“A mãe está calada!” O que revelam as experiências de parto das mulheres?
O modo como se dá à luz e se nasce, como tudo o que se faz na vida, depende de fatores sociais, culturais, económicos, históricos e políticos. Em Portugal, cada vez mais mulheres se questionam se é inevitável sofrer maus-tratos durante o parto.
Na investigação que fiz de norte a sul de Portugal sobre perceções, discursos e representações acerca de experiências de violência obstétrica, a partir de entrevistas com mulheres e profissionais de saúde, relatos postados nas redes sociais e participação em eventos relacionados com o nascimento, ouvi e li muitas mulheres contarem as suas histórias de parto comparando-o com um “filme de terror”. Aquilo de que mais falavam era de se sentirem tratadas como “um objeto” pelos prestadores de cuidados, desprovidas de capacidade de decisão e de ação acerca do seu próprio corpo. Das suas necessidades e preferências em relação ao parto serem ignoradas. De haver ausência de informação relativamente a procedimentos que lhes eram impostos e até administrados sem o seu conhecimento. A sensação que descrevem é de falta de controlo sobre o que lhes aconteceu.
“Ali, somos mais um número”, diz Elisa (nome fictício). As comparações do hospital com uma fábrica onde se manuseiam objetos de forma mecânica e impessoal abundam nas palavras de quem desabafa aquilo por que passou ao dar à luz em grande parte das instituições de saúde portuguesas. “Estavam oito pessoas na sala, mas senti-me mais sozinha que nunca”, conta Diana. O pai do bebé foi mandado sair para a enfermeira fazer o “toque”, a avaliação da dilatação do colo do útero através da inserção dos dedos na vagina, e só pôde voltar a entrar após o nascimento do bebé. Razões de constrangimento de espaço são frequentemente invocadas para justificar a impossibilidade de ter mais do que um acompanhante durante o parto, mas o mesmo espaço consegue afinal acomodar turmas de alunos de medicina. Ao abrir os olhos depois de uma contração, Sónia deparou-se com uma “plateia” de pessoas que tinham entrado no quarto sem bater à porta e sem se apresentar. O obstetra colocou a mão na vagina dela e disse “Faça força!”, apesar de ela não estar com uma contração naquele momento. “Senti-me violada”, conta.
Muitas mulheres dizem que se sentiram invisíveis. Ouviram frases como “A mãe está calada!”, “Você não está a colaborar!” ou “Quer matar o seu filho?”, quando prestes a dar à luz. Se um estranho nos dissesse coisas como as que muitas mulheres ouvem nos seus partos, não teríamos dúvidas em classificá-las de pura agressão. Por que razão as pessoas consideram aceitável ouvi-las ou proferi-las no contexto da assistência obstétrica?
Medicalização, patologização, autoritarismo
O tratamento impessoal, a objetificação dos pacientes ou a falta de informação e envolvimento dos mesmos na tomada de decisões não são exclusivos da obstetrícia. A estratificação hierárquica, tanto da sociedade como dos ambientes profissionais institucionais, coloca a autoridade do conhecimento no saber médico, em detrimento do conhecimento que os pacientes têm do seu próprio corpo, alienando-os do mesmo. Nos países com uma modernização intensa ao longo do século XX, quase tudo o que se relaciona com o corpo humano sofreu um processo de medicalização. Esta extensão da lógica médica a todas as esferas da existência levou a que eventos normais da vida, como o nascimento e a morte, passassem a ser tratados em termos de patologia, ou seja, de doença. Vários trabalhos sobre a medicalização do parto mostram que esta implicou uma patologização do corpo e dos processos reprodutivos femininos.
O medo da morte e o desejo de controlar todas as esferas da vida, principalmente as que nos escapam inexoravelmente, levam a atitudes para minimizar o imprevisto. Corrigir o que é considerado da esfera da “natureza” faz parte do projeto humano de superar as limitações impostas pelas condições materiais da sua existência. Neste contexto, a tecnologia é confundida com a ciência, sinónimo de progresso, e as possibilidades por ela oferecidas são valorizadas ao ponto de se fazer delas um uso acrítico e abusivo. A adversidade ao risco e o medo do litígio levam muitos profissionais a praticar a chamada obstetrícia defensiva, em que frequentemente se peca por agir de mais e demasiado cedo. Enquanto o acesso a tecnologias médicas é um privilégio, sem o qual muitas vidas se perderiam, o seu uso injustificado e abusivo pode ser mais prejudicial do que benéfico. No contexto da assistência obstétrica, isto é particularmente pertinente, se considerarmos que a gravidez não é uma doença e o parto não é necessariamente um desvio da normalidade.
Portugal tem das mais elevadas taxas de intervenção no parto da Europa. Entre elas, a de episiotomia (73% na estatística portuguesa, em contraste com a de outros países europeus, onde esta não chega aos 7%), contrariando muitas daquelas que são consideradas boas práticas clínicas. Este corte da vagina de forma a causar a saída do bebé mais rapidamente, a que alguns chamam a mutilação genital feminina do Ocidente, é considerada uma técnica obsoleta na literatura científica e desaconselhada nas recomendações internacionais.
É sabido que diferenças substanciais de taxas de intervenção — entre outras, de episiotomia, cesariana, indução por meios farmacológicos ou mecânicos — entre países e entre instituições hospitalares num mesmo território não têm justificação clínica, antes revelam disparidades das práticas locais de assistência obstétrica. No nosso país, regista-se uma diferença vincada entre as taxas de cesariana no sistema privado e no sistema público: 66,3% no privado e 28,7% no público, em 2018, segundo dados do INE. O aumento “injustificado e sem precedentes” das taxas de cesariana no mundo inteiro (em 2015, a taxa de cesariana global ultrapassava os 21%, quase o dobro do que em 2000, segundo o jornal médico The Lancet) é alvo de preocupação dos especialistas, que identificam as culturas médicas intervencionistas, o risco de litígio, os incentivos financeiros e a conveniência de partos marcados como as principais razões para o mesmo, em detrimento do bem-estar e saúde da mãe e do bebé.
Não há dúvida de que a medicina e algumas formas de medicalização contribuíram de forma significativa para o bem-estar dos seres humanos. Sabe-se que a cesariana, entre outras intervenções, é uma invenção que salva vidas. Mas o facto de uma operação cirúrgica de grande impacto passar a ser uma forma banalizada de nascer é revelador de um sistema de valores tecnocráticos e acarreta problemas a nível de saúde pública, pelos efeitos adversos que implica para mães e bebés a curto e longo prazo. Desde 1985, a comunidade médica internacional considera que taxas de cesariana acima dos 10-15% não estão associadas a uma redução da mortalidade materna ou neonatal (OMS 2015).
A violência obstétrica enquanto violência estrutural de género
O termo “violência obstétrica” foi cunhado por ativistas latino-americanas no início do século XXI para denominar todas as formas de desrespeito e abuso durante a gravidez, parto e pós-parto, que, segundo Freedman e Kruk (2014), são todas as interações ou condições dos serviços de assistência obstétrica que o consenso local considera humilhantes ou não dignificantes, ou experienciadas enquanto tal.
A violência obstétrica (VO) não é exercida apenas por médico/as e enfermeiro/as. Todas as formas de maus-tratos no contexto da assistência obstétrica, incluindo por parte de técnicos, auxiliares, administrativos e doulas, são enquadrados como VO. A violência obstétrica não afeta só mulheres e famílias. Os profissionais de saúde são igualmente afetados, apanhados num sistema de saúde que reflete as dinâmicas de poder e desigualdade da sociedade em que se insere, manifestas num sistema de ensino altamente competitivo, em hierarquias profissionais e institucionais arreigadas e em condições de trabalho exigentes. As condições estruturais também geram VO: é o caso de falta de pessoal e de meios técnicos, ou de falta de privacidade devido às condições físicas das instalações.
A violência obstétrica não acontece só nos hospitais. Pode haver VO num parto domiciliar. Violência obstétrica não é só excesso de intervenções. Ausência de intervenções, quando estas constituiriam a melhor prática clínica, pode configurar VO. Num contexto mundial em que um número inaceitável de mulheres continua a morrer diariamente por complicações perinatais que seriam fáceis de resolver (segundo a Organização Mundial de Saúde, cerca de 295.000 mulheres em 2017, 94% das quais em contextos de baixos recursos), as condições estruturais que determinam a impossibilidade de acesso a cuidados obstétricos de qualidade também constituem violência obstétrica. Em resumo, a violência obstétrica acontece sempre que, no contexto da assistência obstétrica, a autonomia e a integridade da mulher, nas suas dimensões física, emocional, psicológica, cultural, social, espiritual, são postas em causa.
A violência obstétrica é considerada uma manifestação de violência estrutural de género e, para a entender, é necessário olhar para mecanismos sociais e culturais mais vastos que desvalorizam a mulher, colocando-a numa posição subalterna. A ideia de que o corpo feminino necessita de correção tecnológica para parir é intrinsecamente sexista. Segundo esta perspetiva, o corpo parturiente desafia a ideia de feminilidade normativa, sendo necessário discipliná-lo para que volte a ser bem-comportado e submisso. Alguns comportamentos e posições que as mulheres se sentem impelidas a adotar durante o parto tendem a ser considerados inconvenientes para quem presta assistência e indevidos, porque associados a uma ideia de animalidade. A liberdade da parturiente é frequentemente limitada pelo contexto institucional e pela noção de que se encontra em território alheio, com a consequência de grande parte das mulheres sentir obrigação de policiar o seu próprio comportamento durante o parto, com efeitos negativos sobre o desenrolar do mesmo.
A importância das dimensões não visíveis do parto
O parto é um evento biopsicosocial. As condições do meio que rodeia a mulher durante o parto desempenham um papel fundamental, do ambiente físico (a luz, o cheiro, o som, o conforto) à interação interpessoal. Os mamíferos precisam de se sentir seguros para suprimir as hormonas do stress e produzir as hormonas do amor, como a oxitocina e as endorfinas, que permitem certos processos fisiológicos desencadear-se e decorrer da melhor forma possível. Tal como com outras funções fisiológicas que dependem de condições como a intimidade e a sensação de segurança, inserir a mulher num ambiente percecionado como hostil, imobilizá-la e subministrar-lhe drogas para apressar um momento para o qual o corpo não está ainda preparado dificulta o bom desenvolvimento do parto.
Perante a pandemia de covid-19, muitos direitos individuais foram suspensos. Ao contrário do que preconizavam as recomendações da OMS, as maternidades foram rápidas a impor restrições às preferências das parturientes. Foi suspenso o direito a acompanhamento na maior parte dos hospitais. Houve um aumento exponencial de induções, para garantir que as mulheres eram negativas para covid-19 na altura do parto. Tanto mães positivas como mães cujo resultado do teste ainda não era conhecido na hora do nascimento foram separadas dos bebés e impedidas de amamentar. Perante as críticas e a ausência de evidência científica, as orientações da Direção-Geral da Saúde foram alteradas, mas os hospitais continuam com medidas restritivas implementadas. Num momento extremo em que a sobrevivência da comunidade parece depender dos sacrifícios de todos, é-nos pedido que nos reduzamos ao essencial. Essencial, no parto, é a segurança, tanto física como emocional, da mãe e do bebé. Em momento algum, mesmo em caso de emergência médica ou sanitária, se justifica adotar um tratamento desrespeitoso, pôr em causa o direito à autodeterminação ou menosprezar as preferências pessoais da/os utentes dos serviços de saúde.
A importância das dimensões emocionais e psicológicas no período perinatal é cada vez mais reconhecida. O nascimento é um momento único e irrepetível na vida de uma mulher e de quem a acompanha, com grande impacto a curto, médio e longo prazo. Para que as experiências de parto das mulheres sejam positivas, impõe-se uma mudança de paradigma na assistência obstétrica. Os cuidados, informados pela evidência científica atualizada, devem ser centrados na mulher, protagonista do ato de parir. Para tanto, há que deixar de considerar a mulher como um elemento externo ao seu próprio parto e os seus interesses como antagónicos aos interesses do seu bebé.
A Galeria das Experiências Obstétricas (https://galeriadasexperienciasobstetricas.wordpress.com/) reúne representações artísticas de experiências de parto. Para saber como participar, vá a https://galeriadasexperienciasobstetricas.wordpress.com/blog-2/
Antropóloga, ICS-ULisboa, projeto de doutoramento financiado pela FCT (SFRH/BD/128600/2017)
A autora segue o novo acordo ortográfico