(Des)controlo em Luanda: urbanismo, polícia e lazer nos musseques do Império
Índice
Introdução
Um “profissional da pistola” no Cazenga
Bernardo Pinto da Cruz
Arquiteturas coloniais, planeamento urbano e a representação da história imperial portuguesa
Nuno Domingos
Os musseques de Luanda: entre estudos e políticas
Diogo Ramada Curto
A unidade de vizinhança na Angola colonial: repertórios de concentração e políticas urbanas (1950-1974)
Bernardo Pinto da Cruz
Lazer em Luanda: o controlo do tempo livre dos trabalhadores e a manutenção da ordem colonial (1961-1975)
Juliana Bosslet
O futebol nos musseques e nas empresas de Luanda (1950-1960)
Marcelo Bittencourt
Dicotomias da música popular (sub)urbana na Luanda colonial ‒ da “folclorização” à consagração
Pedro David Gomes
Notas biográficas
Índice Remissivo
Introdução:
Um “profissional da pistola” no Cazenga por Bernardo Pinto da Cruz
“Imagine-se que, no dia 16 de Setembro de 1972, um qualquer preto do Musseque Cazenga, por volta das 16 horas, descia à cidade dos brancos e, junto da cervejaria Baleizão, ou debaixo da mulemba da Esplanada Portugália, após um conflito que nem foi entendido pelos circunstantes, sacava da sua pistola e matava um dos presentes; imagine-se ainda (…) que do mesmo musseque Cazenga, logo a seguir, em consequência de falsos boatos, descia à baixa da cidade branca de Luanda um grupo de vingadores que espancavam até à morte quatro brancos, incendiavam a livraria Lello, estilhaçavam os vidros da sofisticada Versailles, destruíam os Supermercados de Angola e enviavam aos hospitais mais de uma dúzia de outros brancos…
Bom! No mínimo, a estas horas, haveria volumoso processo político no Tribunal Militar local; no mínimo, haveria dezenas ou centenas de habitantes dos musseques remetidos, com um simples despacho administrativo, à situação de residência fixa em um dos vários locais destinados a cumprir “medidas administrativas de segurança” de entre os vários que existem desde Cabo Verde até à Foz do Cunene…pelo menos”.1
O exercício de imaginação que Albertino Fonseca Almeida, magistrado do Ministério Público de Angola, propunha aos juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Luanda, invertia a ocorrência dos acontecimentos de um dos vários massacres perpetrados pelos portugueses nos musseques daquela cidade antes dos motins que se seguiriam ao 25 de abril de 1974. No dia 16 de setembro de 1972, Telmo Pires, vendedor branco que se dirigia para o mercado no musseque Cazenga, entrara numa altercação com um transeunte, Elias Pedro, negro, de 25 anos, marceneiro e residente naquele mesmo bairro “na casa 47-C2-112-C”. Depois de um curto, mas violento diálogo, Pires saca da sua pistola e abate Elias à queima-roupa. Uma testemunha decide participar o homicídio na 10.ª esquadra da polícia, não sem antes ter seguido no encalce do criminoso. Pires vai a casa. Volta a sair. Terá descosido o bolso da camisa, rasgando-o. Talvez forjasse as provas de um confronto, uma legítima defesa. Acompanhado da mulher, apresenta-se na esquadra. Entretanto, na cidade, circula um boato: “os pretos haviam-se revoltado, levando isto para o campo do terrorismo’”2. Ao cair da noite, o musseque é invadido por dezenas de viaturas, “entregando-se os seus ocupantes à prática de indiscriminadas e brutais agressões sobre pessoas e haveres dos cidadãos de cor”. A polícia (PSP) manteve-se passiva, quase complacente para com a barbárie dos “vingadores”. No ano seguinte, Telmo e os restantes arguidos viriam a ser ilibados.
A reversão hipotética dos eventos servia ao Ministério Público para jogar com a ideia, tão disseminada pela propaganda colonial, de que existia um “racismo de sinal contrário”. Apelava-se a uma justiça que não tinha ainda sido feita, porque era uma “justiça branca”, caída em descrença entre os habitantes negros da cidade: “brancos o juiz, o Ministério Público, os advogados, os réus, a assistência inteira!!!”3. Dos que sofreram a tortura, os espancamentos e a morte, a destruição das casas, dos que foram humilhados no levantamento branco, nem um estava presente ou se fazia sequer representar no julgamento. O racismo entre as duas comunidades dividia, de cima a baixo, a sociedade luandense, do poder judicial ao comércio que se fazia no interior dos musseques. A retórica usada pelo procurador, ao tentar abanar os alicerces sociopolíticos dessa justiça racial e ao pôr a descoberto a hipocrisia, o subjetivismo e a parcialidade dos juízes, invocava três imagens sobre o mesmo espaço: o recorrente dualismo entre a cidade branca e a cidade negra; um roteiro da modernidade urbanística conspurcada pelo terrorismo e a geografia punitiva do império.
(vídeo de Marta Lança 2010)
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Essas três facetas constituem os temas principais deste livro e podem ser encontradas, de forma variável e crítica, em cada um dos capítulos, que foram selecionados a partir de textos inéditos ou já publicados em revistas da especialidade.
A primeira imagem opõe deliberadamente o musseque Cazenga, local onde, de facto, ocorrera o motim, à baixa da cidade, transpondo para a apelação uma dicotomia urbana profundamente enraizada entre colonizadores e colonizados: a cidade do asfalto e os musseques. No entender da acusação, Telmo Pires foi o principal causador dos motins, aparecendo na “qualidade de senhor branco todo poderoso, portador de uma pistola, no desgraçado bairro Cazenga, para lá do asfalto, onde os ‘pretos’ aos olhos dos Telmos deste mundo, são, por definição, patifes, salteadores, desprezíveis…”4. Como tantas outras observações encontradas nos arquivos, também este relato enfatiza o modo como o dualismo físico da cidade estava incorporado nas mentes e nas representações que se faziam da vida social em Luanda. Todos os capítulos deste livro atestam a ubiquidade deste dualismo, mas vão mais longe ao identificarem modos concretos, embora nem sempre intencionais, de amnésia, reforço e diluição daquela dicotomia.
Segundo Nuno Domingos, a historiografia mais recente no domínio da arquitetura portuguesa, ao reproduzir a narrativa hegemónica interna do campo da arquitetura modernista nos trópicos, supostamente autónoma, universalista e anti-conservadora, faz cair no esquecimento o sistema de exploração colonial marcado por uma desigualdade e instabilidade radicais de que o campo do urbanismo e da arquitetura não está nem desligado, nem isento de responsabilidades. Embora mais focado na antiga Lourenço Marques (Maputo) e nos seus caniços, o estudo de Domingos ajusta-se igualmente bem ao caso de Luanda e às biografias e trajetos dos engenheiros e arquitetos que nela terão experimentado soluções inovadoras, consideradas mais humanistas. O seu texto lança como que um repto a que as restantes contribuições tentam dar resposta: reinserir os domínios relativamente autónomos do urbanismo e dos lazeres no campo mais vasto da governação colonial. O meu capítulo trata deste outro modo de produção de segregação tropical, que podemos encontrar nas tentativas de reordenamento dos musseques segundo lógicas assimilacionistas, de que o bairro Prenda foi paradigmático. A apropriação e uso, no planeamento urbano, do conceito de “unidade de vizinhança”, importado das metrópoles ocidentais e testado nas concentrações rurais de Angola antes e durante a guerra colonial, escamoteia, ainda hoje, a ligação direta que se estabeleceu entre os técnicos urbanistas e os profissionais da contrassubversão, bem como o reforço da dita dicotomia asfalto/musseques. Para tal reforço contribuiu uma interdependência clara entre a aplicação urbana de técnicas de controlo policial imaginadas para os aldeamentos rurais e os estudos “sociológicos” de burocratas e cientistas sociais.
Ao longo da década de 1960, foram várias as comissões e grupos de trabalho nomeados para pensarem e planearem a eliminação ou rearranjo da cintura periférica de Luanda, tendo na base a imagem reificada do musseque como antro da criminalidade e da vadiagem. Assim se percebe que, para Diogo Ramada Curto, mais importante que a divisão cidade branca/cidade negra é o falso antagonismo entre os musseques como fonte de autonomia e coesão social, cultural e política – logo, como base social dos movimentos nacionalistas – e enquanto local de proliferação da marginalidade e da prostituição. Os estudos históricos e sociológicos sobre a periferia de Luanda têm de superar este antagonismo e encarar de frente o problema das determinantes da solidariedade e da marginalidade sem atender ao “politicamente correto” – as categorias analíticas usadas pelo aparelho policial, por exemplo, parecem criar coesão, no mesmo plano que as condições económicas vexatórias e opressivas e as tradições culturais dos dominados. Daí a advertência para levar a sério a documentação produzida pela burocracia colonial e as perspetivas dos subalternos nela contidas, não raras vezes mais objetivas que as colhidas noutros tipos de fontes. As análises históricas aos domínios da cultura e dos lazeres urbanos estão especialmente expostas à ilusão da autonomia dos espaços, quando deixam de lado os processos de constituição dos mercados de trabalho, das deslocações forçadas e voluntárias das populações e dos aparelhos de repressão, dos mais simples aos mais complexos.
Os três capítulos que se focam nas instituições e práticas do lazer nos musseques são, a este respeito, exemplares. Eles olham para os mecanismos de reforço do dualismo eurocêntrico, mas também para a sua porosidade, quebrando propositadamente com o tipo de análises bipolares, centradas num dos dois lados do sistema de dominação. Em conjunto com os restantes textos, sugerem formas históricas de constituição e de dissolução daquela dicotomia, na ordem física e na das mentalidades. Juliana Bosslet foi das primeiras a chamar a atenção para o facto de a imagem negativa e pejorativa dos musseques estar na génese de um sistema de repressão permanente sobre os africanos e das políticas estatais de normalização do lazer para manutenção da ordem colonial. Por sua vez, os esquemas de controlo dos tempos livres dos antigos “indígenas” ou “destribalizados” foram objeto de resistências e usurpações várias, do lado dos subalternos, assim selando o círculo vicioso da dualidade urbana. Essas políticas de vigilância e disciplina da mão-de-obra, dentro e fora dos locais de trabalho, estavam imbuídas dos conceitos veiculados pelos programas de desenvolvimento colonial do pós-guerra, fazendo parte do desenvolvimentismo tardio que marcou o ocaso do império português em África.
Partindo da imbricação entre desenvolvimento e repressão, também Marcelo Bittencourt a vai confirmar e aprofundar no campo das atividades desportivas, em particular do futebol quotidiano praticado nos musseques. Num processo que tem paralelos com a nacionalização do futebol e do desporto em geral na metrópole a partir de 1920, também as partidas informais de futebol, tidas por violentas e à margem da ordem colonial, passaram por uma intensa institucionalização, que as tentava disciplinar, assim como aos grupos que nelas participavam5. Mas este controlo sobre os musseques, como já notava Bosslet, começou a indiciar um incentivo das autoridades aos jogos corporativos, promovidos pelo sector privado. Bittencourt mostra que dois fenómenos contribuíram para esta mudança de atitude face ao musseque e ao futebol suburbano: por um lado, o desenvolvimento industrial e a correlativa necessidade de criação de um mercado de consumidores, ligando o futebol ao consumo de certos produtos alimentares; por outro, a sistematização de uma política de ação psicológica a partir de meados da década de 1960, em que o musseque (como os aldeamentos do interior de Angola, vale a pena dizer) passa a ser objeto de valorização oficial.
Semelhante valorização foi encontrada por Pedro David Gomes, desta feita na folclorização de que o semba, estilo musical nascido em Luanda entre 1950 e 1960, foi alvo. No seu capítulo a propósito da evolução, apropriação e negociação da identidade mussequeira em torno do semba, torna-se evidente que a dicotomia urbana, no quadro da assimilação, servia como esquema classificatório dos produtos culturais, sobretudo da música. Neste sentido, a oposição dualística dos espaços projetava-se na dualização dos estilos musicais, com o semba remetido, inicialmente, para a ordem tradicional e outros estilos, como o pop-rock, para o mundo moderno. Claro que a cultura fazia ricochete: ela própria contribuía para sedimentar as perceções de coesão identitária de ambos os espaços, delimitando-os – a cidade do asfalto retira do antagonismo com os musseques, onde era suposto prevalecer o gosto e a prática de uma forma pura do semba, toda a sua força simbólica moderna. Agora, essa delimitação tinha de ser mantida, quer por intermédio de um conjunto de hábitos de oferta e procura que organizavam os espaços de espetáculos em hierarquias socioeconómicas e étnicas diferenciadas, quer por um conjunto de agentes, de dentro e de fora da administração colonial, que zelavam pelas fronteiras culturais. Esse trabalho de vigilância foi penoso. Gomes demonstra que a realidade, muito mais complexa, dificilmente encaixava na simples divisão, próxima de modelos normativos como os propostos pela escola de Talcott Parsons que guiavam o pensamento colonial. Os representantes do estilo, intencionalmente ou por pressão de um público que subia da baixa ao musseque, afastavam-se de uma qualquer interpretação “autêntica” do semba domado – as influências estrangeiras (não-coloniais) e os atos de recriação constante ameaçavam estilhaçar o binómio moderno/tradicional que dependia da dualidade asfalto/musseque.
Uma segunda imagem veiculada pelo discurso do magistrado do Ministério Público no caso do Cazenga é, justamente, a do encontro entre os locais emblemáticos da modernidade luandense e o musseque. Mas onde o caso ocorrido exemplificava uma viagem menos comum, da baixa para o subúrbio, a história do procurador põe as massas anónimas da periferia a descer para o centro, instigadas pela morte de um da sua comunidade. Esta imagem pouco tem de hipotético, se considerarmos que anos antes se tinham dado situações muito semelhantes6. No entanto, o extraordinário poder sugestivo da narração está no itinerário que as massas africanas percorrem na sua fúria justicialista: a Baleizão, cervejaria que servia dos melhores gelados de Luanda, localizada num antigo edifício colonial do século XVII; a esplanada da Portugália, também chamada “5.ª repartição do Quartel-General”, por nela confraternizarem os militares de passagem pela cidade, ou a confeitaria Paris-Versailles, conhecida pelas suas réplicas de edifícios em pão-de-ló, requintada oficina de pastelaria que faria as delícias dos modernistas obcecados pela miniaturização7.
Este mundo da baixa luandense figura de forma incompreensivelmente desmesurada nos retratos memorialísticos do quotidiano dos colonos e, pior, na história da arquitetura luso-africana, algo que Nuno Domingos demonstra à saciedade. Esta história sobrevaloriza geografias particulares – “cidades florescentes e glamorosas”, laboratórios onde uma geração de artistas experimentou e criou em liberdade – ao mesmo tempo que recalca outras que forneceriam, sem dúvida, um retrato mais fiel da cidade. O discurso estético e técnico que marca a narrativa hegemónica dessa história centrada na herança cultural da portugalidade impede-nos de conhecer as cidades coloniais tal como elas eram.
No entanto, também é verdade que parte dessa narrativa gravita em torno das experiências que se fizeram nas cinturas periféricas, experiências consideradas humanistas, por uns, tecnicistas, por outros. Quando o mundo do asfalto começou a penetrar na malha suburbana na forma de intervenções urbanísticas, os exercícios de criatividade, que hoje se tentam salvar a todo o custo da conotação colonial, esbarraram de frente com a crua realidade do “problema racial” e com propostas apostadas na contenção da destribalização. Estas defendiam um pragmatismo habitacional que preservasse a arquitetura tradicional africana na cidade ou que, pelo menos, acatasse as recomendações da Comissão Económica para África, da ONU, contra a construção em altura para alojar as populações “mais atrasadas”. Ramada Curto, por exemplo, fala nesse embate entre os que seguiam uma via moderna, inspirada em Le Corbusier, e os tradicionalistas, que, não deixando de reordenar o espaço, apostavam em formas térreas, mais sensíveis à realidade social. Tal como argumento no meu capítulo, a descolagem face a Le Corbusier e a reivindicação de um legado humanista, sensível às culturas nativas, serviram aos dois lados da contenda. Assim que alargamos o quadro de análise, o que vemos é que o debate não esteve nunca limitado, com bem refere Domingos, às questões puramente estéticas e técnicas: a economia política ultramarina impunha modelos “humanistas”, quer dizer, mais precários; os temas do desenvolvimento comunitário legitimavam essa precariedade; os militares davam o mote e a polícia precisava de ruas mais largas e musseques sociologicamente bem definidos. Também por isso é difícil levar a sério a ideia de que os técnicos modernistas em Luanda se depararam com obstáculos ideológicos, do lado dos conservadores, que lhes teriam limitado as ambições multirraciais: estes últimos pugnaram, por exemplo, pelo desenvolvimento de infraestruturas (acesso a água, saneamento, eletrificação), setor em que os primeiros tinham deixado muito a desejar.
No julgamento de Telmo Pires são os espaços do centro de produção de uma cultura moderna legítima que se veem profanados, como se na representação do procurador a Versailles tomasse o valor simbólico do mercado do Cazenga e vice-versa. A comunicação entre os dois polos urbanos não se esgotava, claro, nem neste tipo de movimentos selváticos, de populações brancas e negras amotinadas, nem nos projetos urbanísticos de controle das relações raciais na periferia. A investigação de Pedro Gomes põe a tónica nessa outra fusão de culturas levada a cabo pelos performers do semba, que rompia, como vimos, tanto com a ideia de folclore indígena como com a centralidade do modernismo luso no processo de assimilação, suplantado por modelos afro-americanos e brasileiros. No entanto, à semelhança do que se passava nos domínios da habitação e do futebol em particular, também na música a aceitação de um certo estilo “nativo” tinha de passar pelo crivo da sensibilidade europeia. Uma sensibilidade que, de resto, obrigava a domesticar e a fixar formas e conteúdos. Seria interessante perceber porque é que no campo musical se assistiu a uma crescente liberdade criativa na divulgação do semba (pesem embora os esforços em contrário), enquanto que noutros lazeres se dá uma folclorização mais apertada. As pesquisas de Bosslet e Bittencourt dão-nos algumas pistas. Se a música e o desporto manifestam uma mesma valorização europeia das práticas culturais dos africanos, em lazeres marcados por uma disciplina mais corporal ou com potencial para cruzarem o marketing da indústria com a vigilância policial de massas, esse respeito cultural escondia intenções mais totalitárias. Num período marcado pela expansão dos mercados, o capitalismo sonoro parece ter libertado; a indústria alimentar enclausurou. Valeria ainda a pena saber se também no campo dos lazeres a elite europeia se opôs com a mesma intensidade com que debateu as vantagens e malefícios do modernismo no campo da habitação.
É claro que esta representação do contacto e da interpenetração do asfalto e dos musseques, ela própria crítica da ideologia do lusotropicalismo, tradicionalista e civilizatório, ganha tonalidades bem mais sinistras quando nos apercebemos que, do lado dos europeus, o convívio inter-racial estava totalmente dependente de um clima de aterrorização constante. Em Luanda, seria relativamente normal encontrar os europeus brancos com “armas carregadas e granadas de mão, prontos a atacar os musseques ao primeiro sinal de problemas”8. Tudo aponta para que Telmo Pires fosse um desses “profissionais da pistola”, como lhes chamou o Ministério Público, um “mantenedor da ordem contra subvertores”. O réu parece ter pertencido à Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil ou a um grupo paramilitar análogo, criados ao nível da colónia, mas também em cada um dos distritos de Angola ao longo da década, depois dos acontecimentos de 1961. A partir de 1967, foi a PIDE quem mais ativamente promoveu a participação de civis em cursos de defesa civil, considerados a espinha dorsal da “mentalização”, quer da população europeia, quer africana, ao formarem contingentes de agentes “enquadrantes”. Esses cursos procuravam dar expressão concreta aos desejos mais antigos da elite do Ministério do Ultramar, ciente de que a violência racial teria de ser contida. No entanto, um instrumento que deveria ser usado para controlar os impulsos violentos das camadas brancas da população, serviu muito mais como força militarizada, preventiva e ativa. Para a acusação, a genealogia do ódio racial manifestado por Telmo Pires remontava a essas organizações paramilitares: ora porque as ações repressivas suscitavam represálias africanas que traumatizavam os milicianos europeus, assim contribuindo para a manutenção de preconceitos raciais, ora porque incutiam, através das suas escolas, “o espírito heróico do pequeno branco” – algo que seria transversal a outras preleções menos diretamente relacionadas com a guerra, como as que preparavam os técnicos de desenvolvimento comunitário no Instituto do Café de Angola ou na Missão da Extensão Rural9.
Eis a última imagem evocada pelo caso julgado na Relação de Luanda: a geografia punitiva, que ia das irrupções espontâneas de violência racial a uma política deliberada de aterrorização policial dos musseques, passando pelo “arquipélago carcerário” do império, em que certos campos penais se transformavam em aldeias e alguns aldeamentos em espaços de punição indiscriminada. Os capítulos deste livro talvez possam ajudar a explicar porque é que bastava um boato para que um incidente como o do Cazenga, de um europeu branco contra um negro, passasse a ser percecionado como terrorismo anti-português. A condição de desempregado ou vadio, como afirma Juliana Bosslet, aumentava a probabilidade de um africano em Luanda ser suspeito de terrorismo. Creio que este ponto é fundamental para explicar a relação entre lazeres, urbanismo e monopólio estatal da violência física no quadro de uma governação ilegítima. No entender do Ministério Público, para continuarmos no nosso exemplo, o crime cometido por Telmo Pires era ainda mais grave porque “não foi nenhum vadio que o réu assassinou, mas um honrado marceneiro residente no mesmo bairro em que o mataram!” – donde fica patente que existia um certo limiar de impunidade, mesmo aos olhos dos que tinham a coragem de denunciar o racismo institucionalizado na justiça10. Esse limiar era o da ociosidade.
Ao fazer-se sentir nos espaços e tempos do lazer, a segregação racial, em parte determinada pela diferenciação socioeconómica, pressupunha uma economia do ócio, em que as populações brancas da cidade baixa dispunham de um vasto leque de atividades prazerosas que estariam, em princípio, vedadas aos habitantes negros dos subúrbios. As diferenças de classe, quer dizer, de poder económico, não explicam, sozinhas, essa iníqua distribuição dos lazeres. Era o aparelho coercivo do Estado colonial que garantia a rigidez das fronteiras dos espaços e temporalidades do quotidiano extra-laboral. Fê-lo através de uma censura diferenciada nos domínios da imprensa e do cinema, por exemplo. Aquilo que era lido e visto num ponto da cidade já não o era noutro. As mensagens adaptavam-se ao público-alvo, não só porque diferentes posses permitiam deleites diversos, mas também porque essa geografia urbana diferenciada só existia por intervenção das autoridades civis e militares.
Vale a pena notar que as modalidades dessa intervenção contornavam a inexistência de uma política oficial de apartheid através de aproximações, estimativas e análises de risco num quadro de ação psicossocial. Os inúmeros relatórios da polícia política, dos serviços de informação e da polícia de segurança pública são testemunhos dessa intervenção mais baseada em cálculos de risco e probabilidades do que em simples medidas restritivas ou vagas de repressão – que existiram, claro. A censura policial joga com as composições étnicas e sociais dos bairros e dos musseques, com o perfil modal do público de um certo cinema ou de um determinado jornal e com o horário laboral das massas africanas, aplicando a coerção em pontos nevrálgicos do sistema.
Outra das técnicas era a de pressionar as entidades patronais, do comércio e da indústria, para que tomassem a seu cargo a organização dos tempos livres dos trabalhadores, no que se visava “modernizar” a força de trabalho pelo enquadramento e normalização de atividades desportivas, morais e intelectuais. Mas esse adestramento do trabalho, fenómeno bem conhecido das investigações sobre o lazer no mundo ocidental e nos impérios europeus, ganha aqui contornos específicos. Para além de disciplinar a mão-de-obra, o controlo patronal – a que se juntavam iniciativas públicas de “ação e promoção social” – retirava gente ao chamado “terrorismo”, ocupando-a e vigiando-a. Embora a devolução deste tipo de controlo aos privados seja sintomática do corporativismo professado pelo regime autoritário de Lisboa ou de um desenvolvimentismo tardo-colonial, ela está diretamente ligada à relação especial que se estabeleceu entre o Estado colonial e o setor privado durante a guerra da descolonização: uma relação em que capitalistas comerciais e industriais, portugueses ou estrangeiros, grandes e pequenas explorações agropecuárias, hidroelétricas e mineiras, todos foram obrigados, de início, a contribuir para o esforço de guerra, não apenas em termos fiscais, mas também no domínio da auto-defesa11. Na verdade, o Estado colonial teve uma enorme dificuldade em impor aos responsáveis privados (dos exportadores de café a Norte ao consórcio para a exploração da bacia do Cunene a Sul) a ideia de que tinham um interesse na segurança “contrassubversiva” dos fatores de produção, em especial nas zonas em que a “subversão” era ainda latente ou francamente inexistente. Está ainda por estudar o modo como as empresas responderam a este desafio lançado pelos oficiais militares e posto em prática por unidades da defesa civil – a iniciativa privada passava agora, também, por regular militarmente os espaços, os tempos, as circulações de pessoas e mercadorias na área de cada empreendimento. Assim, é certo que a criação de passatempos para a mão-de-obra luandense diversificou artificialmente as oportunidades de lazer no quadro de um desenvolvimentismo tardio, mas não deixou de ser uma medida militar.
É precisamente essa a conclusão a que chega Marcelo Bittencourt. O caso que analisa é dos poucos em que ficam claros os alicerces psicológicos da execução do “desenvolvimento”, pondo a tónica na afinidade entre publicidade capitalista e a ação psicológica contrassubversiva na produção de novos consumidores. O incentivo oficial ao futebol mussequeiro abria uma nova via de acesso às populações suburbanas, acesso esse que era, nas suas palavras, “aparentemente menos político”, complementar ao controlo policial e evidentemente propagandístico, porque enaltecia a obra social portuguesa. Neste domínio, as estruturas e estratégias da contrassubversão acomodaram-se ao interesse comercial, tal como haveriam de vampirizar o campo do urbanismo: a erradicação da ociosidade ou da vadiagem tornou-se o principal objetivo das comissões e grupos de trabalho da contrassubversão, que punham em contacto arquitetos, engenheiros e urbanistas, nos quais se incluíam os modernistas tropicais, e os técnicos do trabalho e da segurança social, sob a batuta dos oficiais militares. Estas entidades mistas foram, de resto, os principais atores no desenho de políticas habitacionais para a periferia luandense.
Pese embora a identificação de laços diretos entre a contra-insurreição e estes outros campos, muitas vezes o contacto deu-se de uma forma mais subtil e indireta. A este respeito, a circulação de ideias entre distritos, mais relevante que a internacional, saiu reforçada pela existência de afinidades de fundo entre princípios e conceitos ainda não cristalizados numa doutrina. Para isso contribuíram não apenas os organismos de vigilância estatal, mas também a administração pública e os cientistas sociais. Tratava-se, nas palavras de Ramada Curto, de um “aparelho repressivo compósito”. Só a interseção das iniciativas e saberes destes atores é que explica porque é que a política de reagrupamento e controle da mobilidade populacional nas zonas rurais em guerra tenha sido projetada para o meio urbano. Em Angola, a guerra colonial reverteu a tendência verificada nos outros países africanos em que a sedentarização da mão-de-obra rural nas cidades levou ao declínio do recurso a passaportes internos. Uma sociologia rural muito simples serviu de repertório de controlo urbano – com a adoção de medidas de quarentena já testadas noutros pontos da colónia – e de normalização da vida citadina – com a ideia de escolas de preparação para a vida moderna (não só no campo, mas para os destribalizados da cidade) e com a equiparação das freguesias às regedorias, dos funcionários públicos às autoridades tradicionais, dos chefes de família ao mesmo tipo de informadores nos aldeamentos.
Uma leitura conjunta destes textos possibilita, por fim, uma última hipótese: as ideias e instituições do chamado desenvolvimentismo do 2.º pós-guerra dependeram, quase sempre, dos interesses militares para se materializarem. O controlo policial, militar e social não foi um simples efeito colateral do desenvolvimento, nem desempenhou um papel meramente instrumental no seu prosseguimento, seja no modo como o pensamento securitário estimulou a viragem para uma política habitacional permanente ou como aproveitou a expansão de novos mercados e penetrou nas formas de governar os lazeres. Ele fomentou mudanças infraestruturais e acomodou-se a outras. No limite, é sempre possível demonstrar os benefícios atuais de antigas concentrações forçadas de populações. Tal como é possível fazer uma história transnacional e económica do arame farpado sem mencionar os fins coercivos para que foi usado no arrebanhamento, não de animais, mas de pessoas. O livro que agora se publica dá mais um passo para evitar esse tipo de interpretações unilaterais.
Do livro (Des)controlo em Luanda: urbanismo, polícia e lazer nos musseques do Império, 2020, Outro Modo, à venda com o Le Monde Diplomatique de janeiro, podendo ser pedido para o email livros.lmd.pt@gmail.com. Consultar coleção aqui.
- 1. Albertino dos Santos F. Almeida (Magistrado do Ministério Público), “Recurso interposto pelo Ministério Público da sentença do julgamento do réu Telmo Pires” (ao Tribunal da Relação de Luanda) in Movimento Democrático de Angola, Massacres Em Luanda (Lisboa: África Editora, 1974), pp. 85-98, 97
- 2. Idem, idem, p. 87.
- 3. Idem, idem, p. 95.
- 4. Idem, idem, p. 91
- 5. Nuno Domingos, “Building a Motor Habitus: Physical Education in the Portuguese Estado Novo” International Review for the Sociology of Sport, Vol. 45, n.º 1 (2010), pp. 23–37; Rahul Kumar, A Pureza Perdida do Desporto: Futebol no Estado Novo, Edições Paquiderme, 2017.
- 6. Albertino Almeida, “Recurso”, p. 95.
- 7. Sobre a cervejaria Portugália, um dos vários blogues de memórias coloniais pode ser encontrado em https://batalhaodeartilharia741.blogspot.com/2010/02/nos-dias-que-antece.... Para um caso de miniaturização na confeitaria Paris-Versailles e descrições de outros locais da modernidade luandense, v. Rita Garcia, Luanda Como Ela Era 1960-1975: História e Memórias de Uma Cidade Inesquecível (Alfragide: Oficina do Livro, 2016), p. 43.
- 8. Gerald J. Bender, Angola under the Portuguese: The Myth and the Reality (Berkeley, Londres: University of California Press, 1978), p. 235, n. 60.
- 9. Albertino Almeida, “Recurso”, pp. 90-91. A disseminação de uma cultura missionária e heroica, como que oposta ao antigo paternalismo do tempo anterior às reformas ultramarinas de 1961, merece um estudo autónomo: os novos técnicos agrícolas e sociais articulavam bem a ideia de que não poderiam reverter ao paternalismo, mas as suas chefias viam no desenvolvimento comunitário uma nova “cruzada da portugalidade no século XX”. Cf., PT/AHD/MU/GM/GNP/RNP/0322/04519, Pareceres do Chefe de Secção e do Presidente da Comissão Interministerial do Café, de 23 e 28 de Março de 1973, respetivamente.
- 10. Albertino Almeida, “Recurso”, p. 89.
- 11. Teresa Furtado, “Defesa dos trabalhadores coloniais - militarização e propaganda das zonas económicas de Angola”, Comunicação apresentada no seminário de História Global e História dos Impérios – Doutoramento em Estudos sobre a Globalização. Biblioteca Nacional de Portugal, 23 de maio de 2018, Lisboa, Portugal.