Teat(r)o oficina: corpos livres em perigo

No país da história golpeada1, estamos vivendo os nefastos desdobramentos da sua mais recente reedição, ocorrida em 2016, que reverbera em variadas esferas. Todas as conquistas e aspirações dos de baixo estão sendo questionadas: proteção social, educação pública de qualidade, saúde para todos, combate às desigualdades sociais e raciais, políticas culturais, o limitado voto… Nessa encruzilhada, estamos: sabe(re)mos resistir (o que significa, para a esquerda, re-existir)?

É este o contexto da nova ofensiva contra o Teatro Oficina Uzyna Uzona2, ativo há quase seis décadas na cidade de São Paulo, no bairro do Bixiga. No dia 23 de outubro, o Condephaat, após o golpinho da mudança de sua composição, reviu a decisão do ano passado que vetava a construção das três torres de dezenas de andares do Grupo SS. Se o Secretário Estadual de Cultura do Estado não vetar esse ataque ao teatro, que é estadual, restarão duas proteções: a municipal (Conpresp) e federal (Iphan)3.

Se Silvio Santos chegou, poucos anos atrás, a ceder em comodato a área em volta do mítico teatro e mostrar-se favorável à permuta do terreno de sua propriedade por outro, nesse novo clima pós-2016, o chefe do Grupo SS não quer mais saber de conversa. Chegaram até a desmarcar a reunião que ocorreria na Prefeitura no dia 13 de novembro e ordenaram a destruição do sambaqui, “ícone vivo, histórico, do sítio arqueológico do Bixiga”4, situado no entorno do teatro. Antes, já faz muitos anos, até mesmo uma sinagoga situada nesse mesmo terreno havia sido demolida5.

Minha (mais uma!) propriedade privada antes de tudo, nos sugere Silvio Santos em vídeo revelador6, fazendo-nos recordar a célebre fórmula do trabalhador anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon – a propriedade é um roubo. Ao garantir seu sagrado direito à propriedade, privará a cidade de um laboratório de vida e de corpos livres atuando em conjunto e com poder/phoder de multiplicação. Esse vídeo (da reunião de Zé Celso com Silvio Santos e outros mais em outubro) nos mostra um tirano decadente, de constantes piadas sem graça7. Um triste retrato do golpismo atávico das classes dominantes e da sua renúncia de um Brasil autônomo e democrático. O Rei da vela (peça escrita na década de 1930 por Oswald de Andrade, montada pela primeira vez 50 anos atrás e re-encenada no último mês) escancara toda a nossa atualidade colonial: o vídeo parece a peça, como bem disse Fernanda Torres8.

Por que esse ataque ao Oficina? Trata-se de um assalto ao bairro do Bixiga, como o indica o uso muito mais do que equivocado por parte do Grupo SS da palavra revitalização (?) ao se referir, justamente, a um dos bairros mais vivos da cidade. É uma investida contra o bairro preto, nordestino, boêmio, pobre. Bixiga das multiplicidades, das trabalhadoras, dos teatros, dos terreiros, do samba e da Vai-Vai, das associações e outros pontos de produção do comum, onde são experimentadas formas de vida inabituais. Da metrópole viva. Um teatro-rua, teatro-pista, do janelão de vidro em sua conexão com a cidade, atravessado pela cesalpina, árvore totem – que nasce dentro do teatro de Lina e vai pra fora. O transbordar de uma cosmopolítica; terra e democracia sendo semeadas.

Vejam o forte diálogo entre Sonia Guajajara, Guilherme Boulos e Zé Celso ocorrido ano passado no Oficina: 


A importância do Oficina se dá também pela sua existência como território livre e pela sua força de conexão com outros lugares de experimentação. O Oficina participa ativamente de uma cartografia do contrapoder. No Bixiga, como vimos, no Brasil (territórios indígenas, quilombos, ocupações, assentamentos e muitos outros) e no planeta. Mundos. Subversão em ato de corpos elétricos no terreyro eletrônico. Nesses dias que comemoramos o centenário da revolução de 1917, refaz e recria os elos, indissolúveis, entre ética e estética (“sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”, Maiakovski), dos poetas e criadores que anunciaram a esplêndida revolução e cujo fim indicou, já precocemente, seu triste declínio. Corpos não domesticados e descolonizados. Quando alguns querem (de forma infértil e impotente) opor “classe” e “diferença”, o Oficina, e seu emblema, a bigorna (remetendo ao ofício teatral e proletário) ativa um devir-indígena9, um devir-negro; uma transesquerda (Zé Celso).

Teatro Oficina / Lina Bo Bardi e Edson Elito. foto de Nelson KonTeatro Oficina / Lina Bo Bardi e Edson Elito. foto de Nelson Kon

No tal vídeo, Silvio Santos pergunta para Zé Celso o que ele quer fazer com o terreno. Frente ao interesse estreito e individual (suposto pelo empresário), um espaço para a coletividade-cidade (a-anhangá-anhangabaú-da-feliz-cidade) responde o homem de teatro. Em oposição à avidez, um laboratório da felicidade guerreira, alimentada pela potente linhagem da antropofagia. Num planeta onde tudo parece e é complexo, a reunião citada escancara o dilema de Rosa Luxemburgo um século atrás: socialismo ou barbárie. Ou a fartura do comum de Artaud contra o mundo miserável do capitalismo. A política como invenção, criação, provocação, devoração. Teatro-vida da presentação e não da representação, afirmação de uma vida outra. Luta e alegria.

 

texto publicado originalmente aqui

por Jean Tible
Cidade | 18 Novembro 2017 | Bexiga, Brasil, gentrifigação, golpe, política, Teatro Oficina, Zé Celso