Uma tentativa de escavamento da Morte
A Morte é inevitável e (in)comum. Todos os dias morre alguém no planeta, por algum motivo e por alguma situação, seja de maneira precoce ou tardia. Rápida ou lenta. Ela está e «vive» entre nós. Mas, no cotidiano e na sociedade em que vivo, não, falar e escutar a palavra Morte, muitas vezes chega a causar arrepios e ares de preocupação. Medo! Medo! É um tema tabu, ilógico e complexo. Eu, particularmente, temo mais a Morte de outras pessoas - por exemplo, entes queridos e queridas -, do que o meu próprio falecimento, embora a forma de e como morrer também seja um prato cheio de amedrontamento. Quando Ela chegar, inevitavelmente, e em algum momento, então que possa chegar do jeito mais leve possível. Existe leveza na Morte? Talvez seja este o problema. Repito: na sociedade em que vivo, onde consequentemente morrerei, a Morte é algo pesado demais. Ou, a construção do que é leve e pesado, apenas seja uma ilusão de linguagem. Uma conversa sem pés e cabeças. O fato é que vamos morrer um dia. Isto por si só deveria bastar para me deixar mais tranquilo? Mais suave? Mas não deixa. Eu temo esta chegada ou saída mortal!
No entanto, e quando a Morte chegar ou sair?! Talvez por ser e chamá-la de «Minha» eu saberia lidar melhor com Ela, pois, estaria morto. Ou será que não? A verdade é que eu não sei, ainda estou vivo. Falar e escrever sobre este assunto é equivalente a andar em círculos, sem chegar a lugar algum. Porém, (aliás, sempre tem um porém por aí!) e a Morte dos outros indivíduos, dos familiares e amigos/as?! Não, nunca! Jamais! É difícil de lidar e superar porque estarei vivo. Por outras palavras, estaria vivo para sentir o peso, o sofrimento, ver a tristeza e ficar revoltado! Aquela pessoa que você tanto amava e se preocupava, simplesmente, se foi e, enquanto isso, ainda estarias ou estás vivo, sem aquele indivíduo que te ajudava a arranjar algum tipo de significado e função para viver! E depois só resta engolir o choro ou aceitar, buscar uma espécie de conforto religioso, espiritual ou divino e deixar que a palavra tempo te «cure», mas no fundo, sabe-se que o buraco é mais em baixo nesta vida que segue. Estamos em círculos?!
Se repararmos nas entrelinhas «do viver», a Morte não tem um padrão, embora, ao longo dos tempos, Ela tenha sido usada como arma para assassinar, sobretudo, corpos pretos nos mais distintos lugares e situações! Tentar padronizá-la e dominá-la é um ato falho, mas é possível percebê-la nos discursos políticos! Somos muito novos neste lar que chamamos de Terra. Eu tento lembrar disto todos os dias. Tento mesmo! Embora eu esqueça, muitas vezes, da minha insignificância e ignorância diante desta grandeza terráquea que não consigo mensurar. Só esta minha tentativa de «escrita-escavadora sobre a Morte», provavelmente, já seja um erro de cálculo. Um tiro saído pela culatra. Mas cá estou eu, escrevendo, com teimosia, inconformismo e curiosidade poética. Em círculos.
Obviamente, as cicatrizes e lembranças de quem perdeu (ou ganhou?!) uma pessoa querida para a Morte: existem e muitas vezes incomodam, latejam. Não é preciso ser profeta, nem o mais experiente dos homens ou mulheres para saber que elas continuam doendo, mesmo quando o tempo «tece as suas teias» e contribua de maneira, assim suponho, imparcial e “neutra” para uma «suposta cura das cicatrizes». Isto porque, repito, na sociedade em que vivemos, digo esta com os parâmetros epistemológicos ocidentalizados, não somos, realmente, “treinados” para saber lidar, de forma tranquila, com a Morte. Justamente o contrário, somos ensinados a temê-la, esquecê-la e afastá-la do nosso cotidiano e da realidade, quando até poderíamos conviver com Ela de um jeito mais “amigável”, mas conscientes da sua potência e imortalidade. Seria a Morte imortal? Isto seria possível?
Na verdade, jogamo-la para o longínquo, quiçá, para o campo das ideias, ideais e para os confins do insuportável! Seguimos nas considerações da Morte como uma grande «pedra no sapato». Não somos eternos por causa Dela?! Dado o contexto social e cultural em que vivo, Ela se torna o próprio medo. Muitos de nós só nos lembramos, quando Ela «acontece» e nos “leva” para quaisquer lugares ou lugares nenhuns. Ou quando pensamos Nela, no sentido, por exemplo, de imaginar uma Vida pós-morte. É o famoso medo de não viver depois de morrer. Somos incutidos e forçados a nos agarrar à Vida como se fossemos perdê-la para a Morte, enquanto uma entidade, somente, espiritual e abstrata. Esta forma de perceber «o Morrer», cuja imposição social nos cerca e limita, não permite que muitos de nós faça “o exercício” de encarar este ato como real, palpável, comum e concreto. Por isso seria importante, também o (re)vermos de um jeito corpóreo. Porque a Morte é um corpo. Ou, pelo menos, assim poderia ser.
Talvez, quando chegar o momento de «partir» saberíamos, realmente, que Ela faz parte da Vida, ou até sejam a mesma «coisa», um só corpo. Uma «coisa-corpo» que não provoque medo, dor e insegurança, mas quem sabe, apenas tranquilidade e paz (será?). É preciso saber lidar com a Morte não como inimiga e a “mais temida”, e sim como um processo inevitável que passou, passa e passará. Esta compreensão é uma tarefa árdua. Eu não a compreendo e estou muito longe de cumprir esta tarefa. E como já estou imerso num (in)consciente coletivo, que apela para o contrário, sinto que jamais a compreenderei em Vida. Mas os homens e mulheres que virão depois de nós poderão aprender conosco. A esperança é a última a morrer, ok?! Assim espero.
Através das nossas memórias, legados e lembranças, em conjunto com as vontades de mudar «a dança da Morte», os nossos descendentes podem vir a encorpar o que, por enquanto, só é um devaneio da e na minha cabeça. Mesmo nos tempos atuais em que vivemos, sobre o cerco de um vírus invisível a olho nu, continuamos cegos diante da materialidade da Morte. Não a reconhecemos, embora a temamos. É como se Ela estivesse distante e fosse fictícia. Há uma lógica de (des)cuidado pairando no ar! De certa forma, persiste aquele pensamento de que a mesma nunca baterá na nossa porta ou sequer perto dela. Mas este «pensar», provavelmente, nos protege de uma fobia mais aterrorizante em relação ao «partir para a terra dos pés juntos». E ainda bem! Porque não precisamos de ser lembrados que isto pode acontecer a qualquer hora, o tempo todo e a todo o instante. Um pequeno esquecimento diário da Morte, também nos permite viver com mais vontade e anseio. Pelo menos assim penso. Ou estarei sendo contraditório? É provável. Estou em círculos.
Durante esses já incontáveis dias de confinamento, tive a oportunidade de ver, pela segunda vez, um desenho-animado intitulado “Viva - A vida é uma festa”. Um dos pilares presentes na retórica desta película, relaciona-se com a proximidade e o vínculo permanente entre mortos e vivos, com base em oferendas que as pessoas vivas deixam para os seus ancestrais, especificamente, no Dia dos Mortos. Ao rever este filme, fiquei com a impressão que esta poderia ser uma alternativa de ação (ou teoria?) e pensamento interessante para - nós medrosos indivíduos-, de modo a não encaramos a Morte como uma hecatombe e um poço sombrio de tristezas!
As nossas memórias mantêm «vivas» as pessoas que já morreram e que muito prezamos. Isto poderia ser uma motivação real que traz felicidade, tanto para os que permanecem vivos e vivas, como para os/as que morreram. Elas, as pessoas mortas, só morrem, se matarmos as suas memórias em Vida, que pode até ser uma singela fotografia. A relação entre a Vida e a Morte, como é demonstrado na película, torna-se muito estreita, ao ponto de serem equivalentes a uma só forma de corpo. O que as conectam é uma pequena ponte repleta de pétalas de flores, que unem os dois mundos. Talvez, a Morte não seja o «fim do mundo». Certamente, termino Isto em círculos.