Clara Brito: corpo, memória e herança
Entre Setembro e Outubro deste ano, a Casa Garden, em Macau, acolheu uma exposição de Clara Brito, designer e artista portuguesa radicada no Oriente há vários anos. She Left Her Body apresentou-se como um mergulho na relação entre corpo e mente, essa fronteira que se descobre cada vez mais artificial, à medida que a reflexão sobre ambas as dimensões as confirma como uma só.
Nas três salas principais deste edifício, antiga sede da Companhia das Índias Orientais, She Left Her Body apresentava uma ideia de corpo em diferentes declinações, convocando a roupa que habitualmente o envolve para uma aproximação possível à ideia de limites, uns ultrapassáveis, outros talvez não.
Sentada na mesa de trabalho instalada na última sala da exposição, onde foi partilhando alguns processos com o público que a visitava, Clara Brito contou à Blimunda como se estruturou She Left Her Body: «Esta exposição nasce de um período muito difícil da minha vida que eu quis entender. É um projecto autobiográfico, nesse sentido, e quis olhar para este conhecimento e este desenvolvimento da minha própria literacia emocional sobre aquele período específico da minha vida. E aprendi, depois, que isso se relacionava com esta coisa da dissociação, um conceito da psicologia, em que de certa maneira me dissociei do meu corpo para viver uma fase específica e difícil.» Freud e a Psicanálise são convocados na folha de sala, enquadrando as peças a partir de algumas ideias fundamentais da Psicologia do século XX. A da dissociação, desde logo, é a chave para ir decifrando as diferentes sequências de peças.
Na primeira sala da Casa Garden, os trabalhos emoldurados e pendurados nas paredes começavam por oferecer uma certa ilusão de conforto. Nas molduras, havia roupas recortadas, apenas a ausência, mas ainda assim a certeza de um qualquer corpo. No vazio provocado pelo corte e pela ausência do papel, surgiam os materiais possíveis ou impossíveis para compor um padrão, uma textura, um corpo para aquelas roupas. Farripas de tecidos de diferentes origens, papel, cacos de cerâmica chinesa, foram vários os materiais que corporizaram o tecido que não víamos enquanto tal, acedendo, no máximo, à matéria-prima que lhe poderia dar corpo. Era um primeiro indício de alguma coisa que está, mas não está, uma presença que se reconhece pelo recorte do que desapareceu ou nunca existiu, mas que tenta preencher-se de algum modo.
A segunda sala reservou-se para os espectros, uma imagem que não se desliga da cidade em volta da Casa Garden e daquilo que vai permanecendo entre o tanto que desaparece – ao ritmo da construção, das novas infra-estruturas, de um qualquer progresso. Três corpos femininos, maiores do que a escala humana, suspendiam-se do tecto e revelavam a leveza de uma estrutura de bambu envolta em papel. Uma fronteira, talvez, entre o momento em que se procura entender o vazio e a confirmação de que o corpo não é apenas a segurança da carne e do sangue, visíveis, mensuráveis, podendo chegar a ser apenas sombra ou molde vazio. Daqui, alcançava-se a última sala, onde a ausência do corpo se confirmava, espelhada nas paredes por um conjunto de gravuras onde peças de roupa interior jaziam abandonadas, sem nenhuma forma que indicasse vestígios das suas utilizadoras. O corpo já lá não está, ainda que permaneça o seu eco nas roupas abandonadas.
O percurso pelas obras de She Left Her Body não é unívoco, naturalmente, mas estas duas linhas de força, a dissociação enquanto conceito da psicologia e a incorporação de materiais tradicionalmente utilizados nesta região do planeta (o sul da China), são marcos fundamentais para que o percurso não se perca. E foi a partir desses dois marcos que Clara Brito foi desenvolvendo este trabalho: «Como é que eu poderia fazer o cruzamento para trabalhar isso artisticamente e visualmente, sendo eu uma pessoa que sempre trabalhou nas áreas criativas, das artes, do design, etc, como é que poderia traduzir este conceito através de materiais tradicionais desta parte do mundo? Esta exposição é o resultado de uma residência artística na Fundação Oriente em 2023, também do convite que eu fiz, apesar de já ter o conceito muito definido do que queria fazer, a outras pessoas e outras mulheres para colaborarem, daí a colaboração das artistas Lora Lo Iok Iong, da Elsa Yoshida Lei Pui Mio e da Mandy Cheuk Yin King.» A estas colaborações, que passaram pelo design de luz, pelo design de moda e pelo trabalho de body-painting, juntaram-se outras, as de Benny Tang e Aquino da Silva, que trouxeram consigo o trabalho de artesãos e mestres locais, como explica Clara Brito: «Quando submeti o projecto para a exposição tinha os nomes da Lora, da Elsa e da Mandy, mas depois houve uma outra parceria com o Benny e com o Aquino da Silva, que são pessoas que têm um projecto incrível, o Typography Society, que documenta a cultura visual e tipográfica dos anos 70 e 80 de Macau. Já conhecia o Aquino e o Benny há muito tempo e queria colaborar com eles, mas isso só aconteceu na segunda fase deste trabalho, em que os projectos já tinham sido submetidos apenas com os primeiros nomes. Na realidade o projecto do Benny acaba por surgir aqui através daquele caracter único que ele criou e que o mestre de caligrafia Lam Wing Yiu escreveu, que junta quatro caracteres que têm que ver com o conceito da exposição, portanto, é um caracter que não existe, que foi criado para aqui.» Numa tradução possível, esse caracter pode ler-se como “o espírito abandonou o corpo”, definição que tanto ecoa as obras da exposição de Clara Brito como as mudanças urbanísticas e vivenciais que Macau vai atravessando.
Tomorrow’s Heritage
Trabalho pessoal, de cunho autobiográfico, She Left Her Body é também parte de um projecto mais amplo, ainda em construção, mas já com as linhas que estruturam o seu modo de olhar e intervir no mundo bem definidas. De seu nome Tomorrow’s Heritage, este projecto cruza memória e trabalho artístico, materiais e técnicas tradicionais e relação com o território, como explicou Clara Brito à Blimunda: «É um projecto que comecei a desenvolver no início de 2020 e que tem que ver com uma ideia que já vinha tendo recorrentemente: a de fazer o levantamento e mapeamento de algumas indústrias tradicionais desta zona do mundo, principalmente do Sul da China, considerando que já vivo aqui há 20 anos, sou designer de formação, ou seja, não só sou sensível a isto como já trabalhei com muitos materiais e gosto de os coleccionar; e estar consciente de que nesta zona do mundo há uma série de indústrias que se estão a perder.»
Essa sensação de mudança profunda e acelerada é comum nesta parte do globo, em Macau, mas também em Hong Kong e no Sul da China. Ofícios que até há alguns anos ainda se praticavam abundantemente são agora raridades que apenas duas ou três pessoas mantêm. Desses ofícios resultavam produções muito variadas, de esculturas de divindades em madeira a redes de pesca, passando por tecidos tingidos à mão, objectos de bambu, conservas alimentares. Uma dessas produções artesanais era a da “seda de lama”, mud silk, que Clara Brito ainda pensou utilizar em algumas peças desta She Left Her Body: «É uma seda que eu adoro e que já devo trabalhar com ela há uns 20 anos, nessa altura, comprava o stock todo que encontrava aqui nas lojas de Macau. Nessa altura, não era um material a que as pessoas dessem muito valor. Neste momento, essa seda já só é produzida numa vila em Cantão e é tingida com uma raíz e é muito bonito, porque os rolos de seda são estendidos nos campos e são enlameados com umas esfregonas, depois são lavados no rio onde também há esta raíz que provoca esta lama, enfim, a seda é linda. Era uma seda que inicialmente era usada por pessoas com menos posses, porque elas próprias podiam tingir o seu tecido, e há pouco tempo tornou-se património classificado da China. Esta seda é só um exemplo de alguns materiais que têm valor, naturalmente os seus métodos de produção e os sítios onde podem ser produzidos estão a decrescer, e é um património que é valioso e que me parece que é importante documentar, ver e preservar.»
Se a seda de lama não integrou a exposição, outros materiais cumpriram esse propósito. Entre tecidos recolhidos localmente, papéis artesanais e uma estrutura de bambu criada pelo mestre Zhizha, que sustentava as três figuras tridimensionais que ocupavam a segunda sala da exposição, She Left Her Body incorporou nas suas peças muitos destes vestígios de pequenas indústrias caseiras em risco de desaparecimento, um destino que talvez possa contrariar-se com iniciativas como esta: «Isto tem que ver com a minha sensibilidade e o meu gosto pelos materiais, mas também uma vontade de saber mais. Depois, como sou designer e acredito que é possível olhar para as coisas com um olhar mais contemporâneo, portanto, a ideia é perceber como é que, depois dessa recolha e desse mapeamento, é possível olhar para esses materiais de uma maneira respeitosa, mas com um olhar contemporâneo, que pudesse de alguma maneira preservar, ainda que como nicho de produção, mas dar-lhe um toque contemporâneo. O projecto Tomorrow’s Heritage está pensado em várias fases e como projecto sistémico, mas tem primeiro uma fase de mapeamento e documentação, uma fase de laboratório, de experimentação. Isto também passa por dar a conhecer a outros designers e criativos materiais de outros territórios, que não aqueles em que habitam. E Macau tem essa possibilidade, é um activo enorme que o território tem, esta presença de portugueses e de pessoas de outros lugares para além da China.»
Sem memória não há caminho
Guardar alguma coisa para o futuro é um dos gestos que une She Left Her Body ao projecto Tomorrow’s Heritage, uma exposição profundamente autobiográfica integrando um processo multidisciplinar que pretende preservar de modo vivo uma série de técnicas, materiais e vivências pertencentes a uma comunidade tão plural. Olhar filosoficamente para aquilo que pode ser essa ideia de patrimónios do amanhã foi o ponto de partida para esta integração da exposição no projecto mais amplo que Clara Brito vem desenvolvendo: «É daí que aparece este cruzamento entre a literacia emocional e os materiais tradicionais». De um certo modo, acontece o mesmo no ponto de partida da exposição, a ideia de que dois mundos são diferentes categorias (o corpo e a mente; a literacia emocional e os materiais tradicionais) acaba por desfazer-se, criando um território em que tudo se contamina.
Este é um processo que espelha o percurso da própria artista, cuja relação com a moda, ainda que pouco pacífica, também nasceu de um lugar de afectos, emoções partilhadas e memórias. Como nos contou Clara Brito, o seu primeiro contacto com os tecidos e a aprendizagem dos modos possíveis de os trabalhar aconteceu através da sua avó: «A minha avó era e é uma óptima costureira, apesar de agora já não estar no activo, e eu aprendi muitas coisas com ela desde muito pequenina. Começou por me ensinar a fazer os vestidos para as bonecas, ensinou-me a bordar, a fazer crochet, e eu passava horas no atelier com ela, a mexer nos tecidos, a ouvir aquele barulho da máquina.» Há, por isso, outras memórias e heranças em She Left Her Body, reflectindo-se no projecto Tomorrow’s Heritage e dando forma a um percurso que é de preservação, mas também de avanço em direcção a um futuro, mantendo por perto o desejo de não perder o que passou e de com isso construir algo que outros possam vir a acarinhar: «A minha avó vivia em Caxias e trabalhava nas Oficinas Gerais de Fardamento, ali ao pé da Feira da Ladra, em Lisboa, mas sempre trabalhou de modo muito independente e acho que foi aí que fui buscar esta minha veia empreendedora. E depois era, e é, uma pessoa muito criativa e muito sensível aos materiais, à estética, à qualidade da estética, e eu fiquei com isso, dela e do meu pai, que também é muito habilidoso de mãos. Depois, esse processo foi evoluindo, da criança que faz coisas para as bonecas para a adolescente que faz coisas para si mesma, até ao momento em que entro na Faculdade de Belas Artes para estudar design de equipamento, porque sempre tive uma relação de amor-ódio com a moda, que é uma área que me fascina, mas com a qual não me identifico numa série de coisas, e acho que esse sentido crítico me fez ir para as Belas Artes e não para a faculdade de Arquitectura, para o curso de Design de Moda. Mais tarde fiz uma série de peças que fundiam equipamento com moda, vestidos que se dobravam e fechavam. No segundo ano da faculdade, quando abri o atelier, tinha uma série de clientes em Lisboa que eu vestia, muitos deles ligados às áreas das artes e do cinema, e passava noitadas a trabalhar com a minha avó a fazer as peças para essas pessoas.» Do outro lado deste mundo onde a avó costureira permanece mestre de linhas e tecidos, Clara Brito vai recolhendo as memórias de outros mestres, de outros materiais, e confirmando que tudo o que vamos guardando é sempre caminho para o futuro que chegará.
Fotos © Rose Cheong
Publicado originalmente na revista BLIMUNDA.