O Barulhamento do Mundo
Fora de campo: arquivo de cinema de Moçambique
Instalação de Catarina Simão
CARPE DIEM ARTE E PESQUISA | INAUGURAÇÃO 26 novembro, 16h00
30 novembro 2011 – 28 janeiro 2012
4ª - Sáb., 13h – 19h
O trabalho apresentado em Fora de Campo é uma reflexão sobre a natureza da percepção e da memória codificada através das imagens, documentos e dispositivos que os acolhem e organizam. Este trabalho implica um diálogo continuado com um arquivo em particular, o Arquivo Moçambicano de Cinema, localizado em Maputo. Através de um processo de acumulação de documentos, reproduz narrativas de diferentes formas de condição pós-colonial: desde a ideologia da Guerra Fria que produziu uma colecção de filmes revolucionários, passando pelo capitalismo global que procura agora a sua preservação, até à sua proposta situada, como fragmento de uma investigação pessoal.
Esta instalação é concebida como uma montagem de elementos numa sala de trabalho onde o esforço de pesquisa reverbera para além de uma apresentação formal. A partilha do seu método com a comunidade articula-se em torno de um programa de visitas comentadas e o agenciamento de encontros de proximidade com especialistas em história e ficção, assim como com responsáveis de arquivos circundantes.
Catarina Simão (n. 1972) vive em Lisboa. É arquitecta, artista e investigadora. Em 2009 iniciou o projecto em curso, Fora de Campo – Arquivo de Cinema de Moçambique. Desde então, o projecto tem sido apresentado em instituições artísticas e seminários em Lisboa, Porto, Maputo, Viena, Londres, Paris, Barcelona, Amesterdão, e também na Bienal Manifesta 8, em Múrcia. É autora de artigos e outras contribuições associadas ao tema do seu projecto, como imagem política, arquivo, pós-colonialismo e práticas artísticas centradas na primazia do processo.
PROGRAMA
Instalação Quarta a Sábado, das 13h00 às 19h00
30 de Novembro 2011a 28 de Janeiro 2012
Visitas comentadas Quintas, Sextas e Sábados, das 16h às 18h. Marcação prévia necessária para todos os interessados. Contactar: catarina.simao@gmail.com
Programas de Rádio abertos ao público e gravado no local da instalação de 16 a 28 de
Janeiro 2012
Três sessões de rádio nas quais estão previstas projecções e comentários a filmes do Arquivo, conversas em torno de documentação do projecto Fora de Campo com protagonistas, historiadores moçambicanos, artistas e arquivistas.
Datas e horários a serem divulgados a partir de 2 de Janeiro 2012.
Em colaboração com www.radiozero.pt
Agradecimentos: David Guêniot, Samir Noorali, Ana Braga, Tiago Gandra, Ana Dinger
Produção GHOST Associação
Em colaboração com o AFRICA.CONT
arquivo pessoal de L. Lemos)
Construir território. Como parte do processo de descolonização, o Presidente Samora Machel quis separar a imagem do “branco” da do “colonizador” e rodeou-se de quadros Moçambicanos de diferentes origens. Esta politica de composição exigiu um enorme esforço ao implicar a criação de um novo plano de começo histórico para a nova República Popular de Moçambique.
O cinema, e um novo modelo de produção nacional, foram elementos operativos nesse processo, onde todos os Moçambicanos participariam no desenvolvimento do mesmo território de imagem e cidadania. O processo revelou muitas contradições, tendo em conta que o nacionalismo estava a ser construído em relação directa com o anti-colonialismo. Como em muitos outros processos revolucionários, a violência na criação da sua imagem está por vezes na frágil neutralidade do seu próprio plano de começo.
O modelo convencional de exposição de imagens, de tão naturalizado, substitui-se frequentemente ao sentido da própria imagem. No entanto, ele institui-se claramente com base na ideia de representação e categorização. Ele opera imitando um processo identitário, que classifica e hierarquiza, e como um processo de identificação, que engloba e exclui, estabelece o que é e o que não é. Isto significa que estamos rodeados de “modelos de ver” que assumem uma falsa neutralidade do seu começo como parte de uma estratégia de imagem (política).
Tudo isto por vezes dificulta o entendimento de que a simples demarcação de um espaço, a projecção de um vídeo, o agenciamento de actividades, o mapeamento ou a organização de registos – alguns dos processos utilizados pelo projecto Fora de Campo – já constituem modos de criação e invenção, onde cada nova topologia de imagem corresponde à tentativa de constituição do seu próprio território de referência. O projecto Fora de Campo apresenta-se como um espaço cumulativo de documentos, onde os elementos e fontes não foram escolhidos de acordo com uma categoria ou com a expectativa de fixar um sentido em particular. Os registos são seleccionados de acordo com o seu potencial para criar novas imagens.
Registar é comandar. Até à Independência em1975, o negro em Moçambique não era considerado um cidadão pelo regime colonial, e por isso não lhe era permitido o acesso à criação de imagens cinematográficas. Foi só no início dos anos 70 que a população negra começou a ser integrada em algumas estruturas de produção do cinema colonial, como parte de uma estratégia de escamoteamento das medidas racistas do “regime de Lisboa”. “Munto”, como eram designados, também era o termo usado para o posto de servente nessas actividades.
Na fotografia desta página, o momento de uma visita Presidencial é gravado em imagem para o jornal de actualidades Kuxa kanema, por quadros formados depois da Independência. Neste contexto, também as imagens que são registadas por estes profissionais podem ser entendidas como imagens da revolução moçambicana. A sua autoridade não está apenas na prova da presença do líder, está também no acto de registo, ao prever e fixar um acontecimento político muito para além das condições ideológicas que o suportam. Curiosamente, esta reflexão opera de forma similar no caso de uma partitura musical: a partitura foi inventada com intenção de fixar uma criação sonora e com isso permitir a sua transmissão para além da condição presencial do músico. Contudo, e automaticamente, esta mesma partitura transforma-se na instância que conduz e comanda as futuras interpretações. Da mesma forma, quando o jovem camera regista para o futuro, ele comanda e determina a memória fílmica, oficial, de um processo revolucionário. Assim, a imagem que descreve um processo revolucionário ao mesmo nível que o faz operar é capaz de prever a sua construção enquanto arquivo de poder. Como abordar a evidência operativa deste arquivo Moçambicano?
Arquivo performático. Se as imagens podem contribuir para teorizar o espaço político que habitam, por outro, também determinados contextos têm a capacidade de actualizar politicamente essas imagens.
Quem viu na altura e quem vê hoje a autoridade da fotografia tirada nos anos 80? Se quem completa e cria esta imagem é sempre quem a vê, quem cria a imagem da revolução moçambicana hoje, quem e como estas imagens inventam hoje?
Apesar da predominância de uma imagem oficial, nas imagens do arquivo Moçambicano coexistem hoje diferentes atribuições: históricas, pós-coloniais, autorais, comerciais, patrimoniais, estéticas e de reapropriação politica. O projecto Fora de Campo trabalha a possibilidade do encontro num mesmo plano, entre essas diferentes atribuições do real – e não sob um mesmo plano normalizador. Essas atribuições podem ser lidas ou identificadas de vários modos, e nomeadamente sob a forma de “comentários” à imagem; uma manipulação ou a confrontação com outras imagens, uma indexação específica, o repertório de testemunhos, uma mudança de formato, uma tradução, actos de censura, a redução da imagem a objecto, mas também o rastreio de cópias por arquivos de outros países, o confronto com um espaço simbólico ou com as idiossincrasias de um dispositivo particular, como um arquivo, um museu, uma ruína, um projecto de preservação, uma distância tecnológica ou uma herança colonial.
O sentido político destas imagens é encontrado a cada nova apresentação do projecto Fora de Campo, através do convite individual para contribuir para o que é proposto: reconhecer nos registos o seu potencial operativo, e neste, uma nova topologia de imagem. O que os filmes da imagem moçambicana são, e consequentemente, como estes devem ser organizados e mostrados não pode ser algo a ser descoberto ou fixado pela História mas algo a ser sucessivamente situado.