Reflexões sobre Cidades: Territórios e relações de poder
A propósito da conferência: ARQUITECTURA [IN] ]OUT[ POLÍTICA organizada pela Trienal de Arquitectura de Lisboa e do Colóquio POLíTICAS DE HABITAÇÃO E CONSTRUÇÃO INFORMAL organizado pelo CIES ISCTE-IUL.
Partindo do conceito inicial: A arquitectura é uma inscrição política, a conferência arquitectura [in] ]out[ política, debaixo do grande chapéu falemos de casas, surgiu como uma oportunidade “para reflectir e debater sobre a arquitectura como instrumento orientador de processos democráticos e como signo temporal e espacial das suas potencialidades”. Quase em simultâneo, o colóquio políticas de habitação e construção informal, teve como objectivo “proporcionar aos investigadores interessados e aos participantes um diálogo teórico-metodológico sobre as temáticas actualmente abordadas no domínio da habitação, com especial enfoque para a habitação informal (auto-construção) e para uma vertente das políticas de habitação que se prende com as consequências da sua execução para as populações visadas”.
Estes dois encontros, previsivelmente com comunicações, participações e participantes diversos, constituíram oportunidades de reflexão e debate sobre teorias e práticas de transformação do território e das relações de poder que essas transformações originam ou que estão na sua origem. Actualmente as principais transformações ocorrem em cidades, especialmente nas suas periferias ou nos espaços intersticiais de ocupação não planeada, falou-se, por isso, fundamentalmente das estratégias, compromissos, limites e capacidades do que se planeia e do que se projecta e do que é construído ou “desconstruído” nas cidades. Mas o que surgiu como mais relevante em ambos os debates foi ter ficado à partida subjacente que falar de casas é falar de cidadania.
Falou-se de casos específicos ocorridos ou que ocorrem em continentes diferentes, Europa e na América Latina, cada um com as suas especificidades, mas que estão igualmente dependentes e condicionados por uma mesma lógica económica dominante. A mesma lógica económica que podemos também encontrar em África, aí muitas vezes agravada pela imposição e importação de soluções que resultam de interesses económicos estranhos aos países africanos, através de projectos que são depois avaliados pelos países intervenientes, não pelos resultados obtidos, mas pelo investimento económico aplicado.
Ouvimos Jorge Mário Jáuregui falar na luta que tem vindo a ser travada através dos projectos Favela – Bairro para obter a conexão entre territórios fragmentados da cidade do Rio, que designou como a “cidade dos fluxos” e a “cidade dos lugares”, territórios normalmente chamados: cidade formal e informal. Para obter conexão, diz: “é preciso pensar a cidade como um todo e cruzar problemas que vão desde o urbano ao social, ao económico, ao ecológico, e onde se entrecruzam o ético (isto é, o que tem a ver com princípios), o estético (isto é, o desafio do novo) e o político (o que implica a relação sempre tensa com as estruturas de poder)”.
Falou também, através de uma entrevista em vídeo, Yona Friedman, advogado da imprevisibilidade e da liberdade individual, preconizando para todos o direito de acesso ao conhecimento e às estruturas que permitam que cada um seja o criador do seu próprio ambiente de vida. Nesse sentido, entre as suas preocupações que já datam de longe, destacam-se, por exemplo, manuais básicos de arquitectura destinados a não arquitectos, ou ainda o projecto de criação de “super-estruturas” sobre as cidades existentes (cidades espaciais) onde os habitantes seriam livres de construir as suas casas.
O urbanismo da mobilidade, que permitirá aos grupos de moradores mudarem a sua vizinhança, se assim o decidirem e sem grande esforço económico, tal como a arquitectura da mobilidade que permitirá a cada um alterar a sua casa, juntamente com uma infra-estrutura espacial, constituem as componentes ideais do urbanismo espacial que Friedman advoga. Poderão no futuro ser uma resposta aos problemas actuais da cidade dos fluxos de que fala Jáuregui? Uma possível resposta para as áreas da cidade informal, que cresce sem medida, tanto na América Latina, como em África e na Ásia e que embora em zonas mais contidas, pontualmente cresce, ou ainda persiste, nalgumas cidades europeias?
Nos dois encontros falou-se também de realojamento e do programa SAAL (serviço de apoio ambulatório local) que ocorreu em Portugal no pós 25 de Abril (1974-1976)1. O SAAL foi um programa estatal de produção de habitação para populações carenciadas, através da atribuição de financiamento às populações, desde que organizadas em cooperativas ou associações de moradores. A fase prévia de legalização das organizações dos moradores foi o primeiro passo para muitos na conquista de cidadania. As relações de poder que a partir daí se confrontaram - por um lado, o poder resultante do direito de participação na discussão sobre permanecer no terreno, sobre o direito de uso do solo, sobre o espaço da casa, sim ou não à autoconstrução, o direito à arquitectura, por outro, o poder das brigadas técnicas a trabalhar numa realidade nova, do estado garantir a expropriação, dos municípios e dos proprietários e dos partidos políticos que pressionavam no interior ou no exterior das organizações – transformaram aqueles dois anos na maior discussão pública que houve alguma vez em Portugal sobre “casas” (habitação, projectos e processos construtivos).
Para termos uma ideia de como se “falava de casas” por todo país, estavam em curso em 1976, entre projectos e construções, cerca de 30 mil habitações (das quais cerca de 60por cento na zona de Lisboa e Setúbal).
No Colóquio Políticas de habitação e construção informal também ouvimos falar sobre novas políticas de regeneração urbana e de realojamento, a propósito do projecto urbanístico Alta de Lisboa iniciado nos anos 90 sob o desígnio do Social Mix. Tiago Figueiredo referiu que para os moradores do Bairro da Musgueira, que ali tinham sido realojados dos anos 60 e construído as suas casas inteiramente à sua custa (a CML só tinha disponibilizado o terreno) tratou-se de um segundo realojamento. Desta vez com a passagem de casas de piso térreo para apartamentos em prédios que se localizam lado a lado com apartamentos de venda livre para classe média/alta. Com este projecto, a CML pretendia “dotar o novo bairro de todas as ofertas que uma cidade pode dar aos seus habitantes”: equipamentos, possibilidades de trabalho e acessibilidades. No entanto, alguns problemas têm impedido ou limitado a sua execução, resultantes da dificuldade ou do empenho do estado ou dos municípios, poderem intervir de uma forma eficaz no território para garantir o interesse público. Um exemplo que foi apresentado é bem significativo: um viaduto que se mantém por terminar, suspenso pela impossibilidade de construção de um único pilar.
No interessante documentário do Tiago Figueiredo então apresentado “Vizinhos, Musgueira ou Alta de Lisboa” ficamos a conhecer situações de desconforto de quem mudou do piso térreo e da casa com horta para um andar em prédios de 8 pisos, dos elos de vizinhança que ficaram quebrados, da diferença apontada por alguns moradores do “lado dos ricos” e do “lado dos pobres”, da vontade de interferir e conquistar poder dos que se sentem sem espaço, das associações que lutam para se manter, da falta de informação das entidades envolvidas sobre o que permanece por resolver e da luta dos “vizinhos” que têm uma palavra a dizer e se organizam.
O encerramento da conferência arquitectura [in] ]out[ política coube aos arquitectos Herzog & de Meuron que numa entrevista ao jornal Público2 intitulada “A democracia é boa e má para a arquitectura”, afirmaram em resposta à pergunta que lhes foi feita se acreditavam que a arquitectura podia ajudar a desenvolver ideias de democracia: “A arquitectura é apenas arquitectura, mas pode oferecer um espaço que não mantenha as pessoas fora, que as integre, ou que tenha outro tipo de potencial. É isso que podemos fazer, mas não mais do que isso. A arquitectura é como um carro. Podemos usar um carro para salvar pessoas, como acontece com uma ambulância, ou para matar pessoas, se lhe pusermos uma bomba dentro. Na história, estádios foram usados como prisões. Não acredito que a arquitectura por si só possa resolver os problemas ou tornar o mundo melhor. Pode ajudar, mas é uma ajuda e não uma solução.”