Por que são as estátuas derrubadas?
O papel das estátuas e dos monumentos coloniais é, portanto, fazer ressurgir no palco do presente os mortos que, quando vivos, atormentaram, muitas vezes pelo fio da espada, a existência dos negros. Essas estátuas funcionam como ritos de evocação de defuntos, aos olhos dos quais a humanidade negra nunca contou para nada – razão pela qual jamais tiveram quaisquer escrúpulos em fazer, por nada, verter seu sangue. - Achille Mbembe
I – Como quem entra distraidamente em uma videoconferência com o seu microfone aberto, chegamos pedindo desculpas. Solicitamos escusas por um título que não se contenta com uma resposta simples e rápida. Pois, com ele procuraremos deslocar um questionamento surgido nas mídias sociais nos últimos meses. É sabido que o covarde assassinato de George Floyd, um cidadão negro, por um policial branco em uma rua de Minneapolis, desencadeou – sobretudo –, sob a batuta do movimento Black Lives Matter – diversas ações populares de derrubadas de estátuas representativas do passado colonial. Isto é, de uma certa versão “vencedora” desse passado. A primeira obra de metal a cair foi a de Edward Colston, em Bristol, Inglaterra. Nos setores assumidamente de esquerda levantou-se rapidamente a questão: “Podemos destruir estátuas?” Já entre alguns setores ditos de direita nem chegou a haver o questionamento, pois seus membros logo mostraram-se dispostos à manutenção do status quo a todo custo, chegando ao cúmulo do presidente norte-americano vir a público reivindicar o posto de guardião mundial de estátuas, incluindo, para espanto geral, a do Cristo Redentor. Dando um passo atrás antes de tomar uma posição diante de uma questão que move tantas paixões, pensamos que antes de questionarmos se podemos ou não colocar estátuas abaixo, precisamos de nos perguntar por que elas foram e são derrubadas ao longo da história. O direcionamento dessas indagações visam fomentar argumentos mais sólidos a serem usados no debate público sobre o assunto, e, em parte, responder a quem acredita que, com tal ação popular, “se apaga a história”.
Esperamos mostrar que, por distintos motivos, durante milênios estátuas foram derrubadas. Evitando possíveis sustos por bruscos deslocamentos temporais e geográficos, cabe avisar que neste ensaio os atos de destruição serão abordados de forma assíncrona, uma vez que buscamos escapar de qualquer concepção evolutiva das práticas e das representações. Contudo, existem duas constantes que acompanham toda essa história, ambas centradas no artefato em questão. A primeira é o sentido de “representação” que está circunscrito à confecção de um corpo humano em pedra, metal ou em qualquer outra matéria prima, e a sua relação com um conceito um tanto escorregadio – o de poder. Tal relação foi esmiuçada por Carlo Ginzburg. A ambiguidade que o conceito de “representação” comporta durante a Idade Média – evocando simultaneamente ausência e presença – estava subsumida no corpo de cera feito nas cerimônias fúnebres dos reis. Ginzburg coloca o conceito de poder no centro da construção dos simulacros de corpos, e em seu resultado final e intencional, a representação do rei1. Não é recente a relação entre estátuas, memória e poder político, tampouco foi uma invenção do medievo, como erroneamente pode se supor apenas pela análise apressada do conceito de representação da realeza. A relação entre poder, corpo e representação é coisa mais antiga, como mostrou o historiador.
Advinda das reflexões de Alfred Gell, a segunda constante que queremos destacar, aparentemente em conflito com a primeira, - mas apenas aparentemente –, é a concepção de que “coisas” atuam como agentes sociais2. É inescapável: objetos estão em constante relação com os sujeitos. Nesse sentido, objetos que têm o formato do corpo humano possuem dupla agência. Trocando em miúdos: assim como outros objetos, estátuas que remetem a forma humana afetam intensamente as emoções dos sujeitos de carne e osso. Em algumas circunstâncias, as personificações inanimadas podem inclusive adquirir vida, ou algumas propriedades ontológicas. Exemplos disso não faltam em nosso cotidiano. No cinema, para focar na mídia mundializada por Hollywood, as advertências vão desde o retorno do mito de Pigmalião presente em idealizações cibernéticas futuristas (Blade Runner, Mulher Nota 1000, Mulheres Perfeitas); passando pelo riso provocado pela interação de cidadãos incautos com as estátuas de personagens históricos (Uma noite no museu); chegando ao puro horror evocado pela vingança de estátuas e bonecos afins (O carrasco de pedra, Brinquedo Assassino, Anabelle).
Estes e outros exemplos são apenas coisas do imaginário social, que não merecem muita atenção, dirá o cético que sonha tocar numa escultura de Rodin; que um dia chorou por ter um boneco pisoteado pelo amiguinho do colégio; que já acordou cedo, num sábado de aleluia, só para alegremente malhar o boneco de Judas amarrado num poste de rua; enfim, o sujeito que reagiu de forma violenta ao acreditar que sua honra foi ofendida com a derrubada da estátua de um colonizador branco. O fato é que estas “coisas do imaginário”, personificadas em diversos materiais, incitam os sujeitos a agirem. Nesse sentido, explicações simplistas, de cunho conservador, baseadas em assertivas que usam o termo “vandalismo” são preguiçosas, vazias de sentido, não explicando absolutamente nada sobre um fenômeno sociopolítico como a destruição de estátuas. O sinuoso percurso que percorremos partirá das terras do Tio Sam, e terminará do outro lado do Atlântico, também nas terras em que muitos lucraram com o nefando mercado de gentes.
II – Certa vez, em Nova York, mais precisamente em Bowling Green, Lower Manhattan, alguns cidadãos se reuniram na surdina da noite para botar abaixo a estátua de uma poderosa figura. Tratava-se da representação de um sujeito considerado, deste lado do Atlântico, um déspota, um explorador, um injusto. A estátua equestre, que se assemelhava a de um imperador romano, foi então rapidamente enlaçada por cordas, e com os puxões e as marteladas em sua base não apresentou maiores dificuldades em cair por terra. Desta maneira, em 9 de julho de 1776, a estátua do rei George III, com apenas seis anos de existência, foi destruída no contexto dos movimentos da independência da até então América Inglesa. Existem diversas gravuras que representam toda essa operação. Uma das mais interessantes, publicada em Paris pouco depois do acontecido, mostra a estátua do rei de forma mais simples, sem o cavalo, fincada em uma esquina entre prédios. Nessa gravura colorida, vê-se vários homens negros de turbantes com cordas tensionadas seguras em suas mãos. Eles são acompanhados de homens brancos pobres – como deixam notar os seus pés descalços –, que marretam o pedestal do monumento. Esta iconografia circulou nas Américas e na Europa, sendo usada até em vistas perspectivadas postas em máquinas que ampliavam a percepção visual dos observadores presentes nos salões, as famosas zogascrope.
Não surpreende que a derrubada da imagem de um monarca tenha sido notícia retumbante em sociedades governadas por lógicas de Antigo Regime, provocando um misto de aversão, curiosidade e apreensão entre a nobreza e a aristocracia. Por outro lado, a cena deve ter causado admiração para os grupos que viam estes nobres e aristocratas como inimigos, já que não tardou muito para que na França, onde a gravura fora publicada, um monarca fosse derrubado. A queda de homens poderosos figurados em metal, ou em pedra, causou diferentes formas de comoção em sociedades de todos os tipos. Como na ocasião que selou o destino da estátua do rei George III e da América Inglesa, sabemos que as derrocadas de regimes políticos são ocasiões ideais para a derrubada de um sujeito do pedestal. A cena final de um filme contemporâneo ajuda na melhor percepção visual disto.
III – Adeus, Lenin!, filme alemão lançado em 2003, narra as agruras de um filho, na Alemanha Oriental, para proteger sua mãe, uma professora mergulhada em coma profundo. O diagnóstico dos médicos é claro: ao despertar de seu estado, a mulher não resistirá a nenhum abalo nervoso. O problema é que a professora, ferrenha defensora do regime comunista, acorda em um país que não mais existe. O muro caiu e o regime também. O que faz então seu dedicado filho? Transforma seu quarto em uma versão em miniatura da RDA, mantendo todas as transformações sociais e culturais do lado de fora, incluindo, é claro, a invasão de propagandas capitalistas. Depois do desenrolar de várias cenas hilárias envolvendo a manutenção, a todo o custo, do regime político em um único aposento, vê-se o filho vencido pelo cansaço dormindo profundamente, enquanto a mãe, determinada a tomar um pouco de ar fresco, depois de meses de confinamento, sai do quarto. Em seu caminho, a professora estranha os seus novos vizinhos, os novos modelos de carros e todas as propagandas que dominam os outdoors. A mulher fica parada em uma calçada, confusa olhando para o céu. É nesse momento, que entre os prédios, surge Lenin. Ou melhor, a sua monumental estátua sendo carregada por um helicóptero. Com a mão erguida, o monumento passa bem próximo da professora, como se estivesse acenando com um singelo adeus, para então desaparecer de vez rumo ao pôr do sol. A melancólica despedida de Lenin colige a crença em uma ideologia política e os afetos que os dispositivos imagéticos, como as estátuas, podem provocar nos sujeitos. O diretor Wolfgang Becker criou uma cena que não poderia ser mais emblemática. Com ela aprendemos que a relação com estátuas provocam uma gama de emoções, tanto quanto uma partida de futebol.
IV – No dia 11 de agosto de 2010, no estádio El Azteca, a Espanha enfrentou o México diante de cerca de cem mil pessoas. A partida futebolística fora um amistoso organizado para iniciar as comemorações pelo bicentenário da independência do México. Neste dia, houve um resultado diferente do ocorrido séculos antes, quando os colonizadores espanhóis então pisaram no recém “descoberto” Novo Mundo, a partida no El Azteca terminou em um frio empate de um a um. Se no jogo de futebol não houve muita emoção, no campo das disputas históricas os dias foram de forte disputas sobre o passado e seus usos no tempo presente. No dia seguinte ao certame, os jornais noticiaram que em Medellín, município de Badajoz, Espanha, uma escultura do século XIX representando Hernán Cortéz fora manchada com tinta vermelha. Um grupo intitulado “Cidadãos Anônimos” reivindicou a autoria do ataque contra aquele que as autoridades locais chamavam de um “ilustre filho de Badajoz”. O coletivo emitiu uma nota na qual afirmava que aquela estátua do colonizador era um insulto ao povo mexicano. Por outro lado, Antonio Parral, Alcalde de Medellín, acusou o grupo de ter desconhecimento histórico e documental, pois Cortez, tratado como o “ilustre filho da vila”, não estava com o pé sobre a cabeça decapitada de um índio, “mas tão somente a de um ídolo da cultura azteca”. Parral fala como um típico descendente de católicos – que, no século XVI, em solo europeu, tentavam defender suas imagens religiosas dos ataques protestantes – enquanto, no Novo Mundo, destruíam estátuas de divindades ameríndias sob a acusação de idolatria. Para os cristãos, a ideia de representar o divino poderia ser questionável e talvez condenável, o que revela as instabilidades da tentativa de separação entre imagem e ídolo. Para os ameríndios, a noção europeia de representação simplesmente não fazia o menor sentido.
Eis, no enunciado do Alcalde, uma história antiga, com raízes político-religiosas bem anteriores ao cristianismo. Não obstante, foi junto aos primeiros cristãos que de fato surgiram sérias querelas em torno do tema, impondo aos pensadores do período uma considerável labuta reflexiva sobre o nascente conceito de idolatria. Marie-José Modzain, esclarece que o tema da idolatria serviu como poderoso elemento de alteridade entre cristãos e não cristãos. Idólatra passou a ser sinônimo de não cristão, e “a palavra de ordem era inapelável: é preciso destruir os ídolos. Só com o desaparecimento material deles desapareceria a ameaça de sua ficção poderosa. Isso significava duas coisas: primeiro, que eles eram temidos por possuírem um poder; segundo, que bastava quebrá-los para que esse temor e esse poder desaparecessem”3. Não é preciso apelar à memória da controvérsia iconoclasta ocorrida em Bizâncio (726-843) para compreender o sentido político que está envolvido na destruição de imagens de figuras consideradas inimigas por determinados grupos. Para isto, não há nada melhor que uma revolução política e social de uma época um pouco mais próxima à nossa, e que foi a responsável pelo aperfeiçoamento de alguns conceitos importantes do vocabulário político moderno.
V – Hoje, em diversos países, vozes conservadoras acusam os que derrubam estátuas em homenagem a conquistadores, colonizadores e escravocratas, gritando: “Não passam de vândalos”! Este termo, relacionado a um dos povos que invadiram e saquearam Roma no século V, ganhou o sentido de “derrubadores de monumentos” e de “desordeiros” na boca de um abade durante a Revolução Francesa. O religioso Henri Gregoire era favorável ao movimento político revolucionário, e à remoção de monumentos do Antigo Regime, mas não era nem um pouco a favor das suas destruições, ato que considerou próprio de vândalos. Os apelos de Gregoire não vingaram, pois, dentre outras, duas estátuas de Luís XIV vieram abaixo. Peter Burke lembra que, anos depois, na Comuna, em 1871, ninguém menos do que o pintor Gustave Courbet – artista que, nos dias atuais, por motivos conservadores e moralistas, tem vedada nas mídias sociais a sua obra A origem do mundo – foi quem ficou responsável por demolir monumentos napoleônicos da Praça Vendôme4. A França, que nos legou modelos urbanos e políticos, parece ter um histórico com os destruidores de estátuas.
Para deslocar ainda mais as imagens para o centro do dissenso político, lançamos mão das palavras de Jacques Rancière, para quem a “política é a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns”5. As pessoas que hoje derrubam estátuas, nas ruas dos Estados Unidos e em países europeus, não são reconhecidas publicamente como Courbet foi em sua época. São sujeitos anônimos. Sujeitos que se uniram após o assassinato de George Floyd para reconfigurarem a paisagem urbana dominada, em algumas localidades, pelos simulacros de comerciantes de escravos e de personagens historicamente reconhecidos como racistas. Um movimento antirracista de alcance internacional se levantou pelo cidadão que foi assassinado ao ser brutalmente impedido, por um agente do Estado, de se levantar e de respirar.
Arriscamos afirmar que a contemporânea sanha conservadora contra os derrubadores de estátuas é inflamada, em parte, porque esta ação foi exercida por um grupo de anônimos, num movimento popular, nos fazendo lembrar o que disse Rancière: “Enquanto a política propriamente dita consiste na produção de sujeitos que dão voz aos anônimos, a política própria à arte no regime estético consiste na elaboração do mundo sensível do anônimo, dos modos do isso e do eu, do qual emergem mundos próprios do nós político”6. Para melhor perceber “o regime estético” envolvido na mobilização de anônimos contra uma estátua de um poderoso comerciante e filantropo na terra do Rei George III, é fundamental que se faça uma análise, por meio de imagens, deste significativo momento na contemporânea controvérsia. A partir daqui, perceberemos tal derrocada da representação de um mercador de escravos inglês, logo, a queda de um dispositivo da memória do poder político-econômico eurocentrado, no âmbito de uma estética subsumida na ação política, em uma inesperada “performance pós-colonial”. Nosso interesse, como já deve ter ficado claro, é do âmbito do que se denomina Cultura Visual. Apelamos para a noção de “levante”, retomando questões em torno dos conceitos de representação e de poder com as quais iniciamos este texto. Representações, poder e levante se entrelaçam na derrubada da estátua, tal percepção fica mais evidente ao levarmos em conta a concepção de Judith Butler, para quem “os levantes vêm mais da indignação, da recusa, da raiva, de uma condição em que se vê a dignidade, vinculada aos limites morais do que deve ser suportado, negada ou aniquilada”7.
VI – Como é típico das redes sociais, no início do mês de junho deste ano fomos saturados com imagens da derrubada da estátua de Edward Colston, inglês que fez fortuna com o comércio além-mar, em especial os negócios ingleses no continente africano que envolviam o transporte de africanos escravizados para as colônias britânicas no caribe. No entanto, apostamos que poucas pessoas de fato olharam para a estátua confeccionada pelo artista John Cassidy, em 1895. Pudera, nas fotografias tiradas em Bristol, os corpos dos anônimos em movimento de levante eram mais interessantes do que o corpo estático de Colston. O que importa isso, afinal de contas? Em tudo e em nada, a depender do que se pretenda ao vê-la. Em nosso caso, na busca de indícios sobre o regime estético envolvido na ação, importa saber o que exatamente ela representava para além de um possível gentleman de casaca. Como naquele corpo de bronze estava representado o poder de um homem, se o que vemos é apenas um velho se apoiando? Um velho com seu bastão, cansado. Todavia, não nos deixemos enganar. O poder é representado de várias formas. Uma delas é relacionada a um valor muito em voga na sociedade vitoriana – a caridade. O filantropo era, sem dúvidas, uma figura que emanava poder em uma sociedade mergulhada na miséria advinda, em parte, da concentração de riquezas que culminou na denominada Revolução Industrial. Colston era o oposto da figura mesquinha do velho Crooge de Dikens, pois seu nome figura em muitas obras de caridade na cidade de Bristol, sobretudo as de cunho educacional. Não à toa, sua estátua é resultado de um agradecimento dos citadinos, já passados mais de cem anos de sua morte.
Na imagem de um filantropo não cabia pompa, como mostra a estátua daquele que, no século XIX, ficou conhecido como o pai da filantropia, o banqueiro e mercador norte-americano George Peabody. O velho George, cuja trajetória diverge, em parte, da de Colston, ganhou sua estátua em 1869, pouco depois de sua morte. Sem dúvida ele era um homem poderoso política e economicamente, mas não era de bom tom ser representado como um deus na terra ou algo que o valesse, da típica forma como os governantes do Antigo Regime se faziam representar. A filantropia exigia humildade para não ser confundida com a mesquinharia, a soberba e a outros valores negativos. Desta forma, George foi imortalizado descansando em sua simples cadeira. Relaxado e de pernas cruzadas, ele parece observar os frutos de sua labuta materializada em obras de caridade. Do outro lado do Atlântico, Colston também parece cansado, pois, mesmo que de pé, a cabeça pesa sobre a sua mão, que por sua vez transmite a soma do fardo para o bastão. Encrustados no pedestal que o sustenta, quatro representações de dolphins, seres marinhos estereotipados que figuram em muitas cartografias da Época Moderna, são os únicos indícios imagéticos de sua relação com o além-mar. Há uma placa – uma boa estátua oitocentista sempre possui uma – pela qual somos informados que Colston é considerado um filho virtuoso e sábio daquela cidade. Nenhum sinal dos navios tumbeiros que fizeram a sua fortuna.
Dos dois lados do Atlântico, o descanso evocado pelos corpos das estátuas dedicadas a comerciantes e filantropos denota o esforço que empregaram em suas empresas. Entretanto, nada de se enganar, não se trata de um descansar da lida mundana de trabalhadores manuais, de proletários, de escravos. É, sim, o refresco de um cansaço mais aproximado a quem se considera, e foi considerado, um Atlas, figura que é “capaz de personificar o império dos homens no universo”8. Os dois estão numa pose de descanso, em gesto de quem acaba de realizar uma tarefa significativa para o mundo do trabalho. Com seus descansos, evocam, para quem conhece as suas biografias, algo que será muito valorizado no pensamento liberal do século XIX, e no neoliberal do XXI: o empreendedorismo. Aos olhares conservadores, o descanso deles é visto como algo mais do que merecido, diferindo do descansar da gentalha, que é por pura vadiagem. “Nada melhor para o privilégio do colonizador do que seu trabalho; nada melhor para justificar a penúria do colonizado do que sua ociosidade”, sentenciou certa vez Albert Memmi9. Por ironia, foi preciso um levante popular para tirar um dos senhores de seu quase eterno descanso.
A estátua de Colston começou a ser questionada publicamente há algumas décadas, quando trouxeram a tona os detalhes de suas atividades além-mar. Começaram pelos prédios e instituições que carregavam o nome do comerciante e removeram a homenagem. Quanto a sua estátua, que ficava no centro da cidade, grupos anônimos e artistas locais realizaram diversos tipos de intervenções artísticas na imagem. Pichações, placas colocadas por cima da original, bolas de ferro presas ao pé e também uma instalação que colocou corpos em uma disposição semelhante ao famoso diagrama do navio negreiro Brookes. Intervenções remetendo ao fato de que parte importante da fortuna do filantropo foi construída com o comércio de africanos escravizados. Anos depois, o conselho da cidade sugeriu fixar uma nova placa. A ideia, embora não tenha ido adiante, era de colocar a informação de que Colston participou ativamente do comércio de escravos no Atlântico, atravessando mais de 80 mil pessoas, incluindo mulheres e crianças, dos quais aproximadamente um quarto não chegaram do outro lado com vida. Após a queda da estátua mais uma intervenção digna de nota aconteceu: a imagem da manifestante Jen Reid fazendo o sinal de punho cerrado, remetendo ao Partido dos Panteras Negras, viralizou. Isto inspirou o artista plástico Marc Quinn a fazer uma estátua da manifestante, colocando-a sob o pedestal vazio de Edward Colston. A intervenção foi retirada menos de 24 horas depois pela prefeitura local, mas teve grande repercussão.
Há duas assertivas intercambiáveis e basilares para a melhor compreensão do contexto da queda da estátua de um comerciante de escravos inglês na própria Inglaterra. A primeira é a de que “impérios, produtos de conquista e dominação, são frequentemente multiculturais”10, incluindo, evidentemente, o britânico. Stuart Hall chamou a atenção para a presença negra na Inglaterra, fruto de frequentes imigrações. Essas situações, de acordo com o mesmo autor, impôs aos sujeitos em diáspora e a seus descendentes “posições de identificação deslocadas, múltiplas e hifenizadas”11. A segunda assertiva que evocamos é a difusão de uma forma de entendimento sobre a história, que percebe na contemporaneidade a permanência de estruturantes característicos dos fenômenos coloniais, advinda do que se convencionou a chamar de pensamento pós-colonial. Embora não só restrito ao âmbito acadêmico, esta postura diante da história tem “dirigido nossa atenção para o fato de que a colonização nunca foi algo externo às sociedades das metrópoles imperiais”12. Em resumo, não se deve estranhar que os cidadãos em levante contra o sujeito de bronze foram movidos, além, é claro, do explícito intento antirracista, por intencionalidades anticoloniais. Afinal, colonialismo e racismo andaram de mãos dadas, como ressaltou Achille Mbembe13.
No entanto, nem todo movimento anticolonial é antirracista, como foi o caso da independência norte-americana: “A revolução anticolonial contra os ingleses desembocou num paradoxo: por um lado, a expansão das esferas de liberdade para os brancos, por outro, a consolidação sem precedentes do sistema escravagista”14. O resultado deste “nascimento da nação” é o profundo racismo estrutural que possibilitou as condições da ação policial que vitimou Floyd. Tal condição, como bem sabemos através do cotidiano assassinato em nosso país, de negros e de negras nas mãos de agentes do Estado, não é uma exclusividade da sociedade norte-americana. O racismo estrutural é uma perversa herança de estruturas coloniais.
Nas fotografias da derrubada da estátua de Colston, um detalhe chama a atenção: seus olhos foram vendados. Podemos percorrer um repertório iconográfico na tentativa de se aproximar de qualquer familiaridade imagética passível de relação: alegorias do cupido e da justiça são representadas com uma venda, mas, é obvio, não é o caso aqui. Outrossim, pessoas de carne e osso enfileiradas para fuzilamento geralmente estariam vendadas. Tampouco é o caso. Preferimos ficar com outra aproximação, uma reflexão a partir de uma frase de Frantz Fanon, quando este disse: “depois tivemos que enfrentar o olhar branco”15. Olhar este que marcou a sua vida, quando entendeu a sua diferença racial ao ser visto por uma garota branca. Espantada ao vê-lo, um homem negro, a menina revelou a Fanon o fato de sua cor não passar despercebida na França. A importância dos olhos foi também ressaltada por Mbembe, quando afirmou que: “em grande medida, a raça é uma moeda icônica. Ela aparece por ocasião de um comércio – o de olhares”16. A estátua no meio de uma praça serve para ser vista tendo como ponto de fuga o vazio, o infinito, como bem observou Franco Farinelli ao falar das esculturas de Michelângelo. Na outra direção, ela também olha para seus observadores, impondo do alto da sua posição de poder um efeito de atração. Uma possível interpretação, ainda que especulativa, é que aos olhos dos manifestantes o poder simbólico relativo à estátua de Colston foi interrompido pela venda que lhe colocaram.
VII – O que ocorreu com a estátua de Colston, - em paralelo à recente “cultura virtual do cancelamento” –, foi um aviso ao mundo: racistas e atos racistas não serão tolerados. Consideramos que as fotografias e os vídeos da derrocada desta estátua, e de outras no mesmo contexto, poderiam figurar em uma exposição semelhante a Levantes, organizada por Georges Didi-Huberman, exposta no Sesc Pinheiros, no ano de 2017. Essa exposição, importante lugar de memória, foi dedicada à pathosformel das revoltas, conceito warburguiano que encarna a continuidade de determinados movimentos, ou fórmulas gestuais, ao longo da história. Em uma nova montagem, as imagens de Bristol poderiam ser colocadas ao lado da foto de Arpad Hazafi, tirada em Budapeste em 1956, na qual se vê uma multidão em volta da enorme estátua de Stálin caída ao chão. Quem sabe, desta maneira, não se conformariam os que julgam, por ignorância ou por má-fé, a derrubada da estátua de um opressor como um apagamento da História. Ratificamos, no ato de sua derrubada não há tal apagamento histórico. Muito pelo contrário, tais imagens, geradas durante o levante, são registros de parte significativa de uma histórica disputa por narrativas: “geraram também uma fabulosa produção de novas imagens, ícones frescos, mediadores rejuvenescidos: maiores fluxos de mídia, ideias mais poderosas”17. Não devemos pôr em dúvida a possibilidade delas habitarem os livros didáticos num futuro próximo. Talvez, quem sabe, em um box explicativo cujo título pode vir a ser: “Por que estátuas são derrubadas?”.
- 1. GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira. Nove ensaios sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 85-103.
- 2. GELL, Alfred. Arte e agência. Uma teoria antropológica. São Paulo: Editora UBU, 2018.
- 3. MONDZAIN, Marie-José. Imagem, ícone, economia. As fontes bizantinas do imaginário contemporâneo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 233.
- 4. BURKE, Peter. Testemunha ocular. O uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Editora UNESP, 2017. p. 119.
- 5. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 53.
- 6. Idem, p. 65.
- 7. BUTLER, Judith. Levante. In: DIDI-HUBERMAN, Georges (Org.) Levantes. São Paulo: Edições SESC, 2017. p. 24.
- 8. DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou o gaio saber inquieto. O olho da história, III. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. p. 99.
- 9. MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido de Retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p. 117.
- 10. HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013. p. 60.
- 11. Idem, p. 84.
- 12. Idem, p. 118.
- 13. MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições, 2018.
- 14. Idem, p. 39.
- 15. FANON, Frantz. Pele Negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 104.
- 16. MBEMBE, p. 197.
- 17. LATOUR, Bruno. O que é iconoclash? Ou, há um mundo além das guerras de imagem?. Horizontes antropológicos, v. 14, n. 29, 2008. p. 114.