Arquitetura mindelense: um património ameaçado pelo abandono
A viagem começa pelo Fortim Del Rei, um dos lugares onde acedemos a uma das mais belas vistas do Mindelo, numa panorâmica para o Monte Cara e para a Avenida Marginal. Trata-se de um espaço onde restam apenas ruínas de um Forte construído em 1852, guarnecido e partilhado com sete peças de ferro, fundidos em Londres e que serviu de prisão. No espaço, um museu dos vestígios da estrutura, onde se prevê a construção de um complexo turístico. Para tal, as obras estão orçamentadas em 35 milhões de escudos e abrangem uma área de 4 hectares. A estrutura pretende recuperar as ruínas e construir um hotel de 51 suites, 20 apartamentos, restaurante, casino, piscinas e um museu com acervo histórico da ilha. Resta saber se o estado em que as ruínas se encontram suportará a demora no arranque das obras.
Aliás, a transformação de lugares históricos em espaços para turismo — sem contextualizar o que foram esses lugares — não é novidade, nesta cidade prenhe de marcas da passagem de portugueses e de ingleses.
Bem próximo, estamos na Avenida Marginal. Mindelo tem memória da antiga residência do Cônsul inglês John Miller (representante da Companhia Visger & Miller em 1853), lugar que também serviu de consulado, que foi há poucos anos demolido, para ser um hotel que ainda está em construção. Vários foram os planos arquitetados para o espaço, que se prevê ter sido construído na década de sessenta do século XIX, inclusive projetos ligados à cultura e ao cinema. Porém o tempo foi mais impiedoso e o destino encontrado para a estrutura não caiu no agrado de todos – a demolição que não deixa rasto desse passado.
A Avenida tem muitas histórias que fizeram a cidade nascer e crescer. Um dos sítios históricos que conseguiu resistir ao tempo e às políticas de substituição do velho pelo novo, é a antiga Alfândega. Igualmente construída no século XIX, a partir dos anos de 1958 foi de imensa importância para o comércio na ilha. Ao longo do tempo foi repartição dos correios, da Fazenda e Instituto dos Seguros e Notariados. Há quase trinta anos que ali é a sedo do Centro Cultural do Mindelo. Além dos portões enormes, guarda ainda outras memórias do passado na sua estrutura e no seu interior. Por ali passam exposições de diferentes artes. Onde os artesãos, os artistas e criativos mostram o seu trabalho a um público abrangente. É palco de um dos maiores festivais de teatro de África, o Mindelact, que traz a Mindelo grupos de várias partes do mundo.
O edifício do “Liceu Velho”, como é denominado, já serviu de quartel militar, Liceu Nacional Infante D. Henrique, Repartição dos Correios e Telégrafos, Liceu Gil Eanes, Escola Preparatória Jorge Barbosa, Delegação do Ministério da Educação e atualmente pertence à Universidade de Cabo Verde. Por ali passaram diversas personalidades cabo-verdianas e destaca-se ainda o surgimento de alguns movimentos, designadamente sociais, literários e culturais. Foi construído em meados do século XIX e depois de muito tempo com a estrutura quase condenada, passou por algumas obras de restauro, para que pudesse servir a todo vapor. Em termos arquictetónicos, exibe elementos oitocentistas com vãos de arco perfeito, emoldurando um conjunto de quatro janelas com desenho tripartido.
Também a arquitetura do antigo Cartório, localizado na rua 5 de Julho, que depois de muito tempo de abandono, está ainda em obras. Bem em frente do Liceu, encontra-se o Palácio do Povo que, à semelhança de tantos edifícios históricos da cidade do Mindelo, ficou entregue ao labor do tempo e lenta degradação. Foi construído na mesma altura que o Liceu, para ser o Palacete do Governo, ou a Casa do Estado Maior, daí o seu estilo mais clássico. Diz-se que foi das primeiras obras públicas portuguesas e seria a instalação do poder na transferência da capital da Praia para São Vicente. Já esteve fechado, já foi Tribunal e hoje, como o Palácio do Povo, encontra-se totalmente remodelado e recuperado e neste momento acolhe duas exposições: o Akuaba e outra ligada à Cesária Évora.
Outro local muito turístico e recuperado é o Mercado Municipal, arquitetura que lembra o tempo colonial, situado no coração da rua mais emblemática do Mindelo, que oficialmente é a Rua Libertadores de África mas popularmente conhecida como Rua de Lisboa. O início da sua construção ocorreu em 1930 e hoje é um dos pontos que atrai muitos turistas, famoso pelo seu estado de conservação, colorido no interior pelas verduras que ali se vende, estar sempre limpo.
Passando pela Praça Don Luís, onde antes eram os armazéns de carvão, mergulha-se nas memória das tascas, dos bares e botecos, das Rua de Praia, Rua de Matigin e as adjacentes que contam a história da cidade dos tempos do carvão e do “caizim” . No meio da azáfama da Rua de Praia, do movimento das vendedoras ambulantes, rabidantes, dos pescadores e aposentados que descansam jogando “uril”, da vida que ainda acontece naquela rua colorida, encontra-se a Réplica da Torre de Belém. Do século XX, construído em 1920, com traços da arquitetura manuelino, entre outros papéis já serviu à capitania dos Portos e hoje é o Museu do Mar.
Não se pode esquecer o famoso cinema Éden Park, cuja arquitetura vai da Art Decorativa passando pela arte Moderna, e que foi deixado por muito tempo entregue ao abandono. No seu auge, era uma montra do cinema do mundo para Cabo Verde. Inspirou a juventude para esta arte, para o teatro, música, artes marciais, entre outros conteúdos que apresentava ao publico mindelense. Foi inaugurado em meados do século XX e foi considerado um dos patrimónios mais importantes da ilha.
A antiga rádio Barlavento, hoje edifício do Centro Nacional de Arte Artesanato e Design, foi casa do Senador Vera-Cruz que cedeu o espaço para servir de primeiro liceu da ilha de São Vicente. Este edifício, contruído em finais do seculo XIX, data de 1890, foi um espaço importante na ilha, tendo sido ainda um clube da elite mindelense, foi quartel militar e enquanto radio, nos anos 50, gravou grandes nomes da música e cultura cabo-verdiana e foi uma polifonia de voz de São Vicente para fora. Hoje é o Centro Nacional de Artesanato e está a ser ampliado, pelas partes traseiras do edifício, pelo Ministério da Cultura
O edifício onde funcionam a Alliance Française e a Biblioteca Municipal foi contruído em 1858 e, entre outros atributos, foi residência do primeiro presidente da comissão Municipal do Mindelo, Correios, Capitania dos Portos e escritório de uma empresa de carvão Companhia de São Vicente Cabo Verde.
Poderia falar de casos de sucesso como do edifício da Câmara Municipal de São Vicente, contruído da década de setenta do seculo XIX, da igreja de Nossa senhora da Luz, cujas obras foram concluídas em 1863, do antigo telegrafo, contruído em finais do seculo XIX.
Mas também de casos de fracasso, que tiveram que ser derrubados os edifícios para darem origem a novos empreendimentos. Falo da Casa dos Doutores, onde hoje é a Delegacia de Saúde da ilha e de muitos outros espaços que carecem de atenção como o antigo albergue da Ribeirinha que esteve até o ano passado abandonado e que apesar das suas condições de degradação, ano passado a Escola Salesiana do Mindelo apresentou um projeto de transformar o edifício num oratório com valências educativas, formativas e humanas.
O estado de muitos edifícios em São Vicente, mostra o valor que as diferentes cores políticas deram para a história da ilha e do país. Cada um conta uma fase da história desta ilha e a sua conservação poderá perpetuar para as gerações futuras, ou mesmo para o turismo, passagens importantes de São Vicente. Poder estudar no edifício, onde, por exemplo, o revolucionário Amílcar Cabral também estudou é uma mais valia pela conservação do património.
Assim como de diversas de outras residências cujo valor patrimonial e arquitetónico vai-se perdendo ao longo dos anos e interfere na imagem da cidade.
Na ilha de São Vicente há muita história arquitetónica e a história que os lugares contam, por explorar, descrever e defender, porém a falta de manutenção faz com que determinadas estruturas percam de forma total ou parcial o seu valor material e histórico. As razões mais frequentes deste grande problema consistem no abandono público e nos processos de herança.
Poder-se-ia encontrar formas de mudança na legislação, nos inventários, no uso de residências devolutas, ou que esperam pela sentença demorada dos tribunais, de modo a trazer mais-valias para a população, que não sejam degradadas e que não envelheçam a imagem da ilha.
Fotografias da autora.
Artigo produzido como trabalho final do curso Comunicação Cultural para os PALOP, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, coordenado por Marta Lança (BUALA).