Para lá do plátano

É melhor ser alegre que ser triste / Alegria é a melhor coisa que existe

(Samba da Bênção de Vinícius de Moraes e Toquinho)

“Assim continuaram todos juntos, cada um à sua maneira, na vida quotidiana, com e sem reflexão; tudo parece seguir o seu curso normal como nestes casos extremos em que tudo se põe em jogo: continuamos a viver como se nada tivesse acontecido”.

Goethe, citado por Peter Handke

Maré cheia

Aquele barco que está lá abandonado junto ao mar tem histórias para contar que ninguém ouve. Histórias que precisam de tempo e atenção. As gentes dispersas estão com falta de tempo, deixaram escoar-se nessa falta.
Não há nada de mais cruel que esquecer alguém junto às suas memórias sem poder vivê-las. Viraram-no de ventre para cima, impotente para se virar, deixando-o nu; serve de exemplo a quem tenha
tentações de desafiá-lo para uma passeata, um exemplo que diz “isso já foi e já não é”. Convenceram-no que estava velho e que ali naquele canto escuro era o local ideal de quem já não serve. Entristeceram-no ao ponto de ter aprendido a chorar.
Fica ali todo o dia, madeira seca e tinta que se solta; a murmurar para si mesmo canções com o ritmo do mar, agitadas ou calmas conforme o estado de alma. Alegra-se quando chove, exaspera-se quando o verão vem e todos caminham em direção ao mar sem se lembrarem dele. Sente que não é ali que pertence.
Esse barco já sem remos nem destino hoje quis ser fogueira, quis aquecer quem tenha frio. Esse barco foi fogueira e suas histórias ouviu nas bocas de um velho avô marinheiro que contava com todo o tempo do mundo uma história à neta já sem frio.

Compreendeu então enquanto ouvia, ao recordar seu olhar vazio de quando olhava para o mar, que é na entrega que o olhar se enche. Maré-cheia pode vir nesta vida de mudança. Nesse sentido que encontrou para a sua morte renasceu; na morte e na dor foi feliz como era quando era novo e navegava solto lá na baía.” 

(escrito a 23 de outubro de 2006 como um prenúncio)

15 anos de um Traumatismo Crânio Encefálico e consequente estrada de recuperação

Introdução

O Outro que está fora de ti e é uma boa forma de não viveres enclausurado em ti. Se não existem outros que nos vêem, lêem, sentem, cheiram, odeiam ou gostam de nós, não somos, logo, não existimos. Outros que estão fora de nós. Que saboreiam, sonham, interiorizam, que ouvem, cantam, musicam e afins. Que têm a sua experiência diferente da nossa. Que sentem por dentro no coração, no estômago, que pensam, recordam, imaginam, futuram; ou por fora, na pele, no corpo. Que vêem, pintam com cores claras, escuras, imagens dispersas, amontoadas em olhares verticais, horizontais. Que inalam, exalam para encher, esvaziam os pulmões. Tudo o que pensamos parte de outros; tudo o que somos é feito a partir de fora. É leve ou pesado consoante com quem nos relacionamos. Um espetáculo de dança ou qualquer outro, é criado para ter público. Sozinhos não existimos, não somos. Em grutas isolados, sossegados, parados, inativos. É preciso barulho para dar valor ao silêncio.

É preciso movimento para valorizar a pausa. Solidão para sentirmos falta dos outros, prisão. Toda a comunidade é assente em confiança. Morremos, vivemos e nascemos entre outros. Cada um é mais ou menos comum; precisa sempre dos outros.

Para mim existe uma imagem central: o Plátano como destino (ponto de partida), como linha de separação de uma nova vida. (J Abegão)

É uma vida nova, uma ressurreição, um embate forte, que divide o antes e o depois: o principal ganho é um estabilizar… 

É não ter ficado afetado intelectualmente, virado um corpo sem alma e ter ganho a possibilidade de entrar como observador num mundo menos eficiente.

A entrada na transformação 

Esta história tem início no dia 18 de Novembro de 2006, pelas 4 da manhã. 

Era uma vez um jovem de 25 anos (imagine-se um jovem de 25 anos), acabado de voltar de Berlim, do programa Leonardo da Vinci da União Europeia, onde estivera durante quatro meses. Regressava para casa, sozinho, de madrugada, a conduzir, em Galamares, numa estrada conhecida, de Sintra para Colares. Recém-licenciado (antes do projeto europeu) em Política Social, nome pseudo para Serviço Social, em 2005. 

Estava como voluntário numa ONG de apadrinhamento à distância, pela qual se preparava para ir para Moçambique. Vinha de um jantar com uma amiga, chegou a pôr a hipótese de ir jantar a casa de uma outra amiga e não foi.

Outros movimentos podia ter feito e não fez, rodopiou assim, ali.

Tinha-se queixado de cansaço, nessa sexta-feira, com as colegas no trabalho: a vida por construir (como é sempre!?) imaginava-se de determinada forma, mas seguiu outro caminho… como é sempre o futuro.

Pode sempre ser melhor e/ou pior, está por ser dançado.

E embateu, crê-se que adormeceu, saindo da estrada, de encontro a um plátano; ficando inconsciente; nisto passou um automóvel e ligou às autoridades, INEM, GNR e veio uma ambulância para o salvar.

***

Suponho que teria sido um dia habitual, trabalho de inserção de dados no sótão da associação onde era voluntário que lhe estava destinado, num sótão (Degrau, degrau, degrau. Subindo até ao cimo de tudo se chega ao sótão. Oiçam os passos. Chega-se querendo!), base para este texto. que se transformou num espaço mágico.

Lembro-me vagamente de coisas associadas àqueles tempos, imagens cortadas: 

- de ir buscar a tal amiga a casa (esperando no carro que ela já vai descer, podia ter sido naquele dia ou noutro);

- de escrever o texto da previsão do barco abandonado à beira-mar em Cascais, espaço diferente (ver  inicio “maré cheia”);

- de uma ida a um restaurante; de retornar cheio de sono.

Comunicação telefónica em repeat: 

Teve um acidente, sim, ontem, no regresso a casa, de madrugada; está em coma no S. Francisco Xavier, visitas às 15h (soube, a posteriori que só puderam entrar os pais por escasso tempo).

Sim, tem um TCE – Traumatismo Crânio Encefálico, um TCE!

Apareces por lá!?

E avisas os conhecidos? 

Ok, até já!

A evolução (sempre positiva) tem vários ritmos e esperanças, mudei muito de hospitais (e de cuidadora/es) consoante as respostas disponíveis para as necessidades. 

Houve progressos mais notórios nos primeiros tempos e depois, uma melhoria lenta nas mais diferentes áreas: o corpo humano é fantástico, enorme, construído no corpo de mulheres deusas; a evolução é explicita para pessoas que não me viam com regularidade, mas espaçadamente.

S. Francisco Xavier, Amadora-Sintra, Alcoitão, Cuba (duas vezes), Cercitop em Sintra, Múrcia (Serviço Voluntário Europeu), ILCN (Instituto Nacional Luso Cubano, CRPG – Centro Reabilitação Profissional de Gaia, fisioterapia em casa; fala no Hospital Santa Maria, Hidroterapia nos BV de Colares, n’Os Pinguins e nos BV de S. Pedro, Hipoterapia no Centro João Cardiga.

Cada um destes locais dava um cenário, um tempo, cada pessoa um conto. um diferente acto e cada terapia outro livro: Fisioterapia, Terapia da Fala, Ocupacional, AVD (Atividades da Vida Diária), Hipoterapia, Hidroterapia, Auxiliares, Enfermeiros, Terapeutas, Médicos.

O coma do Belo Adormecido. Muita gente (nem sabia que conhecia tantas  pessoas). Achavam que ia morrer e queriam despedir-se… até o grupo com que jogava sueca na escola secundária (nunca tive nenhum, não se preocupem) apareceu.

Amontoado de gente, visitas à vez a observar (comunicar) o corpo que dormia, troca de entradas na candonga (sem os enfermeiros repararem), histórias, memórias, segredos, preocupações, muita confiança, recordações, fotos, olhares, imagino que poucos choros e sorrisos. 

Ali, de alguma forma, houve esperança e força depositada em mim, crença num futuro melhor.

Depois desapareceram quase todos, já ia ficar, não ia morrer já, ficaram os mais próximos: há, na sociedade, um resguardo e isolamento de cada um. 

Vivemos numa comunidade mas com muito individualismo, apesar das formas de comunicarmos à distância terem crescido/aumentado muito.

Acordar e levantar a olhar para a frente e para o alto

Imagens: fazer uma festa enorme com a mãe antes de deitar por conseguir ficar equilibrado em pé junto à cama de pijama, antes de dormir; hoje parece ridículo todo aquele entusiasmo por algo tão óbvio.

Cadeira-de.rodas: não é possível imaginar a importância deste adereço antes de precisares a sério dele.

Muda a roupa (do pijama à roupa do dia a dia); andarilho, tripé, sem apoio. 

A Andar: reaprender a esquecer o medo e a mobilizar-me leve; passar o peso de cada um dos lados, para o lado direito para mexer a esquerda; e apoiar-me no centro, mobilizar o rabo para a frente. 

O  R. faz um bom trabalho, tranquilo, com pouca ajuda oral.

Dançava andando: passo direito, esquerdo, direito…

A Falar: Quadro com alfabeto onde apontava as letras para formar palavras; havia quem escrevesse no telemóvel por inépcia. No começo só dizia olás e vogais – A, E, O, U; o I era mal amado entre as vogais, ginástica interna: ponta da língua atrás dos dentes da frente; zês, cês, esses, tês mais complicadas, entre outras: a partir de certa altura comecei a ir ter terapias da fala no hospital Santa Maria com a terapeuta Raquel Ayres e é outra coisa, tanta qualidade.

Um olá à saída do Alcoitão a uma enfermeira foi recebido com júbilo: parou, recuou e pediu-me para repetir: OLLLÁ! Fantástico, já ganhei o dia!

É incrível!

Ninguém fala como eu devo falar, devagar, repetindo cada sílaba, é preciso um tempo diferente, pouco 

Dançava na comunicação e era bom entenderem-me!

Evolução lenta: devagar se vai ao longe!

A fala é feita sem perigo de queda; cada vez que estou a falar é um treino, uma melhoria, quanto mais falar com atenção e cuidado melhor vou falar.

Com a marcha é igual mas 1,80 de altura é bem alto e tenho necessidade de apoio; andar é mais perigoso; 

São ambas preciosas na vida de cada pessoa: conferem facilidade de mobilização.

É impressionante o corpo humano, coisas que parecem óbvias como andar e falar requerem outra atenção quando falham; é uma obra de concepção genial e divina. 

Tudo bem pensado e a precisar de desconcentração, descontração.

Terapia da fala

Chego num abraço aquele olhar/espírito alegre, sento-me depois de ter vindo pelo menos 30 minutos a andar, percorrendo o hospital, desde o carro.

Cumprimentos, perguntas, respostas, vamos começar.

Sento-me defronte de Ela, endireito a cara, é importante o alinhamento; conversar é mais complicado do que parece; a ginástica que é preciso para ser bom locutor na rádio; é incrível como cada corpo humano está construído e bem, ao pormenor. Procura palavras com sons mais complicados para eu repetir

Raquel Ayres, a terapeuta da fala: já tive muitos terapeutas da fala mas ninguém que estivesse tão empenhado no utente como ela, a terapia é sempre estimulante desde a chegada à partida; é muito culta e um olhar que faz falar.

Alimenta curiosidades e abre horizontes; é um prazer de conversa. 

Falar: do não dizer nada, dizer só vogais, separar sílabas, palavras curtas separadas em frases curtas e sabe bem conversar, falar e andar melhor com interferências; andar e falar parece óbvio mas não é nada simples ou deveria ser mais e para isso melhoro.

Claro que ela tem como estímulos a caminhada até ela no Hospital de Santa Maria com gente e olhares abertos além dos almoços, na Vanda, apetitosos.

As vogais digo com encanto primoroso, falar brasileiro como tem sons abertos é mais compreensível. Letras mais complicadas C, T, S, Z.

É incrível!

Ninguém fala como eu devo falar, devagar, repetindo cada sílaba, é preciso um tempo diferente, pouco. 

Dançava na comunicação e era bom entenderem-me!

A FALA requer tempo: podes estar uma hora para entender uma piada sem interesse nenhum. Acho que sempre tive interesse nas palavras; dois pais filósofos que sempre gostaram de conversar às refeições. A maior parte do tempo tenho gente a auxiliar que já sabe os truques e traduz.

Fisioterapia (muitos mais existiram mas este merece realce…)

Chega de mota ou carro, consoante o calor, e desmascara-se revelando o agradável sorriso, preparando o local de trabalho.

O RP incógnito e misterioso, o fisioterapeuta: foi-se dando a conhecer sessão a sessão, em casa, em olhares amigos e compreensão das necessidades sentidas por mim, o equilíbrio e a velocidade melhoraram semanalmente.

Andar: requer calma, falta de pressa e equilíbrio, assentar um pé e depois cada perna a seu tempo, o pé, o joelho, a anca, o rabo, passar o equilíbrio de um lado para o outro: peso no lado direito para avançar a esquerda e vice versa; no fim regular ao centro: andar bem é muito complicado, precisa que te esqueças de tudo o que pode correr mal.

Começo sempre no meu quarto como que aquecendo em pé, 20/30 minutos. Estar em pé é bom para os músculos trabalharem. Mister R. senta-se nas minhas costas e pede para olhar para os lados, pede para dar passos pequenos.

Saio para a maratona realizada na minha casa que parece alargar, crescer, tornar-se grande. Saio pela porta do meu quarto que é moldável, às vezes aperta, outras alarga.

Peso para o lado contrário do pé que vai avançar e em cima das ancas, nunca muito dobrado para a frente, equilibrar-me!

Viro à direita para o corredor a andar: impressionante a segurança que sinto/dá ter outra pessoa  ao lado e varia por quem é. A velocidade e estabilidade variam imenso, a confiança e segurança são reações psicológicas engraçadas. Caminho até à ponta do corredor, em direção à porta da rua, faço lá um pião, pé direito pousado e pé esquerdo roda ou para a direita ou para a esquerda.

Volto e viro à direita para a sala, onde não há paredes perto para me apoiar se cair, Mister R. cuidado que o produto é precioso!

Dou uma volta ao fundo/meio da sala para regressar; as risadas são inerentes às dúvidas. Volto ao corredor e volto à direita em direção à outra ponta do corredor e ou vou até ao fundo, dou a volta e retorno ao meu quarto à direita ou entro logo à esquerda.

Esta sessão pareceu mais rápida do que nhabitualmente, mas é sempre uma hora a uma hora e meia.

Além destas duas, essenciais (Fisioterapia e Terapia da Fala) tive outras importantes: terapia Ocupacional (membros superiores e tronco), Hidroterapia (a água muda-nos o corpo), Hipoterapia.

Um olá à saída do Alcoitão a uma enfermeira foi recebido com júbilo: parou, recuou e pediu-me para repetir: OLLLÁ! Fantástico, já ganhei o dia!

Uma palavra especial para a Hidroterapia, água, piscina, lá dentro o peso muda, torna-se leve e andar é mais simples. 

O tronco torna-se moldável, maleável. É fácil ser amigo com quem partilhamos sensações aquáticas: a Dude, a alternativa Alda, o Pedro físico.

Na água, o corpo torna-se mais leve, perde peso; anda mais facilmente e o bem-estar entre as pessoas cresce, parece não haver inimigos! Sou mais aberto e os heterónimos são menos e organizam-se, não discutem tanto; torno-me mais claro como o esperanto ou o silêncio, como falar sem voz, olhando!

Dançando em filosofias

Para onde vamos como homens / mulheres/ ser humanos? (note inicial da bailarina Ana Rita Barata, que me incentivou a escrever este texto)

A capacidade divina de prever o futuro ninguém tem, nem seria bom ter; é bom não sabermos como vai ser amanhã, ser surpresa, se soubéssemos talvez não vivêssemos. 

O futuro, como sempre, é capaz de ser melhor; há qualquer coisa numa criança que nasce, na nova energia que limpa, há muita esperança nela, no que nós fazemos dele e dançamos neste presente desejando adiar o fim da peça.

E nos muitos dançarinos que existem e se entregam, diariamente, nas suas atividades da vida diária, em seus trajetos/projetos para serem/fazerem deste mundo um Mundo melhor.

Se cada um pensasse, desejasse que ele aconteça e trabalhasse no seu pequeno mundo com uma crença mais global ele acontecia ou talvez não seja assim tão óbvio.

No fundo, todos trabalham para melhorar o mesmo mundo mas não querem o mesmo mundo. 

Cada um quer coisas diferentes dia-a-dia, todos as mulheres, homens e seres humanos; de diferentes estares, idades, géneros, vivências, locais, ideias; não querem o mesmo. E felizmente que assim é, como o arco-íris, com muita cor/tom diferente, feias também.

Todos obtemos muita força uns nos outros, homens, mulheres, ser humanos, somos como canibais, precisamos uns dos outros, a nossa força e brio que temos nela vem deles, da comunidade humana.

Pensando neles, nos outros, olhando de relance à volta: computador ligado à internet com música a sair das colunas, letras, palavras, imagens, quadros, fotos, cama, telemóvel, porta, roupa, cd’s, janela, jardim, árvores, plantas, jardim, cortinas, cada um destes conceitos davam livros e são imensos; normalmente, não damos importância a todos os privilégios que significam estar vivo.

E um corpo? Ideias, pensamentos, imaginação, órgãos, células, sangue, movimentos, respiração, inspiração, expiração, força; foi tudo tão bem pensado que torna as mulheres e seus corpos deusas. 

Um corpo em que podes ser tanta coisa: lazeres, trabalhos, cuidados, cuidador, educando, educado, sujeito, objecto, criador, criado, pensador, pensado, ator, doente, devorador, adorador, profissões, escuta, visão, voz, sensação.

Adoras pessoas?

Há muita gente que não interessa!

Resposta: de Todos!?

É verdade, mas não há ninguém que não possa tornar-se esperança. Sem pessoas, isolados, numa gruta ninguém existe. 

E sozinhos é triste: é preciso, pelo menos, um livro ou escrever para outro alguém.  Todos precisam de outros, de pares, de trios, de grupos, de pessoas…

E tenho (re)parado, observado os mundos, os cantos, como não o saberia/poderia fazer antes, não me dava tempo para olhar à minha volta; quero partilhar alguma aprendizagem que tenho feito com o meu acidente.

De partilhar gosto e quero fazê-lo numa descrição que vai socorrer-se muito das vossas  imaginações e construções, o vosso olhar é parte importante da leitura, tento descartar-me da responsabilidade. 

Achava a vida (já) muito chata e repetitiva e resolvi que precisava de mudá-la do avesso, de pernas para o ar; a verdade é que não sei se tinha este olhar sobre a vida mas, quando a morte espreita perto, a possiilidade de ficar sem vida, agarro-me a ele e ganha-se felicidade no respirar, no andar, no falar, no abraçar, no corpo infinito que pensa, sonha, imagina e brinca.

Procurar andar melhor e falar de modo compreensível, enfrentando a normalidade é o desafio. Pede de mim, de nós, alguma exigência e o mundo, em geral, melhora com ele.

PlátanosPlátanos

Pouco importa se se acredita no destino. Aprende-se com esta derrapagem e reequilibrío. Há sempre uma  perspectiva que nos torna melhores.

Dancemos!

As palavras pretendem comunicar (pôr em comum) com o mundo que paira à nossa volta, nada mais do que isso; as próximas PALAVRAS exprimem ritmo, movimento, fluidez e ação, de facto, o acidente dotou-me de um abrandar para olhar e observar.

Apreciar a lentidão.

Nada mais que desenhos dos conceitos neles incluídos… coloridos, movimentados, formam novos seres — as palavras que pensam — e é maravilhoso esta coisa de aprendermos nomes/substantivos diferentes que se relacionam com objectos, é das coisas mais impressionantes que o ser humano tem em vários espaços, várias línguas.

Sente-se o som que, calado, dá pensamentos ritmados e é com cada um de nós a capacidade de entrega ao jogo, deixemo-nos ir.

Parto de uma vontade que sempre tive em (d)escrever este percurso que tem tido um conjunto de fortes companheiros.

Uma imagem: da cama num hospital, à cadeira-de-rodas, ao tripé, andar sobre as pernas sem apoio extra o meu corpo.

Não me lembro de muita coisa e o que sei agora já foi contado pelos que viveram essa etapa, que eram imensos: tantos que já fui famoso mas não me lembro, estava em coma, quase morto mas ainda não era altura de partir.

Alguns lemas, regras, leis que tenho usado como base para me dar estabilidade e esperança.

Só pode! (dito com tom afirmativo de quem não aceita recusas).

Há males que vêm por bem!

Se fosse fácil não tinha piada!

O meu otimismo pode ser desconcertante, desconfortável, incompreensivo, pode deixar mais dúvidas que respostas mas é por aqui a minha confiança, segurança, os meus alicerces como resposta ao desafio que a vida me colocou.

Tenho confiança, por olhar para o lado, para o passado, de que a tendência é dos corpos melhorarem; bem e mal cruzam-se mas o olhar e a sua vontade levam a ver em tudo ganhos e, nos passos atrás, ganhar balanço para dar dois à frente.

Pode levar a variadas imaginações, para vários mundos coloridos, negros, cinzentões, aborrecidos, densos, velhos, novos, modernos, imaginativos, construtivos, feios, aterradores, pessimistas, otimistas, leves, pesados, alegres, animados, conservadores, inovadores, cansados, refrescantes, geniais, ou o que quisermos, para onde estivermos virados, etc.

Desde então, do acidente, tenho vindo a despertar lentamente (habituar-me a outro EU demora tempo (15 anos agora: 2006 - 2021), para o mundo e a descobrir que gosto dele, anão acho que desgotasse dantes mas, agora, passo mais tempo calado (relembro que a fala foi afetada aquando do acidente) e ganho tempo a pensar.

A vida foi mesmo bem pensada/esgalhada e tem sempre tendência para renovar-se, um exemplo: quando sangramos, o sangue que seca para criar crosta e nova pele.

A nossa comunidade está muito bem preparada, para nos proteger: ia alguém a passar que ligou para uma ambulância que me levou para o S. Francisco Xavier.

Digo Há males que vêm por bem, porque talvez precisasse de parar e olhar para o mundo para ter noção do privilégio que é estar vivo, porque foi assim e não doutra forma diferente não sei, talvez nem seja bom saber estes mistérios da vida.

Se fosse fácil não tinha piada! Dizem-me que com todo o apoio que tenho que é muito fácil ter esta conversa; peço imensa desculpa por ter tantos apoios, relembro que não falo bem e não ando sem apoio… valorizar quem gosta de mim é natural mas fazer discurso de coitadinho era mais fácil mas não quero fazer, ser um, não sou!

É com cada um escolher a perspectiva mais interessante e há sempre qualidades a valorizar: escolhe-las nem sempre é evidente.

Porquê EU é que sobrevivi?

Porque não morri? 

Porque não virei um corpo sem mente?

Ou com mente com outros limites?

Porque tanta gente puxou por mim e eu não podia defraudá-los.

A minha imagem era a d’O Belo adormecido (nome de familia paterna: Belo!) e pensavam, os leigos, que quando acordasse do coma, me levantava e andava; as coisas demoram um pouco mais, não era brincadeira: Devagar se vai ao longe!

Noutro tempo e lugar desta história (haveria muitas pessoas de quem falar mas eles dois são com certeza os fundamentais); dois Pais formidáveis em resposta a este meu post, imaginação escrita, num blog (www.brincadeirices.blogspot.com), a 04 de Dezembro de 2008:

Título: latindo (da Ginja) aaaauuuu - este texto escrevi no blogue e só merece ser recuperado pela consequente resposta dos meus pais; Ginja é uma companhia amiga que imaginei estar cá em casa também.

Vou chorar. 

Devia mentalizar-me de que é grave o que me aconteceu, é triste. Arrepender-me dos sorrisos alegres vertendo vertigens verdes. Encarnando um dia de novembro de 2006 em que voltava para casa e crê-se que adormeci embatendo num plátano. De manhã, numa vivenda do banzão batem e ‘sr. Belo, não vimos trazer uma boa notícia: o seu filho teve um acidente e está em coma’. ‘desculpe?’ Ginja aparece a bater a cauda, uma festinha e ‘ginja, o teu dono emigrou e está longe.’

‘Teresaaaaaaaaaaaaaaa’, vem espavorida, assustada e vê o guarda e uma cara dum Fernando desconhecida ‘o que foi?’ (…) teve um acidente e está em coma, o que fazemos?Teresa diz a chorar ‘avisamos familía e amigos’, o agente diz em jeito de retirada ‘está em são francisco xavier, qualquer. 

Resposta da mãe Teresa:

(…) ficámos suspensos, vestimo-nos e viemos para o Fr. Xavier; disseram-nos para esperarmos à entrada da urgência: uma médica grávida esperava por outra (percebi que não nos queria falar sozinha) e disse-nos para esperarmos até te podermos ver já nos cuidados intensivos.

A manhã estava fria e com sol e ficámos na rua à espera e então, aí, decidimos a quem íamos telefonar. Chegaram a tia São, o tio Zé e depois Tiago e a Ricardina e o tempo continuava suspenso nessa manhã fria e com sol de Inverno. Bebi chá no bar (que nos iria acolher durante dias e dias) à espera de te podermos ver: estavas calmo como se estivesses a dormir serenamente e não sabíamos ainda os caminhos que viriam a ser descobertos com luzes tão diversas até hoje e sempre, porque sim.

E resposta do pai Fernando:

Contado por mim, o que me lembro bem é das pancadas na aldrava da porta, com força, às 8 da manhã de sábado. Vir à porta e serem dois guardas da GNR: ‘é o senhor F.A.Belo?’ ‘Sou’. ‘Pai de J.M.J.Belo?’ Meio acordado, pressenti que chegara ‘em pessoa’ o que tantas vezes temera pelo telefone. ‘O seu filho José Maria teve um acidente’, deve ter dito, mas já não me lembro das palavras. A Teresa veio logo, atrás de mim, suspensa também das palavras deles. Quanto ao estar em coma, foi a minha pergunta antes de eles irem embora: ‘não sabemos, estávamos a regular o trânsito’. Não chorámos nessa altura, despachámo-nos a vestirmo-nos e abalar. A conversa com os guardas demorou um bocadinho, íamos fazendo perguntas, disseram-nos que tinham serrado a porta para o tirar, e mais coisas, mas eu tenho tentado, não consigo lembrar-me de quase nada. Mesmo da 2ª pergunta, se eu era o teu pai, não estou certo da formulação. E também não pensámos em telefonar à São e ao Zé senão depois de te termos visto. Ela perguntou, disso lembro-me: ‘o que é que nós podemos fazer?’ ‘Venham cá ter’, e vieram. Depois, levaram-nos a casa deles, almoçámos numa tasca ao lado. Aí, na sala deles, sozinho, é que chorei. Depois, já no hospital, a caminho de te visitarmos outra vez, é que tive uma espécie de sensação física, não sei explicar como, que me deu a certeza de que não morrias, de que as coisas iriam. E nunca mais duvidei.

Dançando em anatomias

A caminhada tem sido longa: São Francisco Xavier (1 mês e meio em coma), Amadora-Sintra e só em Alcoitão (desconhecia e é um mundo) acordei para a vida, que me lembre; crê-se que pensaram em desligar as máquinas, lá se ia este texto e o seu escritor, fui recorde do tempo passado internado no Alcoitão (foi um bom tempo, o lá passado, tornou-se casa, ganhei à vontade, intimidade e amigos): segundo o Dr. Luís Gonçalves, meu médico (há quem lhe chame GOD), havia sempre melhorias a cada consulta, era complicado darem-me alta.

Tenho uma memória péssima (piorou em parte: a idade) mas algumas luzes gerais de como falar sobre a minha vida passada; vivida mas não acordado, em coma, semi coma ou outras  defesas do corpo para o embate que tinha tido. 

Sem saber muito bem nem porquê, nem como, mas muito bem pelo que retirei desse pedido, pedi a amigos uma mesma história sobre como tinha sido receber a noticia do meu acidente e quem tinham conhecido como se procurasse o que não fora vivido por mim.

Enchi a porta do meu armário em Alcoitão de fotos pedidas a amigas/os (fizeram-me companhia, tinha um rádio com CD’s e a manhã era sempre animada escolha) pedi livros e filmes importantes para eles, parecia um Natal sem compras.

Fiz um refresh do meu mundo.

Um mundo novo apareceu, o mundo pouco eficiente, limitado/em défice, e agora é preciso adaptares-te  a ele, um mundo não preparado para pessoas diferentes, pouco normais, há uma forma comum de nascer/crescer e um acidente de carro agregado a um TCE não é, felizmente, o tipo de população mais comum.

O mundo é que cria limites pela falta de acessibilidades e mobilidade ou falta dela, passa a ser necessário estar atento ao espaço amplo, aberto e/ou fechado, com adversidades, inclinações, uso de degraus, rampas e/ou elevadores.

O mundo (d)eficiente tornou-se mais visível, agora estou atento para ele, nós: casa arrombada, trancas à porta. Passei a ter mais atenção a um mundo menos eficiente e é forte, transforma-se para viver com diferentes limites; ganha força nos apoios eficientes e em si próprio.

Coisas como caminhar na praia, dentro de água, na areia seca, solta e/ou molhada, firme passaram a ser relevantes. A vida mudou e agora? Não parou, ganhou novo ritmo, mais terapêutico.

Passei por uma fase em que não percebia bem o que estava a acontecer, como a acordar e a adaptar-me a esta nova pessoa, exemplos: comer por uma sonda, tomar banho numa maca banheira.

Não andava, não tinha equilíbrio, só com apoios (tripé, corrimão). Andar passou a ser difícil, estranho, o corpo passou a precisar de ter outro tempo, mais lento e a desconstruir-se em pé, joelho, ancas, rabo e pernas; tronco, costas, a cabeça entorta, o braço, dedos, mão, punho, cotovelo, ombro, o lado esquerdo ficou todo apanhado. 

Começaram a contar muitas histórias: muitos disparates que os meus pais nem sabiam; sempre tive habilidade para a falta de juízo; há sempre uma resposta típica minha para quando se despedem e aconselham juízo que é não tenho jeito. 

Uma amiga: Eu estive lá todas as tardes mas nunca consegui entrar para te ver. Achei sempre que os teus Amigos mais novos tinham uma relação mais próxima e eram mais importantes. Em relação ao que se passava cá fora nem sei como explicar. A Teresa e o Fernando transbordavam amor e alegria. Eram eles o motor de todo aquele ambiente cheio de esperança. O teu tio um dia disse-me que não conseguia explicar porquê, mas ao chegar ao hospital em vez de ficar deprimido, sentia uma grande energia positiva.

Foi assim que vivi esses tempos.

Man’André:

Maninho! Parabéns (nasci a 25 de Dezembro) por este dia e pela tua ressurreição. Sempre foste um menino Jesus não megalómano, só um pouco cabeça dura. Gosto muito de te ter por perto (bem… às vezes). Tu foste, és, daquelas pessoas que me ajudaram, ajudam, a sair do meu torpor. 

Um amigalhaço A:

14 anos é obra! Uma nova vida ! não te podes lembrar do acidente tal como ninguém se lembra do nascimento! Ir ao outro lado, voltar para renascer e ensinar-nos todos os dias que a vida é uma dádiva, um bem, um fogo que arde e não queima, que aquece o coração e que ilumina sempre uma saída. Permanentemente dizes isso, e eu, tolo, esqueço-me disso todos os dias.

Obrigado pela tua amizade e abraços fraternos!

Estudos e/ou profissão? 

Tenho uma licenciatura em Política Social (nome pseudo para Serviço Social) tirada entre 1999 e 2004 no Iscsp (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas), estágio de final de curso na Junta de Freguesia de Carnide em 2005, fiz um programa Leonardo da Vinci no princípio de 2006 em Berlim, estava como voluntário de uma ONG (www.helpo.pt) de Cascais e ia como voluntário para Moçambique.

Não me lembro bem porque escolhi esta licenciatura numa faculdade conservadora e de direita mas faz pleno sentido em mim esta escolha de estudo.

Os amigos casaram, tiveram filhos, divorciaram-se, emigraram, cresceram. As pessoas que estão mais vezes comigo percebem-me melhor, os outros precisam de entrar no tom. Não tenho nada assim de tão importante para dizer ao mundo. Sinto falta de autonomia, de andar sozinho, por exemplo, não porque não ma concedam mas porque o corpo não me permite estar só e solto. 

 

Felizmente, que tenho encontrado aliados/companheiros de jornada muito fortes. Ia fazer o erro de tentar descrever mas são muitos.

Tenho feito grandes Amigos nos muitos profissionais de saúde que tenho tido:

Na realidade, sinto ter ganho mais com o acidente do que perdido.
Sobre o que me lembro de 2006? Antes do acidente?

Andava mais aqui e ali, mais incerto. Era mais autónomo, tenho ideia de que era menos equilibrado, hoje tenho vários esteios, tinha rodas nos pés, faltava-me tranquilidade, tinha vindo de Berlim e ia para Moçambique. 

Tinha menos consciência do que importava ou era, apenas, fogo fátuo! Tinha 25 anos, hoje 40 anos. Hoje tenho mais noção dos meus limites e sonho.

Não faz sentido pensar no que não foi, não existe, tal como não faz sentido pensar na maioria das pessoas que não têm o acidente e seguem para casa deitar-se e dormir sonhamos e até amanhã. 

A minha foi assim, felizmente, poderia não ter existido… podia ter sido pior e melhor, diferente. Estavas cansado porquê? 

A música, às vezes, pede demasiado movimento do corpo e não soube acompanhar o pedido, estranho não me arrepender: é vida, foi como foi!

Se não me arrependo do acidente e, até me orgulho da forma como o entendo, foi porque como todas as estradas/vidas tem curvas, subidas, momentos/terrenos mais difíceis e mais fáceis.

Final (quase): 18.11.2020.

Festejo esta data porquê?

Dia 18.11 é hoje e faz 14 anos que me despistei da estrada em 2006 e um plátano me ressuscitou.

O que podes levar a bem no que te aconteceu aquando do acidente ter resultado nesse famoso TCE (Traumatismo Crânio Encefálico)?

Em não andares e não falares?

Podia ser bem pior e é uma sorte estar vivo e a escrever-vos isto…

A teimosia, a cabeça ter ficado boa e não com pouca alma.

Ter encontrado muitos portos seguros à minha volta e muita mundo por descobrir.

O Amor é um mar enorme: partilha-se, ganha-se, troca-se, dá-se mas não se perde. É dos maiores ganhos que a vida tem para nos dar e pedir.

O sótão ainda não é mas quer ser, e quer ser sempre mais e melhor. A subir a subir. Oiçam os passos. Degrau, degrau, degrau. Subindo até ao cimo de tudo se chega ao sótão. Oiçam os passos. Chega-se querendo! 

(Manifesto SÓTÃO, escrito antes do TCE).

 

Dedicado ao meu pai e sua memória optimista, ao Fernando Belo.

por José Maria Belo
Corpo | 21 Fevereiro 2021 | acidente, aprender, corpo, mudança, vida