O corpo que não nos pertence: corpo vivo, performance de desterritorialização e arte
Ora, o que é inimitável, finalmente, é o corpo;
nenhum discurso, verbal ou plástico
a não ser o da ciência anatómica,
bastante grosseiro, afinal de contas –
pode reduzir um corpo a um outro corpo.
Barthes; 2009:171
O corpo vivo, como presença em curso, desafiou as categorias da lógica e da metafísica ocidentais, que, para elidir tal dificuldade, o perspectivaram à luz da identidade com o objecto lógico.
Uma vez identificado, intelectualmente, o seu princípio de determinação, a coisa de que um corpo vivo precisaria para ser corpo, ele libertar-se-ia do vazio da indeterminação; vazio comum ao que é transitório, ao que se desvanece sem deixar traço, nem sinal legível, residindo à margem de qualquer narrativa. A fim de sobrepujar as dificuldades levantadas ao pensamento pela transitoriedade do corpo, estabeleceu-se um dispositivo de subjectivação com a seguinte ordenação: o corpo vivo, enquanto presença em curso, deveria possuir uma essência metafísica ou subjectividade, e, portanto, para participar da existência, deveria deixar de ser o que é, para se tornar no que não é, ou seja, uma categoria do sujeito metafísico.
Os dispositivos de subjectivação impuseram-se como agentes ao serviço de uma ideia metafísica de corpo, e formaram a convicção de que sem essa ideia o corpo vivo não poderia chegar a territorializar-se. Foucault, que dedicou praticamente toda a sua pesquisa filosófica a uma investigação sobre o entrosamento entre saber e poder, episteme e instituição histórica, doutrina e legitimação, forneceu dados importantes para pensarmos aquilo que está em causa nos conceitos deleuzeanos de territorialização e desterritorialização.
A desterritorialização compreende-se, historicamente, como parte de um processo mais global de uniformização da experiência, isto é, de territorialização por via do conceito. Por outras palavras, a visibilidade dos corpos, a visibilidade dos enunciados, a visibilidade dos comportamentos, passam a depender de regimes pré-estabelecidos de correspondências entre sujeito e objecto.
O poder, nos seus diferentes aspectos, é analisado por Foucault à luz da sua realidade histórica; e deste ângulo ele não é senão o controlo das desterritorializações por parte de saberes instituídos. As investigações foucaultianas sobre tais dispositivos historicamente constituídos permitem compreender que a filosofia, sobretudo a moderna, serviu como órgão de legitimação de uma praxis do adestramento do corpo vivo; uma praxis assente em dispositivos poderosos de uniformização, previsão e controlo dos comportamentos; dispositivos de coerção cujo poder de acção é fruto da sua presença contínua ao longo de gerações, moldando, quase sempre na sombra do universo do discurso, o desenvolvimento da individuação do corpo vivo; uma acção cujo poder é tanto mais eficaz quanto menos limitado à esfera dos enunciados se mantiver, quanto mais impermeável permanecer à sua representação, quanto mais tempo funcionar lá, na esfera micro-física do poder.
Foi aquilo a que Michel Foucault designou de dispositivos de subjectivação; conjunto de práticas, enquanto formas de relação entre as partes de um sistema ou dispositivo, a funcionar na esfera micro-física da intersubjectividade, que, em última análise, têm em vista a redução dos corpos vivos e das suas dinâmicas imprevisíveis de individuação a uma imagem despótica do corpo: uma linha de continuidade entre leis não-escritas e forma de pensamento cauciona um regime pré-estabelecido, oculto e familiar de subjectivação, que assim alcança um estatuto doutrinário e totalitário sob a forma de sujeito universal.
A filosofia de Descartes, por exemplo, que na era moderna foi, talvez, a que mais desterritorializou o corpo, corresponde, ao mesmo tempo, a um pensamento de territorialização do corpo no interior da ideia de extensão. Mas a res extensa não resolve a questão da corporeidade, antes a dissimula. A extensão não é a subjectividade do corpo, porque o corpo em si mesmo não tem subjectividade alguma, ele é “inimitável”; o corpo vivo, enquanto presença em curso, é performance de desterritorialização.
Dissemos que o corpo vivo, em si mesmo, não dispõe de subjectividade alguma que lhe corresponda adequadamente. Porém, o que os dispositivos de subjectivação mostram muito bem é que sem o corpo vivo, enquanto performance de desterritorialização, a subjectividade não é uma realidade para nós. Defendemos que a subjectividade é uma função que não está naturalmente no corpo; é algo que se lhe acrescenta por meio de uma engenharia da conduta. Eu desterritorializo-me do meu corpo vivo, porque o corpo vivo que sou é essa performance de desterritorialização, para dessa forma subjectivar-me como outro corpo, dado pelo sujeito do saber, como forma verdadeira e incorruptível do meu corpo. Praxis de declinação do corpo vivo que depende e muito de dispositivos que nos cercam e se camuflam pela sua extrema familiaridade, muitos dos quais fazem da minha vontade de desterritorialização a sua própria causalidade eficiente. Substituo o corpo vivo que sou por um corpo pré-estabelecido anonimamente, eis a função da performance da desterritorialização no quadro histórico da metafísica ocidental.
Com este tipo de territorialização, com esta declinação do corpo vivo na sua dimensão própria de presença em curso, perde-se a possibilidade do vir à existência da vida do corpo, com o seu fundo insondável, inimitável e criador, mesmo que «impuro» e sem direito à visibilidade, para se obter uma visibilidade abreviada, um território abstracto que é corpo «puro» de um sujeito exemplar.
O ser do corpo vivo é ser performance de desterritorialização, mesmo que tal corresponda, à luz da actualidade, a um não-ser. O ser do corpo vivo é, na realidade, não-ser, no sentido de que ele é relativo a algo, é ser-desejante, é um querer ser outro que não ele, em suma, é uma possibilidade, mas não como condição da sua anulação enquanto corpo vivo. O querer ser outro é a característica específica do corpo vivo e por conseguinte o seu ser é querer-ser.
Para o corpo vivo, o território é a promessa de ser. Existir e ser, aqui, equivalem-se absolutamente. Porém, o território em vista do qual a performance de desterritorialização mobiliza as suas forças não se confunde com a mesmidade postulada pela ordem do conceito.
O território aqui em causa é da ordem da alteridade. Por isso, o corpo vivo depende do território para existir; porém, uma tal instalação não se cumpre segundo um “por meio do qual”, porque isso manteria o corpo vivo refém da mesmidade e portanto ainda aquém da existência. Ora, uma vez que o território é condição da realidade, o território é da ordem da alteridade.
A promessa oferecida pelo território é a promessa da existência, sendo que tal promessa não é susceptível de ser identificada pelo critério da relação de oposição e continuidade entre essência/aparência, possibilidade/realidade, como se de um objecto posto de antemão pelo sujeito metafísico se tratasse.
Sendo da ordem da alteridade, o território traz consigo uma ruptura ou salto; entre a performance de desterritorialização e o território há uma descontinuidade ontológica tal que, vir à existência, ou seja a territorialidade, não é o culminar de uma sequência lógica passível de ser decomposta nas suas partes. O território é o corpo vivo a tornar-se vitalmente implicado naquela performance, é o seu devir outro.
Por isso, a territorialização aqui em causa é mais da ordem do milagre do que da evidência racional. Há mesmo uma espécie de pacto implicado no devir-outro, mesmo que seja um pacto para o qual quase todo o discurso é apenas aproximativo. Será, portanto, escusado procurar correspondências adequadas para as passagens aqui em causa, porque elas dependem de alianças seladas pela plenipotencialidade das realidades latentes. Estas passagens requerem capacidades incomensuráveis, virtualidades inexplicáveis, ao alcance apenas de pneumonautas iniciados nos mistérios dos sopros. São eles quem melhor compreendem que somos seres entre sopros e que em qualquer passagem esteve e estará implicado um sopro. Quando deixarmos este mundo, deixamos um último sopro para passar para o desconhecido e quando chegados a este mundo, começámos por libertar um sopro inicial, abandonando assim o desconhecido.
O saber que convém ao corpo vivo, enquanto presença em curso, não corresponde ao território instituído pela subjectivação, porque a subjectivação é a mesmidade e o tipo de território aqui em causa permanece Outro. Tudo o que se poderá eventualmente dizer é que através dos sopros e das realidades latentes nos aproximamos das formações dos territórios.
Assim, a fórmula que convém ao corpo vivo diz que ele não existe per se mas em virtude de uma performance de desterritorialização, mesmo que esta não constitua uma condição suficiente para passar a ser; querendo também com isto dizer que, por efeito de uma performance artística, o corpo torna-se naquilo que existe, pluralidade de si e do outro, como um sopro-entre-sopros.
É preciso uma performance artística para que o corpo possa existir, mas não basta ser-desejante para vir à existência a partir da obscuridade inscomensurável da latência. É preciso que se reconheça como feixe de desterritorializações, enquanto a qualidade de que ele é corpo, para que essa predisposição para existir esteja suficientemente distante da esfera de influência da mesmidade para, só depois, devir real.
Mas a performance artística não é operação de territorialização por abdicar dos dispositivos de subjectivação e por deixar de se conduzir por estes. Nada precede a performance artistica do corpo vivo. Pelo menos nada que seja gizado tematicamente como constituindo a condição de possibilidade do vir à existência do corpo vivo como incomensurável universo da latência. Nem origem pré-definida, nem fim previsto: «Enfrentando a aventura (o que me sucede), não saio nem vencedor, nem vencido: sou trágico.» (Barthes;1998:30).
A performance aqui em causa não oblitera a corporeidade do corpo, enquanto vontade de desterritorialização, antes a potencializa; nesta medida, ela inclui uma zona de dupla ininteligibilidade. É preciso uma certa absurdidade para que a performance artistica irradie, em simultâneo, o corpo vivo, como vontade irreprimível de desterritorializações, um desejo inesgotável de querer-ser, e, ao mesmo tempo, um horizonte de sentido, distinto e latente. Nesta zona de coincidência e indiscernibilidade, a performance artistica exibe-se como absurdo vivo; um paradoxo, isto é, uma força que acontece, e que exerce um tipo de presença tão obscura quanto contundente, mesmo que, como objecto do conhecimento, ainda não tenha chegado à existência.
Por conseguinte, a existência, na performance artística, é um produto descentrado da relação cognitiva; ela devém um efeito do território que está absolutamente fora do eixo estruturado pelos códigos de subjectivação. Por outras palavras: restituição da existência ao existente é o paradoxo implicado no território.
O paradoxo aqui em causa desmorona o mundo das hierarquias e das separações que nos segmenta por dentro. Aqui, o território na sua incontestável presença resiste a toda a descrição, a toda a definição, a todo o controlo pela linguagem, porque como performance artística o corpo vivo caminha em direcção à existência da vitalidade em latência, como um território não antecipável dedutivamente por via do conceito, nem seleccionado indutivamente pela lógica das probabilidades. É um caminhar na direcção do que está por chegar, não à maneira de uma possibilidade lógica de um acto, entendido como a sua realização necessária, mas antes como um estar à espreita do encontro indispensável, urgente, que nos resgatará do ciclo infernal da mera sobrevivência física, como quando do encontro do vento e da água do mar se forma a onda no seio da qual o surfista, que esteve à espreita por vezes horas, dias, anos, territorializa finalmente na sua performance artística, uma experiência íntima e inimitável capaz de o transportar para além do mero exercício mecânico da satisfação biológica ou da pura execução técnica.
Há um saber envolvido na performance artística; mas é um saber sem dispositivos de poder (téchne), o qual não procede de pressupostos protocolares, nem se concretiza nos processos de domesticação. O aspecto absurdo, porque paradoxal, deste saber reside precisamente no facto de ser um exercício prático que não tem nada para passar à prática, pelo menos segundo o ponto de vista que nivela toda a actividade do corpo por um esquema de acção concebido para a produção da subjectivação ou para a sua acumulação.
Do ponto de vista da subjectivação, a performance artística é um puro desperdício de energia. Um exercício que não transforma o saber em reprodução de saber, que não transforma a energia libertada em acumulação de poder, que não afecta a força à exclusiva conservação física do organismo. Por isso, ela tende a ser posta à margem do mundo da produção e da acumulação, da troca de saber por poder e de poder por saber, do tacticismo e do instinto estritamente biológico de conservação do organismo.
A corporeidade como performance artística visa desenvolver uma zona de visibilidade segundo regras que não se coadunam com as regras dos dispositivos de subjectivação; ela é uma corporeidade que necessita de um reduto próprio para existir como corporeidade, de uma configuração onde habitar, de uma condição para a sua adaptação que, embora inegociável, não seja factor de alienação do incómodo que é a existência.
O território é a escapatória da corporeidade ao sequestro no interior dos aparelhos de subjectivação – aparelhos que, no fundo, se reduzem a dois: técnhe e bíos. Ele nada tem que ver com esquemas pré-estabelecidos de adaptação, mesmo que o território, aqui em causa, seja o pressuposto fundamental de toda a adaptação. Até da adaptação prevista pelos esquemas das teorias da psicologia desenvolvimentista.
As dinâmicas da corporeidade no seio do território não se compreendem por analogia. Pensar a corporeidade do território por analogia com um estado natural ou contratual, define um pensamento centrado em essencialismos de espécie ou estrutura. O território parece surgir do nada e levar-nos para algures. Esse espaço assim edificado não está contido por uma forma, antes contém toda a forma da corporeidade assente na experiência do encontro não premeditado. Espaço que não é extensivo, nem institucional, mas, residindo entre os agentes e as funções que estes representam, intensifica-os nas suas rivalidades, vitalidades, virtualidades, coincidências.
A virtualidade do território é a performance. A actualidade da performance é o território. Estes são movimentos contraditórios, mas não são movimentos alternados ou incompatíveis, pois eles coincidem no mesmo instante. O tempo do território não existe para quem o considera como o resultado de uma possibilidade que já o contém na sua essência.
Mas o território não é resultado nem termo de uma linha que vai de um ponto a outro. O tempo do território é o do começo da desterritorialização, como qualquer coisa de misterioso que não é antecipável adequadamente. O território é o espaço que inaugura uma movimentação do não-ser para o ser, como qualquer coisa que não estava previsto acontecer; por isso está inexoravelmente do lado da convicção e não do conhecimento.
Com efeito, o regime das analogias é apesar de tudo insuficiente para compreender o território, porque este não corresponde ao destino natural da performance de desterritorialização, mas é a sua condição de existência enquanto performance. O nexo entre ambos não é o da identidade, porque nem o território consiste na condição de possibilidade, nem a performance de desterritorialização possui existência independente.
A corporeidade é múltipla, não como determinação da sua função, à maneira de uma competência transponível para n casos. A corporeidade é multiplicidade que, por sua vez, é irredutível a elementos últimos, imutáveis e universais. Não há duas corporeidades idênticas, mesmo que haja uniformidades relativamente aos seus modelos de compreensão. Porém, estas uniformidades não asseguram a conformação plena das corporeidades com uma função ou saber passíveis de transferência para outros cenários, senão por efeito de uma confusão elementar do que está em causa na significação da corporeidade enquanto corpo vivo.
Nem civilização nem barbárie, nem sagrado nem profano, nem institucional nem marginal, a corporeidade do corpo vivo acontece nos intervalos deixados vagos pelas configurações do sistema de produção, reprodução e divisão da força de trabalho; acontece nas pregas entre a palavra e a acção; numa zona que está num ângulo cego, num reduto flutuante e deslocado do regime estático das identidades e das oposições. Numa palavra, a corporeidade enquanto tipo de território próprio do corpo vivo vive-se como inquietação irreprimível; assim é para nós o território. Ele intensifica-se, multiplica-se, complica-se, desdobra-se e redobra-se precisamente quando os conhecimentos das experiências anteriores começam a desabar, as possibilidades de sentido parecem todas desmoronar, o aspecto do mundo habitual mergulha num efeito de estranhamento, surgindo daí um sentimento de repugnância pelo mundo como simples soma arbitrária de coisas, mundo como partes-extra-partes. Mas ainda assim sobrevive o desejo imperioso de ir além dos limites do mundo estranho e inabitável, inventando para isso novos territórios, extraídos ao combate contra o estranhamento e o caos deste mundo.
Na sua relação com a corporeidade do corpo vivo, a obra de arte fá-la existir e dá-lhe a permanência necessária para o combate contra o afundamento das possibilidades e a consagração da inércia. Por sua vez a corporeidade é, no seio desta relação, um vector de multiplicação de dimensões da obra, acrescentando-lhe novas actualidades. A obra de arte constrói uma corporeidade mediante regras que se definem em função da experiência que de cada vez acontece. Estas são regras que não se deixam possuir intelectualmente como coisas em si porque a corporeidade que de cada vez acontece depende de variáveis intransponíveis ou insusceptíveis de serem isoladas do momento do encontro com a obra. A corporeidade do corpo vivo afirma a dignidade ontológica do transitório na experiência da obra de arte e esta transforma essa efemeridade numa ficção de permanência capaz de sobreviver às dobras do tempo.
Não havendo correspondência adequada para a corporeidade do corpo vivo, a realização da obra de arte deixa de estar contida na unidade de um método. Afirma-se a corporeidade como a origem da obra de arte e a multiplicidade como o seu modo de expressão. Quer dizer, a significação da obra de arte pressupõe um encontro que coincide com uma zona que se mantém indeterminada para a esfera do discurso, mas não para o plano da corporeidade. Esta zona íntima à corporeidade e intransponível adequadamente para a representação corresponde ao território, do qual não sobra imagem que lhe corresponda e que o substitua convenientemente.
Se há uma forma de aí entrar, ela é um segredo que cada artista transporta; não à maneira de uma fórmula secreta que ele avaramente guarda num local supostamente inexpugnável a mãos alheias, mas como o mistério de uma coincidência feliz.