Políticas antigênero em contexto pandêmico na América Latina: um voo de pássaro

Os estudos compilados nessa coletânea oferecem uma atualização do cenário das políticas antigênero na América Latina, desde 2019, quando foram finalizados os estudos do ciclo anterior.[1] Essa nova rodada contempla sete países (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador e Uruguai) e o ambiente da OEA. Essa atualização examina a interseção entre as ofensivas antigênero e antiaborto e as condições decorrentes da pandemia de COVID-19.

Esse exercício, assim com no caso dos estudos anteriores, exigiu a análise de outras dimensões do contexto regional. Em especial, teve que levar em conta que as dinâmicas políticas, em sentido amplo que, ao longo dos últimos três anos, nos países analisados, foram marcadas por processos eleitorais intensamente disputados, giros mais radicais à direita e insurgências sociais, assim como o aprofundamento de padrões de desigualdade já registrados nos estudos anteriores. Ou seja, resgatando um dos argumentos do panorâmico elaborado por Fernando Serrano a partir dos resumos dos estudos publicados de 2020, mais uma vez verifica-se que políticas antigênero são sempre a Política por outros meios.[2] 

Nesse segundo ciclo contabilizamos, ainda que de maneira breve, os efeitos devastadores da pandemia sobre as condições econômicas e sociais dos países analisados. Embora esses impactos tenham ocorrido em todo o mundo, no caso da América Latina é preciso considerar a persistente penetração das políticas econômicas neoliberais desde os anos 1970. Dela resultaram desigualdades persistentes e a erosão das políticas de proteção social, inclusive das políticas públicas de saúde. Esses efeitos ficaram muito flagrantes na pandemia.

Nesse prólogo recuperamos os traços comuns e diferenciais mais significativos que emergem dos estudos, organizando em três blocos as várias dimensões examinadas. No primeiro, fazemos um voo de pássaro sobre os contextos da pandemia e as respostas governamentais. Um segundo bloco trata dos cenários políticos nos quais a pandemia se desenrolou. No terceiro bloco tratamos mais diretamente da movimentação das forças antigênero e antiaborto no contexto da crise pandêmica.

O panorama da pandemia

Como se sabe, a América Latina foi um dos epicentros da COVID-19. Nos sete países analisados a evolução da crise apresentou comportamentos semelhantes, com duas grandes ondas em períodos diferentes, mas aproximados (março-julho 2020 e janeiro-junho 2021). Uma convergência significativa é que, em todos os países houve fortes adesão a vacinação, mesmo em contextos onde se registraram mobilizações robustas contra as vacinas. Da mesma forma, em países nos quais atores sociais e alguns governos propagam discursos de elogio e defesa da “família” registrou-se um franco agravamento da violência doméstica e sexual. Não menos importante, em quase todos os países os impactos econômicos da COVID -19 foram agravados por medidas de austeridade e ajuste fiscal adotadas antes ou em plena pandemia.

Zanele MuholiZanele Muholi

Respostas dos Estados

As respostas dos estados à pandemia podem ser agrupadas em três grupos dos quais o Brasil escapa. No primeiro estão Argentina e Costa Rica onde a qualidade da resposta estatal começou bem, mas declinou com o tempo. Em ambos os casos, as políticas frente ao COVID foram bem desenhadas e eficientes mas não puderam ser sustentadas à medida que a epidemia persistia. No caso da Costa Rica, a dificuldade para adotar políticas de mitigação econômica de longo prazo para a crise econômica foi o fator determinante da perda de capacidade na resposta. Já na Argentina essa perda de qualidade decorreu de uma combinação de fatores econômicos e políticos.

No Equador e Colômbia, as respostas à crise sanitária quanto a seus efeitos econômicos foram, em geral,  deficitárias. No primeiro caso, a ineficácia da resposta sanitária foi, num primeiro momento, muito aguda, registrando-se em Guayaquil a primeira grande mortandade da COVID-19 na região, com cenas de cadáveres insepultos pelas ruas. No caso colombiano, a profunda crise econômica resultante da pandemia não foi mitigada o que, em grande medida, levou a eclosão do estallido social de abril de 2021. Sobretudo, nos dois casos, registrou-se militarização ou coerção estatal para garantir medidas de contenção da  circulação de pessoas, o que no caso da Colômbia foi um outro fator deflagrador da onda de protestos. 

Há também convergências entre as respostas estatais adotadas no Chile e Uruguai, países governados por partidos conservadores tradicionais. Por um lado, esses governos adotaram respostas sanitárias racionais e bem desenhadas. Isso se deu mesmo no Uruguai onde o Cabildo Abierto, partido de extrema de direita, potencialmente avesso a medidas restritivas para contenção a COVID-19, é parte da coalizão de governo. Nesse caso a estrutura robusta do sistema de saúde pública, herdada dos governos do Frente Amplio, foi um elemento crucial dessa resposta bem sucedida. Já no Chile, a resposta foi, em certos aspectos, comprometida, pela privatização do sistema de saúde. Nos dois casos, fieis à lógica neoliberal, os governos fizeram todo o possível para evitar o fechamento da economia, mesmo quando isso não tenha dirimido os impactos sócias da crise.    

O Brasil, governando pela extrema direita, é um caso a parte. Em plena pandemia, assistiu-se ao franco desmonte da capacidade de gestão do Ministério da Saúde, o que culminou com as cenas terríveis de falta de oxigênio na cidade de Manaus no final de 2020, seguindo-se no final de 2021 um apagão dos dados  oficiais sobre COVID. A robustez do Sistema Único de Saúde e sua estrutura descentralizada é o que explica por que a catástrofe brasileira não foi muito maior e profunda. Por outro lado, por iniciativa do Congresso Federal, e a revelia da ortodoxia ultra neoliberal do governo, país adotou um programa muito robusto de mitigação da crise econômica que, entretanto, não pode conter crescimento da pobreza e da fome no país. 

Contextos políticos

Em três dos países estudados, a pandemia irrompeu em seguida a transições eleitorais substantivas, ou seja, que significaram mudanças radicais de direção político-ideológica. O Brasil e o Uruguai são os países da mostra em que governos de direita, no caso do Brasil extrema direita,  foram eleitos um pouco antes da erupção da COVID-19. Nos dois processos eleitorais, como mostram os estudos publicados em 2020, as ofensivas antigênero tiveram um papel muito significativo, para não dizer crucial, especialmente no caso brasileiro.

No Uruguai, após quinze anos de Frente Amplio, em 2019, um novo governo foi eleito formado por uma coalizão entre o Partido Nacional, que representa o conservadorismo tradicional, e um recém criado partido de extrema direita, o Cabildo Abierto. O governo tomou posse exatamente quando os primeiros casos de COVID-19 foram identificados no país. No Brasil, onde resultados eleitorais de 2018 significaram, de fato, um giro radical à direita, a COVID-19 irrompeu quando o governo Bolsonaro mal completava seu primeiro e tumultuado ano, fazendo da pandemia o palco principal (e catastrófico) dessa guinada política. Quando os primeiros casos foram identificados, Bolsonaro estava engajado, com muita intensidade, na lógica peculiar de promoção do caos que é seu método de governar. O governo federal respondeu à crise com negacionismo grotesco, defesa intransigente da abertura da economia e negligência deliberada. Subsequentemente, a crise pandêmica e a crise política se imbricaram de maneira definitiva. Nessa rota desastrosa, desde o começo de 2021, assiste-se uma dinâmica complexa em que o deteriorado sistema político brasileiro passou a sustentar o governo em troca de favores.

Na Argentina, também ocorreu uma transição em 2019, porém de sentido oposto, com o retorno da esquerda ao poder. Quando a pandemia se instalou no início de 2020, o governo de Alberto Fernández apenas começava e teve um bom momento ao longo de todo ano, inclusive por efeito de respostas adequadas à crise. No final de 2020, depois da tentativa frustrada de 2018, a reforma da lei do aborto foi finalmente aprovada, resultado que contou com forte empenho do executivo. Mas os efeitos econômicos da crise COVID e outros fatores alteraram essa rota virtuosa. Quando o novo estudo estava se completando, em novembro de 2021, o governo foi derrotado nas eleições legislativas de meio período pelas forças de centro-direita e a extrema direita ganhou ímpeto. Muito claramente, as mobilizações de reação ao direito ao aborto e de corte negacionista em relação à COVID, que ocorreram desde 2020, contribuíram para esse resultado.

Recuperando os estudos de 2020, na Colômbia e na Costa Rica, o referendum do Acordo de Paz de 2016 e as eleições de 2018 haviam sido momentos em que as ofensivas antigênero tiveram muito significado e impacto. No primeiro caso, esses ataque contribuíram para a derrota do referendo e, em seguida, para a vitória da chamada direita Uribista nas eleições presidenciais de 2018. Já na Costa Rica, a direita religiosa neoconservadora seria derrotada pelo PAC, partido de centro que já estava no poder mas não perdeu sua vitalidade.

Na Colômbia, no final de 2019, aconteceram protestos massivos, ainda que de menores proporções do que no Chile e Equador, contra uma reforma educativa. A resposta estatal foi muito violenta e seguiu-se recrudescimento de violência estatal e paramilitar contra populações urbanas e líderes de movimentos sociais. Instalada a pandemia, o governo respondeu mal à crise, especialmente no que diz respeito a seus efeitos econômicos. No começo de 2021, foi convocada uma greve geral que teve ampla adesão popular. A resposta do Estado foi ainda mais violenta o que levou a ampliação da insurgência e o país ficou paralisado entre abril e junho. Durante a crise foram registradas brutais violações de direitos humanos.

Na Costa Rica, embora as forças religiosas neoconservadoras tenham perdido espaço desde o pleito de 2018, o PAC ganhou a presidência, mas perdeu assentos na Assembleia Nacional. Em 2019, o governo investiu numa reforma fiscal e a resposta foi a greve mais longa do país em décadas recentes. Em seguida, as condições econômicas adversas resultantes da pandemia criaram um ambiente favorável a agitações negacionistas e favoreceram o crescimento do conservadorismo convencional mas também da chamada “nova direita” que, de fato, ganharia as eleições presidenciais de abril de 2022.[3]

No Equador e no Chile, a pandemia foi imediatamente precedida por processos massivos de insurgência, os chamados estallidos sociales motivados pelo repúdio a padrões persistentes de desigualdade, pobreza e de desproteção social. Além disso, ambos países viveram eleições presidenciais complexas e intensas em pleno contexto pandêmico. No Chile, a insurgência de 2019 foi vigorosa e nela a reforma da Constituição herdada da ditadura Pinochet foi a principal demanda. A resposta do governo Piñera foi brutal, o país ficou praticamente paralisado por dois meses e o sistema político não conseguiu equacionar a crise. Em ambos os países, a credibilidade dos governos era quase nenhuma quando a crise sanitária se instalou em março de 2020.

No Equador, as eleições presidenciais marcadas por episódios de violência, muita desinformação e suspeitas de fraudes, aconteceram no segundo pico da pandemia, no começo de 2021. No pleito, dois candidatos de esquerda, o líder indígena Yaku Perez e o candidato do ex-presidente Rafael Correa disputaram entre si acirradamente para chegar ao segundo turno, situação inédita na América Latina. O candidato de Correa ganhou a contenda, mas foi derrotado por Guillermo Lasso, um banqueiro da velha direita, resultado que também, encerrou um longo ciclo de governos de esquerda. Desde as eleições, contudo, persiste a instabilidade política no país.

No Chile, a crise pandêmica coincidiu com a intensa dinâmica política pós estallido de 2019, abrindo caminho para um  plebiscito sobre a reforma constitucional que aconteceu em maio de 2021. Em julho, instalou-se uma convenção constitucional paritária no que diz respeito a gênero e com ampla participação dos povos indígenas. Desse modo, o partidarismo convencional perdeu espaço e o conservadorismo foi derrotado. Contudo, nas eleições presidenciais de novembro, José Antonio Kast, candidato de extrema direita, que tem fortes vinculações com as forcas antigênero e antiaborto (conhecido como Bolsonaro chileno), foi o mais votado no primeiro turno, seguido por Gabriel Boric, o candidato da nova esquerda chilena. Seguiu-se uma intensa e preocupante mobilização para o segundo turno em que Boric seria vitorioso. As eleições chilenas configuram um primeiro sinal forte de retorno a regimes governados por forças progressistas, num contexto em que os giros à direita têm prevalecido, desde o começo dos anos 2010.

Finalmente, quando o olhar se volta para o ambiente da OEA, onde as ofensivas antigênero vinham em expansão desde 2013, é flagrante o impacto das dinâmicas políticas regionais bem como do conflagrado cenário norte-americano. Isso se refletiu no posicionamento do Secretário Geral, cada vez mais alinhado com a forcas conservadoras e de direita no plano continental. Mas também se manifestou em posicionamentos críticos em relação ao Sistema Interamericano de parte dos países onde a direita havia chegado ao poder, assim como na indicação, para representação nacional nessa esfera, de figuras conhecidas do campo antigênero. Um exemplo icônico é Alejandro Ordoñes, atual embaixador colombiano junto ao OEA, autor conhecido de livros antigênero e antiaborto.

As dinâmicas políticas do sistema não foram tão negativamente afetadas pela pandemia como os contextos nacionais. Na verdade, com a imposição do trabalho remoto pela COVID-19, a realização de reuniões virtuais favoreceu, em alguns aspectos, a participação da sociedade civil. Mais significativo, contudo, é constatar que o conservadorismo crescente e os giros à direita que se registram na política regional não impactaram tão substantivamente as eleições ocorridas em 2021 para eleger três novas/os comissionadas/os da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e quatro novas/os juízas/es para a Corte Interamericana. Esse é um indício positivo de que a autonomia e a impermeabilidade do sistema regional de direitos humanos está razoavelmente preservada.

As forças antigênero e antiaborto em movimento

As políticas antigênero não perderam seu vigor no contexto pandêmico. Embora suas dinâmicas sejam contextualmente singulares, na maioria dos casos estiveram atravessadas por conexões transnacionais com os EUA e Europa. Como já informavam nossos estudos anteriores,  são inúmeros e densos os vínculos que, desde sempre, articulam as forças antigênero e antiaborto, sejam religiosas ou seculares, que atuam nas Américas, por um lado, e na Europa,  por outro.  Alguns desses vínculos são muito antigos, como é caso dos que passam por canais da igreja católica e do ultracatolicismo,  como por exemplo da Opus Dei ou pela via de conexões evangélicas (especialmente entre América Latina e Estados Unidos). Mas há liames mais recentes, forjados no calor da intensificação das políticas antigênero registrada na última década, em particular pelos canais das correntes libertárias e neoliberais.

Em todos os casos, essas conexões ficaram muito mais visíveis desde 2019.  Isso se vê, especialmente no Brasil que, desde a eleição de Bolsonaro,  se tornou um nodo articulador dessas muitas correntes, seja no que diz respeito a conexões com personagens e grupos de direita norte-americana, seja no que se refere aos atores estatais europeus. O exemplo mais cabal disso foi a viagem de Bolsonaro à Rússia e à Hungria no começo de 2022. [4]  Mas, também é preciso dizer que, ao longo de 2021, se registrou uma constante presença de lideranças do VOX espanhol buscando a adesão de forças regionais à Carta de Madrid.[5] E, também estiveram na região personagens importantes da extrema direita alemã, cujas conexões são mais evidentes no Brasil e no Chile.  Nesse sentido, não é surpreendente mas tampouco trivial que José Antonio Kast, derrotado nas eleições chilenas, tenha assumido, em março de 2022, o posto de coordenador geral na rede global Political Network for Values (PNV) [6] que, até então, havia sido ocupado por Katlin Novak, ex-Ministra da  Família do governo Orbán e atual presidente da Hungria.     

Não menos importante, desde 2020, quando foi lançada a Campanha Internacional pelos Direitos das Mulheres com Base no Sexo, assim como também aconteceu na Espanha e Reino Unidos, também ganharam visibilidade e impacto regional as vertentes feministas antigênero. Embora essas vertentes atuasse na região desse algum sua erupção política recente e de maior escala é um fato novo. Muito embora se definam, como estando situadas no campo progressista, essas vozes habitam a mesma ecologia do ativismo antigênero conservador e suas pautas têm sido claramente ampliadas pelo giro a direita em curso em vários países. Enquanto o campo conservador antigênero tem alvos múltiplos, as correntes feministas focam nos direitos das pessoas trans, especialmente, na identidade de gênero na infância. Nesse sentido devem ser nomeadas como correntes antitransgeneridade ou transexcludentes. Na região, elas são muito atuantes no México, que não foi estudado nessa rodada. Nos estudos ora publicados sua presença foi registrada na Colômbia, no Chile e, sobretudo, no Brasil.

Tendo como pano de fundo os estudos anteriores, outra novidade significativa do período 2019-2021 é que a chegada ao poder dessa forças no Brasil e no Uruguai. Desde muito, essas pautas ideológicas estão presentes nos aparatos de estado regionais. Seja no registro da velha tradição de penetração católica nos espaços das políticas públicas, seja por efeito da politização evangélica das últimas décadas, que impactou significativamente os espaços legislativos. Entretanto, as novas reconfigurações político eleitorais que tomaram corpo em anos recentes ativam sistematicamente essas pautas, para incitar o conservadorismo latente das sociedades, chegar ao poder e converter essas pautas em políticas públicas. 

São, contudo, distintos os resultados desses processos no Brasil e no Uruguai. No primeiro caso, a eleição de Bolsonaro implicou, de maneira flagrante e imediata, a conversão das pautas antigênero e antiaborto em políticas governamentais. Essa tradução é examinada em sua amplitude e profundidade no estudo de caso brasileiro, que enfatiza como hoje o Brasil integra o pequeno grupo de países onde a ideologia antigênero é, de fato,  política estatal consolidada,  como acontece na Hungria,  Polônia e Rússia. Já no caso do Uruguai, o Cabildo Aberto, que durante a campanha de 2019 também fez da ideologia antiaborto e antigênero uma bandeira, integra uma coalizão hegemonizada pela direita tradicional que, embora comparta parte desses valores, não fez deles (ainda) uma agenda prioritária. Entretanto, os discursos antigênero da campanha continuam circulando na esfera política, em especial em articulação com “marxismo” como estratégia de ataque às forças de oposição.

Mas o traço comum mais forte dessa nova fase das políticas antigênero é que, em todos os contextos estudados, as forças que as mobilizam usaram a pandemia como plataforma e oportunidade, para ampliar seu arco de ação. Por um lado, não arrefeceram suas mobilizações sociais em relação aos temas específicos de sua agenda política: gênero, aborto, direitos LGBTT e também a pauta antimarxista. Por outro, em quase toda parte, com maior ou menos intensidade, essas forças se metamorfosearam em movimentos reativos a  medidas  de contenção da pandemia, fontes de negacionismo e propagação de discursos contra a ciência, a favor de tratamentos ineficazes contra a COVID-19 – situação especialmente marcada no contesto brasileiro-  e promotoras de campanhas antivacina. Uma característica nova dessas mobilizações é a ativação do sintagma “liberdade”,  que não estava tão presente nas etapas examinadas pelos estudos anteriores. Esse recurso retórico à “liberdade” diz muito sobre a amarração entre as pautas antigênero e a racionalidade ideológica neoliberal. Mas seu uso, também, sinaliza para o caráter seletivo e ultra individualista dos clamores  obsessivo das chamadas novas direitas por “autonomia”.

Outra outra tendência presente em todos os países estudados foram os ataques contra os serviços de saúde reprodutiva e, sobretudo, o direito ao aborto.  Se no Brasil, isso se deu por medidas estatais grotescas, em  outros países,  prevaleceram campanhas públicas. Na Colômbia esses ataques se fizeram em resposta a demanda feita a Corte Constitucional pelo Movimento Causa Justa para que o crime de aborto fosse excluído do código penal. Houve vigílias nas portas das clínicas e da Corte Constitucional e incrementou-se o recrutamento de jovens para ciclos de formação online de agentes “pró vida”.[7] Já na Costa Rica, depois da forte ofensiva antigênero de 2018, o casamento igualitário foi reconhecido pela Corte Constitucional (2020) e as baterias conservadoras se voltaram contra o aborto terapêutico. No Uruguai, registram-se estratégias legislativas e institucionais insidiosas para restringir o acesso ao aborto e, no Equador, onde os anos 2019-2021 foram marcados por uma luta renhida pelo direito ao aborto no caso de estupro, essa demanda foi finalmente reconhecida por decisão da Corte Constitucional em abril de 2021. [8] Sobretudo, no âmbito de ataque e barreira ao direito ao aborto, amplificou-se por toda parte  a promoção sistemática da objeção de consciência. O caso mais chamativo é o da Argentina, onde isso ocorreu com muita intensidade após a legalização do aborto ao final de 2020. Mas as barreiras causadas pela objeção e consciência são também um grave problema no Chile onde a legislação foi reformada em 2017.   Além disso, como se observou no debate de lançamento dos estudos, há sinais que a política de objeção de consciência tende a se estender a outro campos: professoras/es se recusando a “ensinar gênero” e serviços de saúde recusando atenção médica a  pessoas trans.

Mais especificamente no âmbito das ofensivas dirigidas à “ideologia de gênero”, o terreno mais dramaticamente afetado  foi e continua sendo o campo da educação, onde s, essas cruzadas estão instaladas desde 2012 e 2013. Essas ofensivas transcorrem, sobretudo,  na educação básica e, nos estudos dessa rodada, são significativamente, mais visíveis no Uruguai e no Brasil. Elas impliucam esforções políticos legitimar a tutela plena de pais e mães sobre a educação dos filhos  e difundir o fantasma da “escola como lugar perigoso”. A pauta  da primazia dos direitos dos pais sobre a educação dos filhos também chegou aos debates da OEA em associação com a agenda da liberdade religiosa.

No caso do Uruguai,  apresentou-se uma proposta de lei para modificar as práticas pedagógicas, vigentes permitindo que mães e pais passem a selecionar não apenas o currículo e a bibliografia, mas também professores e professoras a cargo dessa disciplina, além de ampliar a educação religiosa nas escolas da rede pública. O projeto ainda não foi votado. 

Já no Brasil, o estado do campo da educação fundamental pública e privada é uma verdadeira hecatombe. Além dos discursos sistemáticos dos vários ministros da educação contra “gênero”, novos projetos de lei contra “ideologia de gênero” vieram se adicionar as centenas de propostas nesse sentido feitas desde 2014, cujos conteúdos preconizam a criminalização da “propagação da ideologia de gênero”  ou da “promoção de pornografia nas escolas”. Embora várias das leis aprovadas ao longo dos últimos anos tenham sido julgadas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, essas propostas continuam proliferando. E, está em debate na Câmara Federal um projeto de lei de educação domiciliar.  

Sobretudo, continuam se multiplicando ataques diretos a professores da educação fundamental. Um episódio drástico  foi, por exemplo, a conversão da hotline para denúncias de direitos humanos gerida pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, num aparato de patrulhamento ideológico contra gênero, marxismo e críticas do racismo. Essa nova diretriz se apoia na “tese” segundo a qual “ideologia de gênero”  deve ser interpretada como violência institucional contra crianças e adolescentes. Em novembro 2021duas denuncias desse teor levaram a investigação policial de escolas e professoras/es. [9]  Em fevereiro de 2022, essa reconfiguração nefasta foi contestada junto ao Supremo Tribunal Federal. [10]  Também se registram desdobramentos das ofensivas antigênero em educação em propostas de novas modalidades de educação pública: a educação domiciliar, criação de Escolas Cívico Militares e, também, a eliminação de parâmetros éticos em relação a gênero, raça e outras desigualdades que guiavam, até 2021, produção nacional de material didático.[11]

Desde 2020, a partir de uma controvérsia sobre linguagem de gênero numa escola privada do Rio de Janeiro, projetos de proibição de linguagem inclusiva proliferaram rapidamente. O Chile é outro país onde também em 2021, dois deputados pastores do Partido de Renovação Nacional apresentaram um projeto de lei contra linguagem inclusiva, uma iniciativa que pode ter sido copiada do Brasil. Entretanto, a convergência mais flagrante entre esses dois  países  se verifica em termos de ataques diretos aos estudos de gênero na educação superior, ou seja, uma ofensiva contra a produção de conhecimento em gênero.  

No Brasil, esses ataques se anunciaram em 2017, quando Judith Butler,  que visitava o país,  teve sua efígie como bruxa queimada num protesto em São Paulo. Nesse mesmo ano,  registraram-se os primeiros ataques a docentes feministas. Contudo, desde 2019, vituperar contra “ideologia de gênero” se tornou prática habitual dos ministros da área e de outras autoridades. E, mais recentemente, o governo está empenhado em consolidar uma plataforma de produção de conhecimento  conservador, sobretudo sobre “família”  para, segundo as gestoras dessa política “conter os efeitos nefastos da pesquisa e teorização sobre gênero e sexualidade nas universidades públicas”. 

No Chile, em julho de 2021, um pouco antes das eleições presidenciais, dois deputados do partido de José Antonio Kast, solicitaram ao Ministério da Fazenda informações sobre “recursos destinados anualmente para financiar os cursos, centros, programas de estudo que se referem a estudos de gênero, ideologia e gênero, diversidade sexual e feminismo”. Essa pauta, por sua vez, estä associada à  nova linha de ataque deflagrada na OEA, na Assembleia de 2021, contra o conceito de “interseccionalidade”. Esse ataque não é casual pois, como se sabe,  hoje,  nos EUA e na França, esse  conceito, desfigurado por forças de direita, se converteu num novo “cavalo de Tróia”, tal como já havia acontecido antes com o fantasma da ideologia de gênero.

Se a educação é o campo onde há mais tempo se verificam ataques ao gênero, a ofensiva contra os direitos trans é, por sua vez, o terreno onde a cruzada ganhou maior escala e visibilidade desde 2017. Essa escalada está vinculada a maior mobilização dos feminismos antigênero, mas há muitas outras forças em jogo.  Uma clara ilustração disso foi, por exemplo, a proposta de referendo contra a nova lei uruguaia de identidade de gênero apresentada em 2018. E, no  Brasil, há hoje uma franca convergência entre feministas transexcludentes e  atores estatais antigênero.  Por exemplo,  a reconfiguração da hotline Disque 100 que converteu “ideologia de gênero” em “violência institucional” também se estende potencialmente às políticas saúde, afetando diretamente os serviços de atenção a identidade  de gênero na infância e adolescência.

Ademais, porém não menos importante, o estudo de caso da Colômbia examinou criticamente os efeitos transfóbicos da política de Pico&Gênero adotada em Bogotá para conter a circulação de pessoas no começo da pandemia. Essas regras não foram desenhadas por atores antigênero, sua definição estabeleceu, inclusive, parâmetros claros de respeito aos  direitos à identidade de gênero. Mas os desdobramentos deletérios que teve sobre as pessoas trans  iluminou, com muita acuidade, o potencial de violência normativa inscrito no binarismo de gênero que está entranhado nas lógicas institucionais e no senso comum.  No percurso de nossa investigações é muito evidente que as hidras antigênero,  com suas muitas cabeças, ativam essas  camadas profundamente sedimentadas de construção da diferença sexual, supostamente naturais,  para mobilizar energias políticas, ampliar seu poder e colonizar os estados.  E, isso vai continuar acontecendo.

Os estudos que agora publicamos são um novo retrato, situado no tempo, da cena antigênero e antiaborto na América Latina. Em razão da velocidade do fluxo das políticas regionais e globais, certamente,  já haveria muito o que atualizar sobre os contextos analisados e o cenário global. Começamos esse ciclo de estudos em pleno contexto pandêmico e seus resultados estão sendo disponibilizados quando a nova   “guerra de escolha”  da Rússia contra a Ucrânia está redesenhando o panorama geopolítico mundial. Estamos frente a mais uma guerra cujas origens e motivações são muito complexas e não cabem em leituras esquemáticas e simplistas. Como tem analisados inúmeros autores e autoras,  todos os grandes poderes estão, de algum modo, implicados nesse novo conflito  o que, entretanto,  não deve obliterar o significado e implicações da agressão unilateral russa.  É impossível prever a reconfiguração que a guerra vai produzir. Numa perspectiva regional,  um novo cenário geopolítico toma forma  exatamente quando  as eleições chilenas  e a vitória de Gabriel Boric significaram a primeira derrota robusta da direita na América Latina, sinalizando  para uma renovação geracional e novos modos de pensar e fazer política de esquerda.  Por outro lado, isso se dá num cenário em que, como bem analisou Pablo Stefanoni, em artigo recente, esse novo desarranjo geopolítico ilumina, com luzes fortes, o “confusionismo “  e  o encastelamento  dos modos de ler o mundo dessas mesmas esquerdas.  [12]

Em tais condições e do ponto de vista do nosso campo de pesquisa e ação,  não é nada trivial que Vladimir Putin, figural nodal desse novo desarranjo global seja, desde muito,  um vocalizador robusto da ideologia antigênero. Putin financia grupos antigênero e antiaborto na Europa e está conectado com atores europeus chaves desse campo: Victor Orbán, Marine Le Pen, Mateo Salvini. Como se sabe, foi visitado por Jair Bolsonaro, quando já ruflavam os tambores da guerra.  Reconhecer a densidade e significado da pauta antigênero de Putin e de seus mentores e aliados, como é o caso de Alexander Dugin ou do patriarca de Moscou,  é necessário e urgente.[13]  Se não por outra razão,  porque ainda hoje uma parcela importante das esquerdas regionais — virulentamente acusadas pela direita de serem mentoras e promotoras da “ideologia de gênero” —   ainda não compreenderam,  plenamente,  como gênero e sexualidade e também, em alguns contextos, políticas antirracistas, estão no cerne das pautas e estratégias anti-igualitárias e desdemocratizantes que tem redesenhado, com muita eficácia,  a política contemporânea. 


[1]  O resumo dos estudos em português pode ser acessado em https://sxpolitics.org/GPAL/uploads/resumos-pt/E-book-Resumos-PT-02082021.pdf

[2] Páginas 21-43 da publicação disponível no link da nota 1.

[3] Essa informação foi adicionada posteriormente, ao texto original. Para saber mais sobre as eleições na Costa Rica ver https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2022/04/04/candidato-rodrigo-chaves-conquista-a-presidencia-da-costa-rica.htm

[4] Ver entrevista de Sonia Corrêa em Agência Pública. Disponible en https://apublica.org/?s=Sonia+Corr%C3%AAa

[5]  Ver https://www.infobae.com/america/mexico/2021/09/03/que-es-la-carta-de-madrid-el-documento-que-firmaron-senadores-del-pan-y-desato-la-polemica-con-el-partido-vox/

[6] Para saber mais sobre a PNV

[7] Em fevereiro de 2022 a Corte Constitucional Colombiana emitiu sua decisão. O aborto permanece no Código Penal, mas foi reconhecido o direito ao aborto por demanda das mulheres até a 24a quarta semana de gestacão.  Ver https://sxpolitics.org/es/colombia-despenaliza-aborto-compilacion/5383

[8] Essa decisão da Corte levou a uma reforma legislativa muito restritiva em março de 2022 que, contudo, seria vetada pelo presidente Lasso algumas semanas depois.  Para mais informação ver artigo de Manuela Picq: https://sxpolitics.org/es/despenalizacion-con-exclusion-la-nueva-ley-de-aborto-por-violacion-en-ecuador/5345

[9] Para mais informação ver artigo der Jamil Chade  https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/02/09/governo-e-denunciado-no-stf-por-usar-disque-100-para-perseguicao-politica.htm

[10] Para saber mais sobre o Pico&Género e seus efeitos ver artigon de Sonia Corrêa em https://sxpolitics.org/ptbr/de-volta-ao-de-sempre-segregacao-por-sexo-genero-como-medida-de-contencao-da-covid-19/10296

[11] Para um balanço completo da políticas governamentais antigênero no Brasil ver https://sxpolitics.org/ptbr/ofensivas-antigenero-no-brasil-politicas-de-estado-legislacao-mobilizacao-social/12156

[12] Ver artigo em https://passapalavra.info/2022/03/142740/

[13] Segundo Dugin, o gênero é um dos últimos bastiões das identidade coletivas que o liberalismo ocidental quer destruir. Já Cirilo,  o patriarca de Moscou, declarou que a guerra da Ucrânia se justifica como reação a “geopolítica gay”, ver https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/616755-o-patriarca-abencoa-a-guerra-anti-gay

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Edição Sonia Corrêa

Tradução Nana Soares

Revisão Magaly Pazello

Projeto Gráfico Agência FW2 / http://www.fw2.digital

ISBN 978-65-87854-08-3

Publicado pelo Observatório de Sexualidade e Política (SPW), um projeto da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA).

por Sonia Corrêa e Magaly Pazello
Corpo | 7 Abril 2022 | aborto, antiaborto, antigénero, corpo, covid-19, estudo, política