Barbeiros, barbearias em Mindelo – Cabo Verde
Espaços de masculinidades contemporâneas.
Em Cabo-Verde “salão” designa cabeleireiro, salão de beleza para as mulheres. Nas suas barbearias, os barbeiros, por sua vez, cortam os cabelos e a barba.
Homens abandonados nas suas cadeiras de ferro, suspensos, estáticos, possivelmente imersos num mundo neon e de espelhos, de cabelos e perfume. Ali ficam expostos aos olhares e à habilidade do cabeleireiro que não hesita em pressionar o seu corpo contra os dos clientes.
A única saída é a rua de onde despontam regularmente olhos curiosos e de onde vem o burburinho do público.
Eles ali acorrem, viris, pretensiosos, vaidosos e fiéis, para se instalarem sob o olhar de heróis épicos, de modelos intimidadores pendurados nas paredes (o grande Bob, Obama, 2-Pac,…) e estandartes de clubes de futebol. Eles saem sentindo-se renovados, prontos para se apresentar aos outros.
A barbearia é uma cena de masculinidade, de duelos verbais, de aparência, de olhar e de estilo. Onde se debate futebol, política. Onde se trocam confidências. Onde se encontra amigos e informações.
Ali são modelados pelas ferramentas do barbeiro soberano. Ali se oferecem como carcaça, impotentes frente à lâmina e à vista. Ali depositam a sua vida, Mr. Todd. Fazem fafocas, abrem-se um pouco, contemplam-se de alto a baixo. A barbearia é apimentada de feminilidades, de vaidades, de putarias e de hormônas almiscaradas.
É um ateliê de barbeiros cheios de talentos, de lâminas e de máquinas barulhentas, de tesouras que chiam, de cremes e de pêlos.
É uma despensa da masculinidade que invade a calçada, na barbearia ouve-se e vê-se o mundo masculino de hoje em formação.
A BARBEARIA
Na barbearia entra-se num espaço aberto para rua, mas com o seu quê de íntimo. Tem códigos sociais bem demarcados, ao entrar cumprimenta-se os presentes; ao sairdiz-se adeus. É um espaço povoado por homens, onde os olhares são disciplinados e constrangidos. Entrar é ser observado. É mergulhar numa luz diferente, num banho de sons particulares: as ferramentas ronronam, chiam, o rádio ou a televisão zumbem, os perfumes e espelhos sobredeterminam o espaço. Este antro divide-se sempre em duas partes desiguais. O palco é desde logo ocupado pelo estabelecimento do artesão e incorrigivelmente equipado com espelhos e com a sua “morsa” de cadeiras. Ao fundo há uma sala de espera, e ficam confinados frequentemente ao longo de uma parede os bancos onde os clientes esperam. Trata-se de uma posição de onde se vê a rua, de onde se pode ver, mas para onde poucos podem olhar. Nessa caixa de olhares que se cruzam, num abandono cheio de vulnerabilidade, um homem confia a pilosidade da sua cabeça ou do seu pescoço a um profissional. O barbeiro esculpe a cabeça do seu cliente.
PILOSIDADE FUNDAMENTAL
Trabalho da pilosidade. Bromberger (2010) confirma a importância antropológica e histórica do trabalho tricológico, “o pêlo é sensível às menores palpitações da história” (Bromberger 231: 2010). E o quê faz o pêlo, que critérios o tratamento do pelo prioriza? Para que usos sociais está sujeito? Primeiro, a distinção de gênero. Permite a distinção entre si e os outros. Em seguida, é utilizado para se situar em relação a uma ordem e, por último, inscreve-se numa lógica de distinção entre si mesmo e “tendências estéticas dominantes”. A modelagem da pilosidade compreende então a identificação do portador segundo estes critérios, participa da criação da alteridade e, assim, das dinâmicas sociais. Os cortes, os “desenhos fofos” permitem navegar em múltiplas esferas, situações do domínio público. Fala-se de cabelo todo o tempo. O cabelo é coisa séria. O estudo do mundo onde se modela a face, as barbearias, torna mais inteligíveis os processos de transformações sociais que lhe são contemporâneos.
KB (Kaybii) é ganês, barbeiro, imigrante em Cabo-Verde, foi contratado pelo proprietário de uma barbearia do centro. Ele penteia e barbeia cabo-verdianos. Explica que lhe deram emprego porque “agora em Mindelo, há muitos senegaleses, ganeses, nigerianos” que ele atrai. Eles o conhecem, entre imigrantes do continente, ele conhece o estilo deles. Como a todos os barbeiros, o proprietário deu-lhe uma máquina, um lugar na barbearia, atribuiu-lhe uma cadeira e vamos fazer a experiência. Ele “devolve” 50% da sua receita no fim do dia.
OS ESPELHOS
Aguarda-se a vez folheando revistas velhas de futebol, de motos ou de fofoca. Observa-se os outros e o artesão, os seus gestos e o seu cliente através do jogo dos espelhos. O espelho constitui um intermediário físico, um mediador mecânico que, devolvendo os olhares como jogadas de bilhar, materializa uma rede de olhares ou às vezes mesmo de trocas verbais. O espelho permite ao cliente preparar-se para o confronto com o olhar dos outros.
Uma sala de ensaio onde se avalia através dos espelhos. Pela mediação dos espelhos, a imagem de si pode tornar-se a de outro. Então, tenta-se ver como os outros nos olharão de fora. Os espelhos participam na criação desta percepção particular de si, uma objetificação, conferida igualmente pela posição passiva e, no entanto, controlada, enfim, vulnerável. Então, há os comentários dos outros clientes, outros mediadores. Eles discutem o estilo (Ossman 2002).
A BARBEARIA ATELIÊ
A barbearia é um ateliê onde o produto é a cabeça do cliente. Um espaço onde os clientes confrontam e confiam a sua aparência. Numa intimidade social deixam-se tocar por outros homens, artesão masculinos.
Todos lá vão para ficarem mais “apresentáveis”, todos vão modelar sua aparência: “para uma bela aparência”, “um belo visual”, “para ter um ar mais jovem”, “limpo”, “para ter o rosto suave”. A juventude, sinônimo de leveza e potência, de beleza e vigor, que os homens cobiçam nas mulheres, também fazem uso disso enfeitam igualmente para corresponder aos desejos das mulheres. Homens que se definem como duros e que o barbear torna suaves (mais um atributo feminino). Para seduzir, os homens reconhecem que devem ter uma tal aura de feminilidade ou de traços de feminilidade que os convença a si mesmos, e fazem crer que é contra a sua natureza, para poderem ser homens.
“Para se sentir fresco”. “Para se sentir bem (sabi)”. Os clientes e os cabeleireiros como Pauls (2010) insistem: sente-se mais fresco, renovado. A passagem pela cadeira dá uma imagem, mas transforma para além do visual: afeta também o estado de espírito (spiritu) do cliente, sente-se “bem”, pronto para uma boa performance: “Para ser sociável”, “elegante, aberto”, “bazof” (vão, que não passa despercebido).
O que atrai os clientes é estar apresentável socialmente e sentir-se bem, preparar-se para a performance da reputação, da sedução, de seus personagens públicos. Eis o que atrai os clientes.
A véspera de festas é um massacre. Com a chegada do Natal ou do Ano Novo, toda a gente se acotovela em frente às cadeiras. Nas vésperas do regresso às aulas é a vez das crianças se apressarem.
O culto da juventude e a pureza, parecer menos ameaçador para os outros do que para as mulheres. O homem deve dissimular o que ele é, ou mais especificamente o que ele pensa ou diz ser, um homem de várias faces, um homem prisioneiro da sua obrigação de atingir ideais que ele se esforça por reproduzir,… Então, concebe-se as imagens ideais que os homens querem projetar de si mesmos. Então, aperfeiçoa-se a imagem na barbearia, vem-se renovar, mas vem-se se educar também, ou buscar informações, como diz o cabeleireiro Niella, a barbearia é bom para o “audiovisual”.
Neste antro, espaço público afastado do domínio público, troca-se informações, questões, problemas, rumores, opiniões, conselhos, testa-se decisões, fraquezas,…
Vem refazer-se.
ESPAÇO ENTRE IGUAIS
Tudo lembra outros antros masculinos que frequento, os bares, os quartos obscuros onde se forjam opiniões, se troca informações, as intimidades masculinas, onde se medem os homens, pela retórica, as cartas, o oril, os punhos,… onde os homens se encontram entre iguais. Mas aqui, entre outras coisas, saímos fisicamente transformados, renovados, dosagens equilibradas de conformidade e inovação, particularidade e norma. Por outras palavras, faz bem ao espírito (“é bom pa spiritu”), é a atitude da pessoa assim regenerada. A barbearia é então uma fonte para a apresentação do homem no espaço público, que influencia a sua aparência, a sua auto-confiança, a sua atitude “revigorada” (Pauls 2010).
Tal operação é naturalmente muito sensível a tudo o que toca os palcos sociais, as cenas às quais se prepara o barbeiro. Estas situações fazem parte de uma esfera pública complexa, uma noção heurística que assinala o conjunto de situações mais ou menos íntimas entre as quais navegam estes homens. A barbearia permite, então, estabelecer uma relação entre a apresentação de si e a esfera pública. Não somente a de Habermas, a esfera política, as situações onde se articulam as posições, a cidadania (Herzog 1996), mas uma série de olhares e perspectivas pelas quais pode modelar o seu “visual”. Mas que mundos os cabo-verdianos habitam que a barbearia nos possa indicar? Os olhares aos quais eles se confrontam vêm de todo o lados, do quarto de casal aos fãs de Tupac.
A julgar pelos diferentes estilos adotados, as cabeças máquina zero, os frisados médios, o raspado do crânio prolongado sobre as bochechas desenhado pelas costeletas,… nem todos esses homens se inscrevem nos mesmos diálogos. Se alguns pensam dever adotar o bom estilo para poder ser bem posicionados no mundo certo, é uma informação em si. Mas o barbeiro Niella lembra que consiste em agradar a “todo mundo”, consiste em, como escreve Ossman sobre ser bela, de “ongoing ability to move through situations gracefully” (Ossman 2002). A barbearia, por trabalhar a apresentação de si mesmo, é um espaço onde se adapta ao exterior para melhor agir; um espaço privilegiado onde observar os processos de produção cultural contemporâneos entre conformidade e originalidade.
Vista da barbearia, a mudança cultural é a produção (através dos visuais que lá são esculpidos) da reorganização permanente (performatividade) das relações fundamentais (gênero, grupo identitário, ordem social, estética) a partir de afinidades, de referências hierárquicas, entre uma conjunto de ligações diferentes negociadas na cadeira, refletindo a complexidade social contemporânea.
BARBERIA MASCULINIDADES FEMININAS
Na barbearia, duelos verbais, exclamações, risos, injúrias, zombarias e histórias irrompem de todos os lados, abafam a rádio, a TV e os murmúrios trocados entre o cabeleireiro e seu cliente entendem-se no trabalho em curso. Os homens “fofocam” (sim sim, eles “papeiam”, maldizem). Zombam uns dos outros, entre homens, aqueles que esperam, aqueles que penteiam e que são penteados. Falam de negócios, de mulher, de futebol, de política internacional, nacional, local, microscópica e de outros homens; trocam informações práticas, aprendem. Vão à barbearia para ficarem bonitos, mas isso eles não gostam de dizer: dizem “ter um belo aspecto, é para ter um belo aspecto,…” Na barbearia, instala-se na poltrona e petrifica-se todos os sentidos aguçados, todo confinado em si mesmo, objeto nas mãos do artesão. Na barbearia, somos ou do Benfica ou do Porto ou do Sporting. Posicionam-se debaixo de Cristo ou de Bob Marley, de Obama,… Na barbearia, vêm aperfeiçoar a masculinidade vivendo situações “femininas”, deixando-se levar por um regime feminino.
Não é cómico? A barbearia, lugar de homens, ateliê da masculinidade, é apimentada por atitudes, posições, situações femininas ou, pelo menos, não masculinas: tocado por outro homem, que de vez em quando pressiona o corpo dele contra o seu, de qualquer maneira, próximo demais; vaidoso que observa dos pés à cabeça; oferecido, imóvel, à mercê de um outro homem e de suas ferramentas cortantes, numa posição vulnerável (Dundes 1978), porque para os homens cabo-verdianos o pior seria “tomar na cu”; petrificado como numa cadeira elétrica ou obstétrica; sensível à moda, preocupado com a sua beleza, enquanto a beleza é própria aos objetos consumidos. O homem define-se então por outra coisa que não seja a sua qualidade interna, o poder político, sexual? O homem em plena heteronomia, não masculino.
A sociabilidade do homem contemporâneo precisa deste ateliê, este bastidor no qual entre homens, veste, prepara-se para a performance social, submetendo-se a um regime salpicado de feminidade.
Na barbearia, convenci-me que ser homem é fazer o homem. Mas que “fazer o homem”, especificamente, requer uma atuação bem feminina, entre homens.
OS BARBEIROS
Situado pelas identificações e afiliações fixadas no seu ateliê, dessensorializado pelo seu profissionalismo (Wikin 1981 : 257), o cabeleireiro é, além disso, uma pessoa de confiança. Os homens gostam de se apegar a um cabeleireiro, são-lhes fiéis. Essa fidelidade é uma proteção. Se ela não é generalizada é preferida. Ela é prova de intimidade, da suspensão da ordem habitual das coisas no salão e do perigo consequente, até mesmo da incerteza tão fortemente sentida pelas crianças. No entanto, a ordem se reposa sobre os bastidores, os espaços, os ateliês sociais. É neste contexto que as barbearias se revelam tão interessantes para o pesquisador.
Os barbeiros são sempre estáveis sobre os seus pés. O seu saber é comentado: esse aqui barbeia bem, ele tem a mão leve, ele “raspa” (no sentido contrario) bem, sem ferir. Os barbeiros comentam suas intervenções com os clientes, seus amigos, perguntam sempre se o resultado é satisfatório, nunca hesitam em aperfeiçoar. Eles são o centro da produção dos visuais dos homens cabo-verdianos. Negociam os estilos, consultam revistas estrangeiras, fixam seus pôsteres de modelos, de estilos afro-americanos, “desenham” cortes. A barbearia é literalmente um ateliê de produção dos homens.
Estamos habituados aos cabeleireiros homossexuais ou pelo menos “afeminados” do ocidente, manipulando produtos químicos, loções, máquinas o mais silenciosas possível, maquinas de raspar, secadores, tesouras a cortes amortecidos, preocupados com a beleza de seus clientes. Os artesãos cabo-verdianos são barbeiros, manipulando o pincel de barbear, pente, máquinas, tesoura, barbeador e navalha. São cortadores. Masculinos, então (Bordieu 1998: 44).
Barbeiros lembram cirurgiões, homens que trabalham manualmente nos corpos dos outros. Contadores, comentaristas de futebol experientes, debatedores bem informados, pivôs deste espaço de mediação que é a barbearia. Comportam-se um pouco como homens num bar, aquecidos pelos seus duelos verbais, vibrantes das novidades que espalham, ou recolhem, mas sempre guardiães da ordem.
Eles exigem de seus clientes controle, ereto e calmo. Toda uma atitude de abandono controlado e de confiança que os jovens devem aprender.
AS CRIANÇAS
Os jovens são içados sobre uma prancha posta nos braços das cadeiras sem a qual eles vagariam, engolidos pelo trono. As pernas penduradas no vazio, enfaixados que estão na roupa branca.
Seus acompanhantes encorajam-nos a ir, a ficarem tranquilos. Estoicos. É preciso controlar-se. Confiar no adulto, no técnico. Não se mexer. Inclinar a cabeça na posição indicada pelo barbeiro. Manter a pose. Bloquear. Sem falso movimento, sem desvios. Relaxar a nuca para não se crispar.
Os garotos não dizem nada. Estão muito concentrados na sua posição rígida. Estão absorvidos demais pela tomada de consciência tão clara dos limites dos seus corpos e de suas múltiplas sensações, e então de sua corporalidade, que não perde uma passagem pela cadeira. Estão por demais ávidos para aprender, gravar o que se diz, o que se faz, a maneira como os outros falam, os estilos, as idades, os corpos dos outros homens que têm por uma vez o lazer de observar. Eles seguem os olhares dos outros. Seu olhar é assim domesticado, enquadrado, educado. Como os jovens novatos atravessando uma prova que mudará seu estatuto pelo conhecimento, experiência física e o estigma adquirido. No final das contas, eles temem a passagem tanto quanto eles se alegram.
“Para as crianças, diz o barbeiro, é preciso paciência, calma. É preciso compreendê-los”.
As crianças mais jovens são acompanhadas pelo seus pais, tutor, um adulto responsável ou sua mãe ou uma mulher de sua casa. É com eles que o cabeleireiro discute o corte. Um dia eles virão sozinhos, isto depende da distância entre a barbearia e a casa, da idade, da familiaridade com o cabeleireiro. A partir de quando as crianças decidem o seu look?
MULHERES NAS BARBEARIAS
Eu frequento as barbearias cabo-verdianas há uns vinte anos. Não faz muito tempo, é comum encontrar lá mulheres, sentadas pacientemente, esperando a sua vez. E outra, as acompanhantes, a maioria vem à barbearia fazer as sobrancelhas. Elas falam pouco. Comentam como os homens o resultado com o barbeiro.
O que as atrai à barbearia que eu apresentei como uma referência a um clube de machos? A eficiência. Os barbeiros são bons com a lâmina. “Temos mais talento para fazer as sobrancelhas e cortar os cabelos”. Rápidos. Baratos. Como se a importância do respeito das regras de beleza, as sobrancelhas finas, regulares, vírgulas leves deitadas sobre a forma dos olhos, as motivaram a atravessar as fronteiras deste espaço masculino. Então, os limites da masculinidade e da feminidade se embaçariam ou mesmo se diluiriam? A abertura das barbearias às mulheres parece dar uma pista. Alguns homens vão fazer a manicure nos salões de mulheres, que continuam portanto, nos dizeres dos meus colegas cabo-verdianos, um espaço extremamente feminino. Vendo as mulheres entrarem, eu pensei que a barbearia se tornava um pouco menos um espaço de recurso total da masculinidade, mas, um ateliê de individualidade, entre outros. Sim, um individuo articulado às modas, com valores estéticos diferentes, performances de gêneros distintos, estilos, …
As mulheres dirigem-se igualmente ao domicílio dos barbeiros para serem penteadas, elas aproveitam do técnico sem deverem se instalar na barbearia. O homem que é o barbeiro não vai recusar a uma mulher que pede o acesso à sua casa. A evolução dos estilos de penteado de mulheres pode igualmente esclarecer o recurso aos barbeiros para os cortes curtos adotados por várias mulheres. As mulheres em busca de uma valorização a todo preço, desmistificam a barbearia como lugar de homens? Um pouco. Mas o público de homens que frequenta a barbearia também mudou. Eles são cada vez mais numerosos a confiarem a sua aparência aos barbeiros. Cada vez mais homens procuram também se diferenciar dos outros e desenvolvem o seu senso de particularidade (Ossmann 2002), desenvolvem o seu senso de individualidade. Uma masculinidade hegemônica (e então seus efeitos homogeneizantes, de mimicry) folga a morsa de alguns homens. Transformação de masculinidades, então.
A presença de mulheres nas barbearias indicaria a irrepreensível proeminência da perseguição da individualidade pelas mulheres, invalidando assim as possibilidades de (re)-produção dos grupos de homens, um velho tema da antropologia mediterrânea das relações de gênero, a reprodução pelos homens da mulher como uma ameaça mística à ordem. Em outros termos, a intrusão das mulheres nos espaços masculinos fragilizaria a reprodução das identidades coletivas de homens. Ela romperia uma barreira simbólica importante, pois a de um lugar masculino ambíguo e, então, ameaçaria a ordem simbólica entre os gêneros?
A perseguição destemida da perfeição individual testemunharia e permitiria a reprodução de um individualismo mais igualitário, e confundiria assim as categorias de gênero? O indivíduo, tão preocupado com a sua produção, recorre a todos os recursos disponíveis para chegar aos seus fins, pronto a infringir os limites convencionais, baseados na performance de uma masculinidade hegemônica. Mas os barbeiros apreciam as visitas das mulheres (talvez porque eles sabem que estas infrações femininas são somente marginais, …)
A análise destas transformações permite a exploração de toda uma fenomenologia da pessoa, das pessoas.
ESPAÇOS POLÍTICOS
Eu evoquei Herzog e Habermas, segundos os quais as abordagens/considerações obrigam a explorar os barbershops como “points of entry to the political spheres”, são espaços de bastidores que criam efetivamente igualdade entre homens. Os barbeiros insistem: todos os tipos de homens vêm à barbearia. Ricos, pobres, jovens, velhos, crianças,… Todos estão estirados, lá entregues ao talento e à sagacidade do cabeleireiro que, ele mesmo, reclama de não ganhar o bastante e de ser somente um “pequeno”, socioeconomicamente na base da pirâmide. Todos buscam os mesmos efeitos. Não é tanto a classe social, desde então, que distribui os clientes, outros fatores e identificações são mais relevantes: a proximidade geográfica, o talento do artesão, os estilos pelos quais ele pode ser reputado, mas também a relação estabelecida com o ou os barbeiros, com outros clientes, frequentemente a barbearia prolonga os contatos de bairro, o clube de futebol os quais reivindicam os cabeleireiros,…
As análises dos barbershops afro-americanos de Bozeman (2010) são inspiradoras; a pertinência de suas descrições americanas pelo contexto cabo-verdiano é espantosa e convida à comparação. Porém, a linha interpretativa do barbershop que Bozeman seque é a da compensação; O barbershop como espaço de mediação que permite aos homens de “shape their own sense of masculinity against and/or as refutation of a negated masculinity in a hostile society” (Bozeman 2010:3). Seria interessante seguir a comparação confiando no seriado estadunidense contemporâneo “Barbershop”, poder-se-á observar que a presença das mulheres nas barbearias é definitivamente garantida.
Conhece-se a música barbershop, quartetos a capela americanos brancos, que teriam encontrado sua origem nos barbershops da burguesia branca do fim dos séculos XIX e XX. Encontram-se lá também homens reunidos em torno da modelagem da sua pilosidade, pela classe, etnia, gênero, e uma performance específica da masculinidade. Estas observações e breves comparações indicam o interesse do estudo dos salões de cabeleireiros, estes ateliês da apresentação de si, enquanto espaço em si com suas regulações, signos, valores, trocas, ferramentas, identificações sociais, com seus limites sociais.
Eu vejo lá um espaço de constituição de sujeitos contemporâneos, como um espaço de mediação privilegiada, evoluindo no tempo de maneiras diferentes segundo os contextos. Um outro tipo de comparação é promissor, entre as barbearias e os salões de tatuagens, outros espaços contemporâneos, mistos desta vez, de particularização definitiva do corpo.
QUESTÕES
Quando e como os jovens garotos tomam a decisão independentemente de seu tutor em relação ao seu visual?
Na medida em que a barbearia é um lugar de crafting, de modelagem de uma pessoa, esta pode igualmente ser estudada como uma atividade artesanal, no centro de uma inovação culural. O ponto de vista do artesão num ateliê, com as suas ferramentas, sintetizador de restrições, aspirações e usos, entre reprodução e inovação.
As mudanças na frequentação das barbearias atestam (ou auguram) de uma nova forma de ser ao mundo, mais individualista, às fronteiras identitárias – principalmente de gênero – mais embaçadas, mais permeáveis? Para serem masculinos, os homens entre eles na barbearia se fazem femininos. A abertura da barbearia aos outros é controlada e seria reveladora de deslocamentos de categorias.
Submetendo-se, talvez alegrando-se às vezes, da submissão e de atitudes todas femininas nos bastidores, no entre si dos iguais, que torna-se iguais e que pode-se ser masculino?
O visual ganhado na barbearia, a operação que é cumprida, preparam os homens às suas vidas públicas, a entrada em cena. A quais situações eles tentam se adaptar, quais olhares orientam suas práticas? A quem eles se endereçam? Que personagem eles representam e para quem? Como eles concebem a utilidade de sua renovação, de seu retoque?
O corpo está no centro das transformações das subjetividades contemporâneas, da performance dos gêneros. As práticas da barbearia nos ensinam como estes processos começam e nos informam sobre poderes à obra nos processos de subjetivação do homem.
Apesar da frequentação por alguns de salões femininos, apesar do coquetismo, a adoção de estilos distintos, outras práticas de homens cabo-verdiano atestam a feminização das práticas, notadamente as ligadas ao corpo? As performances dos gênerosse diversificam. Este problema de gêneros só pode funcionar se as referências antigas, os ateliês de produções de gêneros hegemônicos se reproduzem, o que é o caso. Assiste-se, então a uma multiplicação de referências. Como as pessoas transitam entre estas esferas? Quaisquer que sejam os processos em obra, o corpo é garantidamente central neste exercício.
Como se alteram os gêneros de masculinidades que manifestadamente se cortejam nas barbearias? As mudanças nos gêneros são primeiro uma questão de geração? Como se individualizam, se particularizam as performances da masculinidade?
Na Tanzânia dos anos 90, nos Estados Unidos de há décadas, em Cabo-Verde, mais e mais, … as barbearias, os barbershops são ateliês ligados de perto à performance das identificações dos homens, um desses cruzamentos a partir dos quais apreendemos os fluxos complexos que produzem e onde se produzem os homens e os coletivos aos diversos rizomas. Em todo caso, não se deve parar nas fronteiras das barbearias, os cabelos, os pelos, os estilos engajam a ordem dos gêneros e a globalização. Os corpos esculpidos nas barbearias dialogam com os olhares e hierarquias cujas escalas variam com o lugar da barbearia, do local ao global (Weiss 2002, Nyamnjoh 2002, Saboim 2009).
A partir da construção cotidiana deste espaço público observa-se todo o jogo da construção dos eus, das masculinidades contemporâneas, em diálogo com o resto do mundo, as imagens, os objetos, os espaços.
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BIBLIOGRAFIA
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Butler, J. 2006. Trouble dans le genre. Le féminisme et la subversion de l’identité. Paris : Editions de la Découverte.
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