Em pé de guerra: cidade e transumância
A breve reflexão que propomos visa tematizar uma articulação específica entre corpo e urbanismo; em concreto, pretendemos sublinhar como o acto do caminhar, compreendendo uma inolvidável condição antropológica, se torna igualmente apto a tecer uma ampla crítica ao modo como as cidades têm sido pensadas e reconfiguradas. Encetamos o nosso périplo através de uma análise fenomenológica do caminhar e de como tal exercício activa e pressupõe uma abertura corpórea ao mundo; de seguida, abordamos alguns desenvolvimentos recentes no urbanismo e na tecnologia que introduziram a erosão do andar a pé e do próprio espaço público como lugar de encontro fortuito com o outro; rematamos o texto precisando e valorizando a actualidade do caminhar como necessidade e prática estética subversiva de apropriação dos territórios urbanos.
Dêmos o primeiro passo assinalando o óbvio: qualquer ser humano, em condições normais, possui a capacidade inata de se deslocar recorrendo às suas próprias pernas. Desde que não haja percursos dévios, somos capazes de nos movermos a cerca de cinco quilómetros por hora em qualquer direcção, varando distâncias e acidentes geográficos. Assim como Édipo perante a adivinha da esfinge, saibamos que a criança que gatinha vai conquistando a sua autonomia a partir do momento em que se aventura no equilíbrio precário das suas duas pernas e até que a velhice tolha e entreve essa liberdade.
Caminhar é pois não só uma aptidão profundamente democrática porque equitativamente distribuída, mas uma condição definidora daquilo que somos, um a priori corporal comum. É no seu próprio ritmo e nesse controlo plástico das redondezas que o mundo se desvela para nós, de acordo com a nossa sensibilidade. As percepções pessoais do espaço e do tempo emergem dele ainda unidas, graças a uma corporeidade movente que é o primeiro gesto criativo à nossa disposição.
Se pelo corpo vamos constituindo o nosso universo particular através da composição íntima de um lar e dos lugares afectos onde as nossas relações pessoais se expandem ou se contraem, o caminhar permite unir experiencialmente esses vários nós vivenciais onde a nossa vida ocorre a cada passo. É ele que alinha num nexo de continuidade os vários “aqui e agora” com que vamos escrevendo e granjeando o sentido de uma identidade pessoal que é concomitante às características de cada lugar; por outro lado, é andando que questionamos as estritas divisões clássicas entre corpo, mente e espaço exterior; à medida que calcorreamos locais ora desconhecidos, ora familiares, vamos descobrindo como a cadência própria que os pés imprimem à nossa curiosidade influencia, condiciona e modela a génese e a estrutura dos nossos pensamentos. Assim incorporados numa inevitável errância, vamos tecendo um diálogo concreto entre a paisagem, rural ou urbana, e as ideias. Em suma, existe uma acção recíproca entre corpo e espaço que o caminhar actualiza heuristicamente.
No que concerne ao ambiente urbano, contudo, o caminhar adquire significativos contornos propedêuticos. Tal como a dinâmica bífida do toque das nossas mãos, caminhar pela cidade é também mergulhar na disponibilidade porosa do corpo para ser percorrido pela sua escala urbana, pela traça dos seus edifícios e pelas sinuosidades das suas ruas, travessas, largos, praças e vielas. O espaço, ao ser atravessado, é traduzido, na sua complexidade, pelos sentidos, de modo que esta auscultação pedestre do solo é também uma revalorização sensorial dessa insinuação mútua. Caminhar é pois o modo mais íntimo de detalhar o urbanismo enquanto arte de produção de espaços, de viver o urbano como experiência estética. Os espaços que assim habitamos e percorremos não nos são ontologicamente exteriores, estranhos ou indiferentes; eles vão afinal ficando entranhados na nossa carne e é essa experiência que, quando salutar, pode enformar um cuidado colectivo para com o espaço público ou permitir a mutação de um espaço abstracto e anónimo para um lugar concreto e individual. Por outro lado, no caso da experiência ser nociva, torna-se possível empreender uma crítica acerca dos malefícios, agressões e processos de ruptura que sobrevêm à cidade.
Até meados do século XX, as cidades históricas europeias foram evoluindo no sentido de proporcionarem um povoamento de elevada densidade paralelamente à concentração de actividades comerciais, religiosas e de poder. Dada a ausência de transportes motorizados e de outras infra-estruturas, havia uma ligação necessária com o entorno rural de proximidade, bem como a valorização de solos agrícolas e das benfeitorias associadas dentro da própria área urbana. Ainda hoje, e apesar da relativa abundância que nos rodeia, a toponímia de praticamente qualquer cidade histórica assinala essa presença duradoura que foi a dependência alimentar. São inúmeras as referências a fontes de água e a árvores de fruto, bem como a existência de património arquitectónico que indiciam antigas quintas de olivais, cearas e moinhos, cercadas por valados e percorridas por azinhagas. Aos mercados municipais assolavam vários mercadores a pé ou nas suas reses, e mesmo com lojas era comum a venda ambulante de muitos produtos edíveis.
Tais cidades, com algumas dezenas e quiçá centenas de milhares de habitantes, foram sempre locais de encontros em simultâneo a serem locais de troca comercial. O valor de uso e a fruição convivial do espaço público sobrepunham-se ao valor de troca, do lucro e da usura que o mercado motivava. A escala dos centros históricos, que ainda hoje apreciamos, adaptava-se plenamente às particularidades do terreno, poupando os terrenos baixos e as linhas de água e prevalecendo a construção para habitação nas encostas e ao longo das linhas de cumeada. Desse urbanismo algo empírico, sem muitos planos e sem muito orçamento, nasceram porém lugares que ainda reportamos como adequados à nossa escala; largos, praças, calçadas, ruas e arcadas albergam um conjunto de características materiais extremamente sensato e que convidam à circulação pedonal de pessoas e à sua apropriação por diversas actividades efémeras.
Ora, os espaços públicos propiciam, precisamente, o exercício livre e nivelado da cidadania, da discussão, de encontros aleatórios com outros actores e é por esta razão que a erosão hodierna do caminhar aponta para um processo político mais vasto de reconfiguração dos lugares, disciplinação de corpos e a predilecção por tecnologias que favoreçam uma desincorporação da vivência urbana, esvaziando-a de pessoas. O urbanismo, mais do que ser um método para regular e gerir o conjunto edificado, é hoje esse novo processo de engenharia social planificada pautado pelos critérios de instalar uma elevada produtividade e eficiência de fluxos e trocas de mercadorias e de informação. Neste ataque à cidade encabeçado pelo longo processo de industrialização, o negócio tem vindo solapar o ócio e com isso advieram as rupturas na continuidade do tecido social e urbano, apartando lugares e pessoas porquanto favorecendo a sua atomização.
Podemos caracterizar a industrialização como um processo que, recorrendo a diversas tecnologias, actua no sentido de introduzir na vida individual e social uma progressiva mediação e distanciação espácio-temporal, por contraste a uma vivência mais directa e imediata da realidade em épocas anteriores. Através de mapas e de relógios, por exemplo, iniciou-se a ordenação do tempo e espaço concretos, que doravante foram retalhados e descontextualizados da existência particular dos indivíduos, até se tornarem ambos em dados objectivos e socialmente normalizados. O indivíduo saberá portanto referir-se e aperceber-se da duração e localização da sua morada e do seu trabalho e às horas votadas à permanência em cada uma.
No que respeita ao caminhar, a instalação de velozes meios de transporte e de telecomunicação tem contribuído para introduzir nas cidades uma proximidade do longínquo, e como tal favorecendo uma evaporação da das características físicas e materiais dos lugares e fomentando uma reconfiguração dissociada das necessidades dos seus habitantes e frequentadores. O global, ainda que afastado por milhares de quilómetros, vem-se insinuando no local através da reprodução de representações simbólicas e disseminação de imagens de outras culturas. Os lugares, e assim as próprias cidades, perdem especificidades próprias ganhando generalidades alheias e desenraizadas, que não são mais do que uma redutora representação fabricada para ser reproduzida e instalada em qualquer parte do mundo.
O automóvel, por sua vez, tem sido talvez o agente tecnológico mais insidioso no que toca às mutações do espaço público e ao desaparecimento do caminhar, uma vez que se tem disseminado graças à avassaladora institucionalização da sua dependência. Monopolizando as deslocações através de um paradigma motorizado que promete mais tempo a partir de um incremento na velocidade, acabou, através das suas exigências espaciais, por expandir e pulverizar o tecido urbano, criando um novo território à sua medida, cujas distâncias só ele consegue vencer. Enclausurando o condutor num habitáculo que mimetiza o conforto do lar, o automóvel inculca nos passageiros uma percepção distorcida do espaço, do tempo e da potência individual própria. As viagens reduzem a cidade a pontos de partida e de chegada, acabando por desligar os transeuntes da vivência sensorial dos lugares, transformando-a num conjunto desconexo de vários interiores enquanto promovendo a ideologia do consumo e do valor de troca.
Caminhar, numa cidade configurada para automóveis, é pois experienciar a distorção das escalas que um urbanismo de cunho estritamente visual e desencarnado, afecto à motorização, introduziu. Os lugares tornam-se inóspitos, as distâncias maiores e a autonomia e a capacidade de experienciar o urbano numa medida humana é anulada; graças à pressão de vários clubes de automóveis nos anos 30 e 40 do século XX, os cidadãos que caminhavam são passados a ser considerados “peões” e o seu movimento é regulado e sancionado ao pormenor, de modo a garantir a eficiência de circulação do tráfego rodoviário: têm de caminhar nos passeios, evitar permanecer nas ruas e estradas e atravessá-las de modo expedito em locais designados para o efeito; a sua auto-mobilidade corpórea foi extensivamente disciplinada por semáforos, passadeiras e demais sustos e cautelas várias perante a iminência de um choque mortífero.
Foram também os transportes rápidos que contribuíram para cindir essa íntima ligação entre a cidade e o campo através do mercado mundial da agricultura combinado com métodos de preservação dos alimentos. Compra-se o mais barato e não necessariamente aquilo que está mais próximo, e daí que os outrora terrenos agrícolas da área urbana tenham perdido valor e estejam hoje loteados por edifícios, auto-estradas ou grandes superfícies comerciais. O que hoje sobra do casco das várias cidades históricas é assim uma breve caricatura desertificada e moribunda que a cultura institucional pretende prolongar e vender a turistas e que convive com uma área metropolitana povoada por várias ilhas depauperadas, condomínios privados em regime de excepção e grandes superfícies sucedâneas das ágoras de outrora. Nestas transformações, a actividade produtiva deixou de estar ligada ao labor corporal porque toda ela foi amplamente mecanizada, de modo que há hoje uma ausência do esforço físico que convive com a obesidade e a existência de ginásios privados onde se corre para ficar no mesmo sítio.
Neste contexto, qual poderá ser ainda a actualidade do caminhar? Perante um urbanismo que se imagina como capaz de tudo planificar, regular e medir para acadimar os seus próprios fluxos, vão sobrando sempre zonas de sombras, interstícios urbanos vazios e banais, mas ricos na acumulação de ruínas e detritos rurais produzidos por uma civilização ébria de petróleo; se tudo aí tem de ter um fim ou um propósito claro, a preguiça ou o gratuito surgirão com a força de um destino. A nossa sociedade sabe-se igualmente prenhe em história e tem por isso especializando-se na exaltação e propagação de estudos, catálogos e outras representações espaciais das mudanças que o seu território atravessa, numa tentativa vã de encontrar referências que possam servir para melhor planear a mutação que atravessa.
Caminhar, hoje, na sua elegante e nua fragilidade, é o boicote mais autêntico que podemos fazer para reivindicar o direito à cidade que vem sendo elidido. É uma recusa da distorção corporal que a dependência de inúmeras máquinas e engenhocas trouxe, através da afirmação da capacidade do corpo para realizar autonomamente várias tarefas. Perambular sem destino é também uma viagem lúdica que sendo inútil nos introduz por conseguinte noutras fronteiras quotidianas das cidades, onde as representações espaciais que delas tínhamos são desconstruídas através de uma experiência pessoal inédita, num tempo livre e deslocado dos fins produtivos em que o tentam paulatinamente inserir; caminhando inscrevemo-nos corporalmente e sem registos num território infinito que só por ilusão se considera como já totalmente cartografado, e assim afirmamos a primazia do real sobre as representações com que o poder o distorce e comercializa. Caminhar é afinal subversivo porque surpreende a actualidade do devir longe de qualquer enquadramento utópico, em que a decadência da matéria subsiste ao lado da inércia do edificado derrelicto e das promessas de melhoria social. Essa cidade real contrasta fortemente com a cidade futurista da política e a cidade postal do turista. E é ainda caminhando em turba que a mole humana pode descobrir-se como ameaça para aquilo que a vem retirando propositadamente dos seus lugares.
Referências bibliográficas:
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