WHPO: uma Rede Mestiça e (esta sim) um verdadeiro “PIN”

“O mar foi ontem o que o património pode ser hoje, basta vencer alguns Adamastores”
Mia Couto

A Universidade de Coimbra acolheu duas importantes reuniões internacionais designadas World Heritage Portuguese Origin (WHPO), a primeira sucedeu em 2006 e a segunda acabou de ocorrer (entre 23 e 26 de Outubro de 2010), no quadro das quais se fundou uma rede orientada para a conservação do património arquitectónico e urbano de influência portuguesa, espalhado pelos muitos  - certamente mais que quatro - cantos do Mundo.

A construção de uma rede com as característica desta é, certamente, um factor pioneiro – conhecemos poucas que se assemelhem à amplíssima latitude desta nova criação – e de grande modernidade, na forma de ver e prospectivar o papel cultural de Portugal no mundo. Trata-se de um projecto de verdadeiro interesse nacional, que deveria ser considerado estratégico nas nossas políticas culturais e de cooperação.

Devemos - é de elementar justiça - registar o facto de ter sido a Universidade de Coimbra, através da respectiva Reitoria, a instituição portuguesa que mais rapidamente e melhor percebeu a importância nacional e internacional deste sonho, deste projecto, acolhendo-o e trabalhando intensamente para pôr em prática a proposta que, já em 2004, o ICOMOS-Portugal apresentara várias instituições: a criação de uma REDE de cooperação entre todos os países que detêm património de influência cultural portuguesa!

Goa, Panjim. Fotografia de Cristina Salvador.A ideia germinal cresceu de uma sugestão, bem mais modesta, apresentada em 2003 na cidade de Paris, pelo Director do Centro do Património Mundial, Francesco Bandarin, que no decorrer de uma reunião do Comité Executivo do ICOMOS Internacional, solicitou aos representantes dos ICOMOS do Brasil, do México e de Portugal  trabalharem conjuntamente, no sentido de apoiar a aplicação da Convenção do Património Mundial aos países africanos de língua portuguesa. Foi com base nessa necessidade, muito objectiva, que o ICOMOS Portugal propôs, alternativamente, uma organização mais ampla, convocando geografias mais vastas e uma cultura mais partilhada – a do mundo da influência histórica e cultural portuguesa -, propondo uma colaboração entre todos os países onde existe este património, no quadro dos princípios da Estratégia Global da UNESCO, que procura desenhar uma lista do património mundial mais credível, mais equilibrada e mais representativa.

Com a realização do primeiro encontro internacional WHPO, em 2006, a Universidade de Coimbra tornou-se o verdadeiro motor desta nova Rede, constituindo parcerias alargadas às instituições oficiais e não governamentais implicadas directamente no tema, como o Ministério da Cultura, o IGESPAR, a Comissão Nacional da Unesco, o ICOMOS Portugal e o Turismo de Portugal, parcerias que permitiram agora organizar agora o II encontro WHPO, onde foi constituída formalmente a REDE, e trazendo a Portugal participantes de mais de 25 países de quatro regiões do mundo (América Latina, África, Ásia e Europa). 

Se é uma inquestionável missão da Universidade a transmissão (o ensino), a produção (a investigação) e a guarda (o arquivo cuidadoso e sistemático) do conhecimento, o Senhor Reitor da Universidade de Coimbra acrescentou a estes um quarto desígnio, uma quarta missão relevante: a do papel da Universidade na sustentação de um diplomacia da cultura e do saber. Nesse sentido importa sublinhar que, com esta iniciativa internacional e com a sua inquestionável repercussão e sucesso, a Universidade de Coimbra acrescentou um valor fundamental ao carácter universal da sua própria candidatura a património mundial da UNESCO, sustentando e mostrando na prática a continuidade futura dos valores de universalidade que lhe conferem há tantos séculos prestígio na área da produção, partilha e transmissão de conhecimento em várias regiões do mundo. Chama-se a isto visão estratégica e prática consequente.

Mercado do Kinaxixi, Luanda. Fotografia de Cristina Salvador.

Na eterna crise, com pouquíssimos recursos, teremos poucas hipóteses de poder financiar a conservação de obra primas da nossa partilhada arquitectura e urbanismo, construídas noutras latitudes. Mas alguns recursos colocados num sistema relativamente aberto de partilha do saber, abrem novas possibilidades e dão novos sentidos à conservação. A produção e partilha de conhecimento é, na verdade, um dos mais  importantes factores de salvaguarda patrimonial. Destrói-se demasiadas vezes o que, não se conhecendo, não se pode apreciar. Conhecer e estudar, publicitando quando publicamos, irá responsabilizar decisivamente quem se propõe alterar, demolir, obliterar para o futuro a fundamental memória. 

Lobito, Angola. Fotografia de Cristina Salvador.Tal como é afirmado no texto da Declaração de Coimbra, que a seguir transcrevemos em primeira publicação, a fundação da Rede WHPO é assim e antes do mais, um projecto de conhecimento que organiza novas formas da sua transmissão e troca, algo que produz maior intangibilidade e novos sentidos, um futuro certamente mais inteligente e mais inteligível para o património do nosso passado comum.

Brasil, Marrocos, Argentina, Uruguai, Paraguai, México, Uruguai, Benim, Senegal, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Região administrativa especial de Macau (China) Irão, Índia, sri lanka, Holanda, Malta, Espanha, Portugal, Moçambique, Quénia, Tanzânia, Gana, Gâmbia e Angola assinaram esta Declaração de Coimbra. A Comissão Instaladora da REDE é agora presidida pelo ICOMOS Brasil e constituída por representantes de Angola, Marrocos, Índia e Quénia. A sua sede será a (e na) Universidade de Coimbra, e tudo isto foi decidido por uma remarcável unanimidade.

É raro (inaudito?) um documento doutrinário e de referência, uma declaração internacional, começar com um poema (de Mia Couto); a Rede WHPO é um projecto mestiço, poético como a poesia que inicia a Declaração de Coimbra, construindo um novo e verdadeiro (este sim) Projecto de Interesse (trans)Nacional!

 

DECLARAÇÃO DE COIMBRA

Escrevo mediterrâneo
Na serena voz do Índico
Sangro norte
Em coração do sul
Na praia do oriente
Sou areia náufraga
De nenhum mundo
Hei-de
Começar mais tarde
Por ora
Sou a pegada
Do passo por acontecer
Poema Mestiço, Mia Couto (escritor moçambicano)

Nós, especialistas e representantes das instituições dos países presentes no II Encontro WHPO, reunidos em Coimbra, Portugal, de 23 a 26 de Outubro de 2010, constituímos a Rede do Património Mundial de Origem ou Influência Portuguesa, com a finalidade de fomentar a cooperação para o conhecimento e salvaguarda desse mesmo património, dando seguimento às conclusões do I Encontro WHPO realizado em Coimbra em Abril de 2006.

Saudamos a participação de todos os representantes das instituições de estudo, salvaguarda e conservação do património dos países presentes no I e no II Encontro e o empenho e Contribuição de todos os especialistas, que ao longo de dias de trabalho, souberam dar corpo a um projecto novo; Reafirmamos o simbolismo da Universidade de Coimbra neste projecto, enquanto referência nuclear da lusofonia e do papel desempenhado por Portugal no conhecimento do mundo e no mundo do conhecimento, único instituto superior de estudo e de saber, até ao século XX, numa rede de territórios e geografias que desde o século XV mestiçou saberes e visões do mundo, crenças e práticas, na Europa, em África, América do Sul e Oriente. Na Universidade de Coimbra se formaram os quadros de sustentação do império, mas também as elites que lideraram os movimentos independentistas em variadíssimas latitudes e que haveriam de contribuir decisivamente para o seu fim, iniciado com a independência do Brasil.

Queremos, reunidos sob este símbolo secular do saber e do conhecimento, iniciar um projecto de futuro, fundado no que hoje nos une e que também já nos separou: a história que atravessámos e que partilhamos, e que foi comum aos nossos actuais países, territórios, vastos e descontínuos, que já funcionaram em rede muito antes da existência do conceito; Sabemos da dimensão conflitual da história que partilhamos e do património que queremos conhecer, conservar, utilizar e viver. Sabemos, como nos disse Pessoa, que “a civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade. O objecto torna-se realmente outro, porque o tornamos outro. Manufacturamos realidades”.

“O mar foi ontem o que o património pode ser hoje, basta vencer alguns Adamastores” (Mia Couto), já não os de Camões, mas os das barreiras criadas ao longo da história, nestes territórios tão vastos e tão diferentes, tão complexos e tão comuns, e cujas consequências ditaram em parte o nosso mundo tão desigual. Queremos vencê-los, com o conhecimento e com a cultura. Conhecer, investigar, estudar cada vez mais, e em rede, e cooperar, pondo à disposição de todos, tudo o que conseguirmos obter, para gerir, salvaguardar e proteger o nosso espantoso, e por vezes genial, património partilhado, e tudo o que formos construindo para uma cultura de qualidade e de esperança nos nossos territórios, a partir dos valores de liberdade, de paz e de conhecimento: “nenhum povo é grande por ter apenas faustos para contar, mas pelas liberdades que souber viver e pelo amor que tiver para dar”. Este ensinamento do escritor timorense Fernando Silvan, mostra-nos como o mais jovem país do mundo, Timor Leste, nos pode dar lições de valores fundamentais.

Reconhecemos, ainda e sempre, a importância e a actualidade das palavras históricas e visionárias de grandes líderes do continente africano, tais como Léopold Senghor, que nunca se cansou de afirmar que “a cultura está no princípio e no fim do desenvolvimento” e elas são um pilar para o futuro deste projecto de Rede cuja formação a Universidade de Coimbra hoje se honra de acolher no seu acto fundador.

Nós, especialistas e representantes das instituições dos países, abaixo assinados, presentes no II Encontro dos Países com Património de Origem Portuguesa, declaramos a nossa vontade e empenho, e comprometemo-nos com este projecto pioneiro que hoje constituímos e anunciamos: a REDE de cooperação WHPO, regida pelos objectivos e valores que elaborámos e aprovámos ao longo destes dias de trabalho e que vão anexos a esta declaração, que será dirigida por uma Comissão Instaladora coordenada por Rosina Parchen (Brasil) e composta ainda por Aboulkacem Chebri (Marrocos), Emanuel Caboco (Angola), Hassan Arero (Quénia) e Shivananda Rao (Índia), com um mandato máximo de três anos.

Reafirmamos o objectivo maior de promover a cooperação entre países com património de influência cultural e histórica portuguesa, contribuindo para o conhecimento e a boa gestão de todos os sítios, com destaque para os que integrem ou possam vir a integrar a Lista do Património Mundial da UNESCO.

Nota: Declaração assinada em Coimbra por dezenas de especialistas em conservação e representantes de 25 países presentes, no decorrer do encerramento do II Encontro WHPO, no dia 26 de Outubro de 2010, em cerimónia presidida pelo Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra, Fernando Seabra Santos, numa mesa que incluía representantes do Governo Português e ONG´s (Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Presidente da Comissão Nacional da UNESCO, Vice-presidente da CM Coimbra, representantes do Ministério da Cultura e do IGESPAR, Presidente do ICOMOS-Portugal, representante do Instituto do Turismo de Portugal).

por Ana Amendoeira e José Aguiar, ICOMOS-Portugal
Cidade | 22 Dezembro 2010 | arquitectura, património