Informalizar o formal
A cidade informal “fala” e “grita” sobre o desajuste da gestão urbana e do planeamento às necessidades de uma enorme maioria habitacional em todo o mundo. Contém, subentendida, as problemáticas, lógicas, necessidades, dinâmicas que caracterizam as sociedades hipertexto e ensaia, desarticuladamente, algumas das respostas urbanas que estas sociedades necessitam.
Fá-lo desestruturadamente, de entranhas expostas pondo a nu o que Acher chama “as cinco grandes evoluções que parecem caracterizar a terceira revolução urbana moderna”, levanta as questões cruciais das metápoles que exigem do Urbanismo e Arquitectura, nas suas regras, regulamentos, conceitos, política, uma refundação de paradigmas, dos pressupostos, da sua filosofia, como instrumentos privilegiados e reconhecidos de gestão e de intervenção urbana. E ironicamente, a cidade “informal” (onde vivem 2/4 da população mundial), é um laboratório privilegiado para a teoria da Arquitectura e do Urbanismo escrever um capítulo novo.
Há vários anos, quando em 2001 Sebastião Salgado estava em Lisboa com o Chico Buarque, e com o Saramago apresentando a sua exposição TERRA, a Clara Ferreira Alves fez uma mesa redonda com os três. Teve a infeliz ideia de apresentar o Sebastião como um excelente fotógrafo cujo trabalho se centrava nas periferias do mundo. O caldo entornou, o Sebastião Salgado, furioso, perguntou-lhe se 2/4 do mundo lhe parecia uma periferia? E em que mundo ela vivia?… O autismo é bastante semelhante àquele com que se lê as grandes metápoles do mundo. Profissionais, e cidadãos em geral, identificam cidades como os centros consolidados, pequenos, face a áreas urbanas extensas onde vive a maioria da população mundial e às quais se insiste em chamar “informais”.
- Aproximadamente metade da população mundial vive em cidades. Em 2005, um em cada três habitantes vivia em slums. 40% da população mais pobre do mundo é responsável por 5% do rendimento global. 20% da populaçao mais rica do mundo é responsável por 75% do rendimento global. 3/4 da populaçao mundial que vive com menos de 1 dolar por dia, vive em zonas rurais. Aproximadamente metade da população mundial vive em cidades. Em 2005, um em cada 3 habitantes vivia em slums.
Se a evidência e os dados são óbvios, há que perceber a razão de uma enorme resistência mundial em assumir que o que realmente caracteriza uma maioria significativa de metrópoles, são as suas manchas humanas e físicas informais.
Numa primeira análise sabemos também que a evolução económica do mundo dentro de uma lógica globalizante do capitalismo liberal é responsável.
Paralelamente, outros fenómenos contribuíram para isso: a mediatização e o marketing, o valor das peles, os paraísos construídos e o photoshop de pessoas perfeitas, a profunda revolução tecnológica, os seus múltiplos instrumentos e a profunda transformação social e as filosofias de suporte.
A terceira modernidade: Apontamentos sobre evolução na cultura urbana e na cultura artística
Segundo Archer, este é o tempo da terceira modernidade. Ao contrário de várias teorias… estamos cada vez mais modernos. Críticas ao Movimento Moderno juntaram, num caldeirão onde tudo cabe, filósofos, sociólogos, arquitetos… que acreditam que existe uma crise radical e de superação da modernidade. No entanto, as transformações contemporâneas, em vez de anunciarem o fim dessa modernidade, têm vindo a sublinhá-la. “De certa maneira tornamo-nos verdadeiramente modernos cada vez mais depressa pelo reforço recíproco das características que constituem a modernidade”. A sociedade está cada vez mais racional, mais individualista e mais diferenciada. Mais individualista, mas ao mesmo tempo mais socializada e em rede, mais diferenciada mas feita de diferenças de grau e não de natureza, enquanto explora territórios de multi-pertença social e cultural. (Archer,2010)
Talvez a contemporaneidade se tenha libertado apenas de uma racionalidade simplista, e das suas formas de pensamento messiânico, que, na arquitetura e urbanismo, significam uma debilitação destas disciplinas como forma de dominação, poder e autoridade.
As novas metrópoles são cidades sem contexto territorial definido e a sua estrutura básica é a rede de indivíduos. Assenta em fluxos distributivos e numa sociedade hipertexto. Esta cultura urbana contemporânea sobrepõe-se às vilas e às cidades modernas e rege-as por uma série de conexões electrónicas e simultaneamente muito sensoriais, que são o nosso interface com a cidade global.
“A terceira modernidade é uma modernidade reflexiva”. A “terceira revolução urbana moderna” está a potenciar a metapolização, a transformação dos sistemas urbanos de mobilidade e a formação de espaços-tempo individuais.
A racionalidade cada vez mais profunda das acções individuais apoia-se igualmente na teoria dos jogos e das escolhas limitadas, nas teorias da complexidade, do acaso e do caos, que vimos dominar sociedades antigas, ao mesmo tempo que se apoia nas ciências cognitivas (Archer, 2010). Disso falam mais directamente outras manifestações artísticas:” Se as Bienais de hoje (cerca de 50, de grande e média dimensão, espalhadas por todas as geografias) substituem a crítica e o museu como territórios de pensamento, crítica e legitimação, formando assim o mencionado plano horizontal global onde todas as formas de expressão e objectos artísticos vêem garantida a sua subsistência e lugar, desaparecida que está a conflitualidade que gerou as vanguardas e a sua expressão de revolução, denotando uma radical mudança de paradigma entre as transições dos séculos XIX para o XX e deste para o século XXI”.
Mas a abertura ao mito, ao enigma, à loucura, esta rejeição das vanguardas e neovanguardas ( para Bürger, o pós-guerra neo-avant-garde é uma reciclagem vazia de formas e as estratégias das duas primeiras décadas do século XX), surge logo na década de 80 (ou finais de 70) quando Achille Bonito Oliva publicou Transavant-garde International (versão italiana do neo expressionismo) onde os alvos eram a crítica e o pensamento, no fundo todo o século XX até finais da década de 70: em primeiro lugar, Kant; depois, Greenberg, Dada, Duchamp, toda e qualquer noção de forma e conceito (e toda a arte conceptual – performativa, linguística, sensorial).
Num tempo de revolução urbana e transição social e moral, a conflitualidade intrínseca às vanguardas parecem-me relevantes. Hoje desaparecidas, dissolvidas na hibridação do fim dos argumentos, dos Manifestos. Se a passagem ou a mudança do século XIX para o século XX decorreu entre 1876 (Impressionismo) e 1909 (Futurismo), agora, a mudança do século XX para o século XXI está em processo desde a realização da Bienal de Massimiliano Gioni.
A caracterização social da sociedade do hipertexto
Não cabe aqui uma avaliação exaustiva – a tradução da resistência à “cidade informal” é extensiva às outras resistências. Tal como o barco a naufragar do capitalismo industrial liberal resiste à realidade crescente de um capitalismo cognitivo, a resistência dos poderes políticos se agarram aos modelos operativos do urbanismo moderno como um poder que lida em si a capacidade de controlo e desenho físico do futuro, e dá vida aos seus cidadãos, o desespero de batalha perdida da capilaridade sem filtro das trocas de informação que as redes sociais permitem e as armas brancas que são hoje os instrumentos tecnológicos da mais significativa das revoluções do fim do séc. XX – a cibernética.
Estes são tempos de viragem e, como em todos os tempos em que a história mundial muda os dados e as regras do jogo, todas as formas instituídas e calcinadas se tentaram manter num grito agonizante: o poder que não quer partilhar o poder não deixa de ter poder, a economia que suga o tutano dos últimos ossos, a moral que prefere gritar “declínio moral” em vez de perceber que estamos já numa “transição moral” que fala de emancipação dos indivíduos perante a imposição de regras “supramorais”, usando as reivindicações de classe, o individualismo e, sobretudo, com a vontade de ser “livre e colectivo”, do industrial feito à medida dentro da massificação produtiva, de ser ou pelo menos a ilusão de ser, através dos mais eficazes canais abertos por si. Hoje verdadeiros poderes de construção de outras sociedades e consequentemente de outras cidades.
Modos de abordagem
“As formas das cidades, quer tenham sido pensadas de raiz ou sejam resultado mais ou menos espontâneo de diversas dinâmicas, cristalizam e reflectem as logicas da sociedade que as acolhem. No campo do urbanismo requer-se uma compreensão fina de logicas em jogo da sociedade contemporânea” diz Ascher, para encontrar e desenhar a tradução física dessas lógicas
A história das cidades sempre foi ritmada pela história das técnicas de transporte e armazenamento de bens (B) de informações (I) e de pessoas (P). Este sistema de mobilidade (BIP) está no centro das dinamicas urbanas, hoje substancialmente reforçado pelos instrumentos tecnológicos.
É também nas cidades “informais” que vamos encontrar matéria urbana que fala e grita, na sua expressão física, das necessidades de refundar as regras do planeamento, da necessidade de análise sobre a tradução física (embora formalmente pobre) da metapolitização, a transformação dos sistemas urbanos de mobilidade, na formação de espaços-tempo individuais e na redefinição das relações entre interesses individuais, colectivos e gerais e nas novas relações com os riscos.
A avaliação cruzada entre as chamadas variáveis fundamentais em que as estruturas dos bairros informais assentam e as transformações e evoluções estruturais das vidas urbanas das sociedades hipertexto consistem em eixos estruturais de analise. Como layers de sobreposição obter-se-á denominadores comuns e as invariáveis capazes identificar, sistematizar e de categorizar. Será ambicioso falar em escrever um novo capitulo na teoria da arquitetura com estes novos conceitos e a sua tradução num léxico?
A abordagem das evoluções da chamada terceira revolução urbana moderna tem sido afloradas pelo chamado New Urbanism. A carta dos seus princípios, aplicada aos E.U.A. não é um manifesto mas rompe com as formas urbanas que se desenvolveram nos E.U.A. no interior e proximidade de grandes aglomerações, numa aproximação aos modelos impostos pelas “gated communities”.
Mas a sua revisão em contexto mais alargado e a validação e categorização dos princípios do novo urbanismo no contexto das cidades informais pretende avaliar a contribuição da informalidade nas evoluções das teorias urbanas e no planeamento urbanos das cidades.
As 4 variáveis fundamentais da estrutura dos bairros informais a ter em conta são
1. O processo de ocupação do solo à escala metapolitana e a formação do valor do solo urbano
2. As condições de acessibilidade desses bairros
3. O planeamento como disciplina fundamental dentro da qual deve ser analisada a cidade informal, porque embora não tenha nenhuma intervenção na formação e desenvolvimento dos mesmos como sistema genérico de intervenção na transformação do espaço urbano, têm uma influência decisiva, mesmo que se tenham que acrescentar alguns parâmetros novos como trama de avaliação e intervenção na cidade
4. o processo tipológico informal e a estrutura social da família, a formação urbanística do bairro e a extrapolação das suas lógicas urbanas
As transformações e evoluções estruturais das vidas urbanas das sociedades hipertexto e a analise a cruzar e sobrepor com as mesmas, nas cidades informais, baseadas em:
1.- A Metapolização
2.- A transformação dos sistemas urbanos de mobilidade
3.- A formação dos espaços-tempo individuai a redefinição das relações entre interesses individuais, colectivos e gerais
4.- Novas relações com riscos económicos (a lógica dos actores globais e locais)
A metapolização, como a globalização, induzem um duplo processo de homogeneização e de diferenciação. Homogeneização porque os mesmos actores económicos ou o mesmo tipo de actores econômicos estão presentes, com as mesmas lógicas em todos os países e em todas as cidades.
Diferenciação porque a concorrência interurbana se alarga e anima, acentuando a importância das diferenças. As escolhas que os actores locais podem fazer são assim cada vez mais numerosas e o contacto dos territórios “locais” com o “global” faz aparecer as diferenças e encoraja a intervenção (ex: o mercado de roupas é abastecido a distância pela circulação de pessoas e bens a partir do mercado do relógio em Lisboa, do Rio Janeiro e da China.
O uso das TIC não se substitui em termos de igualdade aos transportes. O cara a cara continuam a ser meios de comunicação privilegiados: a acessibilidade física, a possibilidade do encontro, são e sempre serão a riqueza dos lugares urbanos. E se por um lado há uma banalização do audiovisual através do desenvolvimento das tecnologias cada vez mais tudo o que é directo, as sensações táteis, olfactivas, gustativas são valorizadas e necessárias.
Nos meios pobres estas tecnologias possibilitam o acesso, mesmo que só virtual a pessoas, situações, acontecimentos impossíveis segundo as hierarquias sócio econômicas dos meios a que pertencem.
Os meios de transporte individuais (automóvel, motas, bicicletas, patins… Exprimem, cada um à sua maneira, a exigência crescente de autonomia e velocidade. a sociedade organiza-se a volta e a base dessa individualização, inclusivamente para melhorar os desempenhos econômicos. Se é geral que os citadinos escolhe, cada vez mais os lugares e os horários das suas actividades, a informalidade que vive de uma economia auto-geradora em pequena escala e disso um bom exemplo. É bem o exemplo da chamada dessincronização e deslocação e recolocação (ex: o telemóvel permite marcar e desmarcar a última da hora, mudar o lugar e os tempos.
A cidade informal fala-nos do conceito contemporâneo de “Ser livres em conjunto”. Vive de incertezas da vida quotidiana e respostas possíveis a elas. A vida econômica da cidade informal permite a adaptação a um contexto mais variado, a circunstâncias menos previsíveis. A Flexibilidade e uma noção chave no trabalho e fora dele. A informalidade responde 24x 24: o pão que se compra na rua, o concerto de pneus, as refeições, os botequins abertos, o arranjo. urgente de um tubo de água ou luz…
Sendo naturalmente uma necessidade apetrechar as cidades densas de redes de transportes urbanos colectivos, com itinerários fixos, horários fixos, por eixos estruturais da cidade que permitam uma deslocação da massa humana, é igualmente necessário apetrechá-los de serviços públicos de transporte mais individualizado que cruzem as redes de itinerários fixos mas que sirvam o movimento em tantas direcções do que se hoje se faz a vida urbana.
E os candongueiros (serviços colectivos privados de pequena lotação que cobrem variados circuitos urbanos de todo o território metapolizado e garantem a possibilidade de circulação da população) são disso exemplo. Respondem à necessidade de serviço quase porta-a-porta. São a tradução, embora desarticulada, da necessidade contemporânea das populações circularem diariamente entre vários lugares onde desenvolvem a sua vida social e económica.
O comércio electrónico não substitui a importância do comércio local. Dentro da mesma lógica das TIC, a cidade móvel e telecomunicante dentro das novas arbitragens entre deslocações de pessoas, dos bens e das informações, precisa de ser animada por acontecimentos que exigem presença, e o mundo sensorial é cada vez mais evocado a fazer o contraponto do mundo virtual.
Esta flexibilidade na oferta de serviços e no tempo é completamente contemporânea e fala da necessidade de rever a concepção de equipamentos públicos e serviços, essenciais da urbanidade. A Segmentação de mercados progressivamente mais especializado e flutuante é uma resposta mais adequada à diversificação de necessidades sociais dentro do princípio do “um-para-um”.
As dificuldades económicas e/ou culturais são nalguns grupos sociais ou etários um factor de desigualdade. A cidade informal fala-nos também da necessidade de recurso a princípios de equidade. Numa sociedade a n dimensões e em territórios que mudam de tamanho e de natureza conforme as práticas e as mobilidades individuais mais do que a igualdade, a equidade é uma necessidade fundamental do equilíbrio urbano.
A cidade informal como laboratório privilegiado da refundação do planeamento da cidade contemporânea
Mais valias a potenciar
Aprioristicamente a cidade informal enuncia uma série de mais-valias e aprendizagens que identifico como válidas como base da pertinência de a construir o léxico da cidade informal e do seu paralelismo com os léxicos contemporâneos da sociedade hipertexto:
- A urbanização informal é uma forma gerada e desenvolvida a partir do seu próprio processo tipológico.
- Directa participação dos cidadãos na redução do défice residencial e na resolução do problema capital da habitação se de uma forma mais organizada.
- Capitalização possível de uma percentagem significativa de população jovem e desempregada, da capitalização da sua iniciativa, habilidade, tempo livre e poupanças económicas.
- O valor do processo tipológico informal como proposta de crescimento da cidade.
- O Paralelismo entre o desenvolvimento das habitações e a formação urbanística do bairro e extrapolação das suas logicas urbanas.
- A construção no tempo como modo social contemporâneo.
O valor dialético do processo de urbanização informal e os seus contributos para a refundação do planeamento podem fazer-se através da análise comparativa do processo de construção, da sua relação com evolução da família usuária, dos mecanismos de adjudicação, da natureza do “produto”, do problema especulativo do valor dos solos rurais, periurbanos e urbanos que alimentam os mercados e condicionam o desenvolvimento urbano das cidades.
- Obrigam a olhar de frente para a equação do que é hoje a transformação permanente da estrutura social da família; As respostas às flutuações e instabilidade económica, a mobilidade e fluxo como eixo central da revolução urbana, as alternativas criativas das dinâmicas urbanas e a construção das redes económicas ante a quase inexistência do estado social.
- A cultura oral vigente na cidade informal como a mais antiga expressão das redes sociais actuais é uma matriz de aprendizagem das lógicas sociais subjacentes
- O comércio informal fala da importância do valor da transacção das logicas das redes globais.
- Obriga-nos a equacionar soluções urbanas para “cidades (para) jovens, já que a maior percentagem desta população é muito jovem.
Gestão urbana e governância interactiva
Estas sociedades hipertexto caracterizadas por laços sociais “mais fracos”, menos estáveis, mais numerosos e variados, imbricados nas múltiplas redes, furam todas as organizações políticas de gestão urbana que pretendem integrar posições e até adesões, sobre um grande número de questões, num mesmo conjunto ideológico ou mesmo programático. É necessário renovar profundamente as modalidades de definição dos interesses colectivos e da construção das decisões públicas sobre a cidade. É necessário uma refundação da arquitetura institucional do território e uma renovação do funcionamento da democracia em geral e da local. Ascher sugere-nos uma revisão segundo o princípio das bonecas russas (matrioskas): quarteirão, bairro, freguesia, concelho, cidade, região. Hoje, em que estamos todos a empobrecer e que o aumento progressivo do desemprego mundial atira para o saco da população excluída do desenvolvimento económico uma percentagem significativa da população, a coesão social e urbana estão em risco. E com ela, as manifestações de ruptura dos laços de solidariedade locais, nacionais e mundiais. Por todas estas razões, demasiadamente evidentes, a equidade é o conceito social fundamental do que devem ser as políticas urbanas.
A cidade informal que fala da maneira como os próprios indivíduos representam para si mesmos as suas situações, os seus comportamentos e as suas acções, não podem ser vistos como inimigos mas sim como agentes participantes da transformação e até da acção do poder político, correndo estes o risco de sem eles não poderem agir. Numa opção muito mais lucida a governância interactiva responde melhor do que os métodos tradicionais de governo. Mesmo sabendo que os conflitos serão sempre inevitáveis e que nem tudo pode ser resolvido pelo debate, o individualismo, tal como hoje se institucionalizou não deve ser considerado como egoísmo. Este, associado a um declínio moral precisa de ser lido como “transição moral”. Fala da emancipação dos indivíduos perante as obrigações impostas pelas regras superiores. Estes mesmos indivíduos impõem hoje uma alteração que fundamente o respeito pelas regras, códigos e valores, mais adaptáveis às necessidades desta sociedade.
E por isso o que hoje se podem chamar politicas locais para terem êxito constroem-se mais pelas dinâmicas dos projectos do que pelo cumprimento de um programa, mais por soluções ah-hoc do que pela rigidez da aplicação de normas, mais por consensos parciais do que por grandes decisões globais: risco e gestão de risco são princípios de precaução que alteram substancialmente os moldes da gestão das cidades.
Basta olhar para a debilidade do planeamento, para o seu incumprimento e sobretudo para o desfasamento entre o número de habitações formais, o número de habitações informais e para as necessidades mínimas de equipamento social e infraestrutura, muito aquém do elementar sentido urbano. Basta olhar para a rigidez das normas, os crescentes regulamentos e leis e a pouca amplitude da maioria das pessoas de as aplicar. Basta olhar para os canais abertos, para o crédito à habitação, e o número de beneficiários dos mesmos em função da sua renda. Basta olhar para a quantidade de cidade construída que desconhece e contradiz frontalmente os mecanismos formais e os instrumentos do poder, supostamente reveladores, para perceber a necessidade urgente de refundar o planeamento e a arquitetura institucional do território.
Aceitá-lo é inevitável. Mas é preciso reconvertê-lo e institucionaliza-lo. A validação do mesmo virá em função do papel que desempenha no contexto económico e social em que se implemente. O planeamento, embora não intervenha directamente na formação e desenvolvimento dos bairros informais, terá como imagem alternativa, na altura do seu aparecimento e como sistema genérico de intervenção na transformação, uma influência decisiva. O planeamento como intervenção na cidade informal representará o instrumento através do qual se realiza e legaliza o papel mais significativo no que respeita à transformação, reabilitação e crescimento urbano.
Novo capítulo da Teoria da Arquitectura e Urbanismo
À informalidade falta o conhecimento teórico, a categorização destes conceitos só recentemente começados a identificar, mas não sistematizados pela teoria do urbanismo. Através dela se fará reconhecível. A abordagem do chamado novo urbanismo, baseado no sistema metapolitano enunciou já os seus princípios dentro da abordagem da cidade formal. Como qualquer novo movimento, contradiz o anterior, redefine as premissas de abordagem, os conceitos de base e as hipóteses de desenho de caminhos. Contrapõe-se ao urbanismo moderno, porque filosoficamente diferente das correntes de desenho urbano como instrumento de controlo “superior” da gestão do espaço e do desenvolvimento condicionado que propunha balizas com que definia espaço urbano e se impunha como orientador dos usos sociais e económicos do mesmo. As cidades que se geraram pela informalidade são a demonstração da incapacidade do urbanismo moderno em se afirmar no seu sentido messiânico e são o laboratório onde melhor poderemos ensaiar a revisão do papel, das regras e das normas que nos exigem hoje as sociedades hipertexto. Será o facto de se assumirem como uma forma não controlada pelo poder que inibe a sua assumpção? Será que a sua expressão formal pobre e a dramática ausência de infraestrutura bloqueiam o reconhecimento das suas potencialidades intrínsecas como capital de transformação das regras do planeamento?
A pobreza estampada no seu rosto urbano e sobretudo a ausência de infraestrutura condicionam a capacidade de reconhecer, estudar, validar a pertinência das suas logicas modernas e reconhecer que nela podemos encontrar e estudar alguns ingredientes fundamentais para desenhar a refundação do planeamento da terceira modernidade.
Daí a pertinência de falar em informalizar o formal e introduzir a validade crítica da informalidade face às políticas convencionais. Gritante é a sua maneira de lidar com a habitação autoconstruída à qual se contrapõem programas de habitação social. Os chamados bairros sociais apenas agudizam os desajustes da marginalidade, potenciados pelos modelos de espaço urbano implantados, estéreis de referências e logicas culturais, sociais e económicas. Estes espartilhos de logicas, completamente desajustada, estão condenados a não se constituírem como alternativa, já que partem de conceitos e preconceitos desde logo desmentidos pelas estatísticas: pensados para um princípio de minorias (quando afinal significam ¾ da população mundial), construídos não como uma forma urbana que proponha, com o desenho do espaço, um alternativa credível de revitalização e dignificação da vida humana mas como contentores formais cuja pele dá uma face mais lavada à cidade mas cujo conteúdo vive em conflito com os modelos físicos e sociais vigentes, de cariz estático e dogmático, apoiado numa estigmatização da pobreza, nas imagens propagandeadas da vida dos sonhos, com que o marketing das logicas imobiliárias nos bombardeia, e nas logicas economicistas capitalistas que imprimem um estatuto de exclusão, de mundo a abater (e nunca a compreender ou aprender com ele), a uma realidade física e social mundialmente alargada.
A esta terceira modernidade tem que corresponder uma mutação profunda da maneira de produzir, utilizar e de gerir os territórios em geral e as cidades autenticas (as informais) em particular.
Os tempos são de mudança. Mas os novos compromissos continuam a ser o desenvolvimento económico, a equidade social, qualidade ambiental e a preservação dos recursos não renováveis. E se num olhar superficial parece haver uma ruptura entre modernidade e contemporaneidade, a continuidade é profunda como um rio que corre, subterrâneo. “A utopia moderna persistirá e deveria persistir como possível metáfora social e não como provável obrigação social”.
Uma relação com a vida que admita variações de estado e uso, tolere desvios, suporte os excessos, albergue os risos, como modo de ser das cidades, sincréticas, embaladas pelo seu crioulismo provocante, que vive atrás do seu sorriso.
Como diz Júlio Teles Grilo, “ têm de compreender o difícil que é explicar aos outros como nós, arquitetos, somos parte financeiros, parte políticos, parte sociólogos, parte artistas, parte engenheiros, parte de muitas partes mas nunca especificamente nenhuma.
E dizer-lhes que todas as coisas são assim como o pão que tem farinha e fermento e sal e água, e no fim, é pão.