Revisitar “As Áfricas de Pancho Guedes”: agora com filme, fotografias e visitas guiadas de entrada livre todas as quintas-feiras
Já aqui se destacou esta exposição logo a seguir à sua abertura no antigo Mercado de Sta. Clara (Lisboa), em Dezembro passado. Mas com tantas boas razões para ser revisitada, e estando a um mês do seu fim (8 de Março de 2011), voltamos à iniciativa para divulgar algumas novidades recentes:
- a mostra inclui agora, com passagem em loop, “Looking for Pancho (À procura de Pancho): a film about the life of ideas”, realizado em 2010 por Christopher Bisset e um dos trabalhos vencedores do festival anual “C&CI Moving Space Student Architecture Short Film Competition”;
- também passou a integrar uma montagem de fotografias sobre a vida e obra do arquitecto Amâncio d’Alpoim Miranda Guedes (também pintor, escultor, professor e coleccionador Pancho Guedes);
- programaram-se visitas guiadas de entrada livre todas as 5.as feiras, às 11h30 e às 15h30 (para além das visitas com um dos comissários, já confirmadas para este sábado e domingo – dias 12 e 13 de Fevereiro – às 17h: marcações pelo n.º 91 2947430);
- e já é possível comprar o catálogo on-line, por exemplo, aqui ou aqui.
A exposição constitui uma oportunidade única de conhecer ao vivo a colecção de arte africana que o casal Dori e Amâncio Guedes reuniram ao longo das suas viagens e estadias (sobretudo em Lourenço Marques – actual Maputo –, Joanesburgo e Lisboa), fruto de cumplicidades várias e de um espírito mecenático informado, atento à simultaneidade das práticas artísticas e usos criativos nas várias Áfricas das décadas de 1950/60, i.e., no arranque das primeiras independências.
Reúnem-se, por vezes numa lógica intencionalmente disrruptiva de entrecruzamento de referências, núcleos de máscaras mais conhecidas (de decoração geometrizante, como a que influenciou decisivamente os modernos ocidentais) e de outras muito menos divulgadas, (como os exemplares raríssimos que adquiriu directamente junto dos Macua-Iómuè, feitos de entrecasca de árvore), entre outros artefactos rituais, objectos de uso quotidiano e manifestações de arte popular, para além de uma secção especialmente dedicada às chamadas “artes plásticas” (mas também ela representativa do desejo de questionar hierarquias entre disciplinas, géneros ou autorias). É nessa nave central da exposição (que se vê na foto) que encontramos o incontornável conjunto de pinturas iniciais de Malangatana – infelizmente, falecido a 5 de Janeiro deste ano –, realizadas com o patrocínio visionário de Pancho Guedes, mas também quadros feitos na pré-adolescência pelo próprio filho Pedro Guedes, desenhos, esculturas e bordados de amadores ou autores desconhecidos, para além de outras surpresas, como os originais de Bertina Lopes, que devido à promoção e arranjo gráfico de Pancho, ilustraram em 1964 a 1.ª edição da novela revolucionária “Nós Matámos o Cão Tinhoso!” do moçambicano Luís Bernardo Honwana (posteriormente apreendida pela polícia, ainda em Lourenço Marques). No lado oposto dessa parede até painéis publicitários anónimos são expostos, evidenciando os vários caminhos da colecção e da própria exposição que a apresenta (bifurcada logo de início, como o revela a foto da nave central).
Pancho Guedes, autor dos “25 estilos Guedes” e que queria ser pintor, é (afinal) também um dos mais reconhecidos patronos da arte africana contemporânea, pioneiro no apoio a uma produção que acreditava (poder) ser autónoma da lição ocidental, como desde cedo prestigiadas figuras do circuito artístico internacional o reconheceram e agora o relembra o curador da exposição Alexandre Pomar sublinhando, nos textos de apoio, a estreita relação do artista-arquitecto com Frank McEwen (organizador do 1.o Congresso Internacional da Cultura Africana em 1962) e Ulli Beier (fundador do Mbari Club e da revista “Black Orpheus”, na Nigéria), para além de constituir, juntamente com Malangatana e as datas das guerras de libertação, “a única presença relativa às ex-colónias portuguesas na cronologia da história mundial da arte esbelecida no site do MET”.
No catálogo bilingue (pt/ing), para além de dois textos imprescindíveis de Alexandre Pomar – sintetizando a abordagem proposta na exposição e contextualizando com muita informação preciosa o contributo de Pancho Guedes na projecção da arte africana contemporânea (procurando também partilhar o mais possível o conhecimento decorrente de algum acesso ao imenso arquivo pessoal do próprio Pancho) –, há para ler o texto com preocupações de sistematização antropológica do co-curador Rui M. Pereira, a generosa tese de Alda Costa (sobre o panorama Moçambicano nos anos em que o artista-arquitecto-patrono aí viveu), um (auto)retrato escrito por parte do amigo e protegido Malangatana, o testemunho da antropóloga Elizabeth (Betty) Schneider sobre “a influência da arte africana em Pancho Guedes”, uma breve síntese sobre “o arquitecto” por Ana Tostões e ainda importantes notas biográficas dedicadas às variadíssimas autorias presentes na colecção do casal Guedes.
Sintomaticamente, em mais uma opção de montagem acertada, numa das paredes da exposição lê-se: “Acho que a preocupação em sublinhar a diferença da cultura africana é uma espécie de apartheid cultural. Acho que os criadores são sempre mágicos, onde quer que se encontrem, na Europa, em África ou na América. Acho que nos devíamos interessar pela universalidade da arte, pelas forças que levam as pessoas a fazer coisas, em vez de tentar descobrir diferenças sem importância”.
Palavras do genial Pancho Guedes, proferidas em 1962, no 1.º Congresso Internacional da Cultura Africana (em Salisbúria, Harare), no seu jeito algo warburgiano, de se dedicar às ressonâncias imagéticas, simbólicas, em prol de uma vivência cultural efectivamente global.
Lúcia Marques, Próximo Futuro