto, homens matáveis, no sentido de que suas mortes são irrelevantes e não nos tocam ou emocionam.

[3] Griots, os narradores da cultura oral de muitos grupos africanos. São observadores dos eventos para depois narrarem aos que não puderam presenciá-los. Memória viva da coletividade, os griots divulgam uma história sempre vivificada, sempre renovada. São mais que narradores, são sujeitos que fazem e se responsabilizam por lembrar a plenitude do sujeito histórico. Estão isentos tanto da amnésia quanto da anestesia, tão características de nossos próprios historiadores.

[4] Edição de bolso da Editora Companhia das Letras de 2006.

[5] Importante notar que Ruanda é o país mais católico da África.

[6] Sem o saber (?) estava decretando a forma com a qual esses mesmos tutsi seriam exterminados num futuro não muito distante.

[7] Segundo as teses jesuíticas do século XVII, Cam, o filho maldito de Noé, não somente reencarna a trágica memória de Caim como dá origem aos negros. Segundo os leitores do século XIX, Cam teria sido o primeiro homem negro. Tal argumento, nos Estados Unidos, teria sido fartamente utilizado para justificar a instituição escravista e a segregação.

[8] Tais digressões podem ser paradigmáticas para repensarmos uma teoria fartamente divulgada quanto à posição relativa ao colonialismo europeu que invade a África, domina, cria fronteiras artificiais para forjar estados nacionais espúrios e quando sai, as etnias “voltam” a se matar. Ora, o genocídio é a mais alta expressão da civilização ocidental em seu ponto máximo de racionalidade. A leitura acima exposta somente garante nossa adesão ao modelo, já que interpretamos que a “barbárie” já existia lá antes da chegada dos europeus e quando estes saem, os bárbaros voltam a se matarem. Ora, a construção das identidades étnicas, ou a ideologia que empoderou os países africanos em sua luta pela independência –outro tempo, outros argumentos – foi construída durante a estadia colonial na África e os massacres posteriores à sua saída são prova desse empoderamento, já que grande partes das lutas tinham por objetivo exterminar grupos inteiros de “ex-iguais”. 

[9] Kapuscinski, Ryszard. Ébano. São Paulo, Cia das letras, 2002, p.199-203.

[10] Esse texto baseia-se na leitura muito pessoal do documentário Os Mestres Loucos, de Jean Rouch.

[11] Fanon, Franz. Os condenados da terra. Juiz de Fora, UFJF, 2005, p.74-5.

por Eduardo Bonzatto
Cidade | 27 Novembro 2010 | cidade em África, colonial, identidade, modernidade