Problemas do Primitivismo — a partir de Portugal
Vista da exposição Problemas do Primitivismo — a partir de Portugal (2024), CIAJG/ Centro Internacional das Artes José de Guimarães. Fotos: Vasco Célio / Stills.
Pode considerar-se que aquilo que ficou conhecido como «primitivismo» tem uma longa história, mas foi no fim do século xix e princípio do século xx que se expressou de forma inequívoca. A colonização e os fascismos, e o desenvolvimento da cultura e do consumo de massas no seio do mal-estar da Europa, impulsionaram o fascínio e a fetichização em torno de culturas que foram consideradas «remotas», «primordiais», «primitivas», «ingénuas», «arcaicas», «selvagens», «primevas», entre outras designações. A apreciação e valorização por artistas, intelectuais e marchands de objetos vindos de territórios não europeus, na maioria colonizados, mas também vindos de contextos locais, como a arte popular, a par do desenvolvimento exponencial das técnicas de reprodução de imagens fizeram irradiar a estética primitivista na cultura visual da modernidade no Ocidente.
O primitivismo foi uma via para a arte se renovar e afirmar como moderna, uma prática artística do retorno às origens e dos (re)começos. Operou uma verdadeira revolução estética na arte ocidental do século xx, e ao mesmo tempo esvaziou a temporalidade e a história dos objetos que considerou «primitivos», remetendo-os para um passado longínquo indeterminado. Em tempo de fascismos e imperialismos, tanto foi ferramenta nacionalista e de legitimação do projeto colonial, como ferramenta libertária e anticolonial, pois muitos intelectuais e artistas beberam no ideário primitivista movidos pela vontade de subversão da ordem social estabelecida. Porém, os estereótipos, preconceitos, e a visão homogénea sobre o «Outro», estiveram presentes nos vários usos, por vezes conflituosos e antagónicos, do primitivismo.
Problemas do Primitivismo — a partir de Portugal é uma exposição que, assente numa pesquisa ampla em arquivos e coleções portuguesas, interroga o «primitivismo» e as contradições desse processo histórico e cultural a partir deste país. De cunho investigativo e experimental, e sem pretensão de esgotar o assunto, a proposta curatorial convoca todo o museu para uma abordagem crítica através de uma polifonia de vozes nas fontes e nos autores e artistas convidados a participar.
Seis palavras-chave, permeáveis entre si, organizam a exposição: Civilização, Museu, Ingénuo, «Mar Português», «Jazz-Band» e Extração. Através delas, dá-se a ver não uma cronologia fixa, mas percursos e correlações diagramáticas, fluxos, tensões e sinapses entre textos e imagens, bem como a interação entre «alta» cultura e cultura de massas, entre a história, a história da arte, a política, a antropologia e a economia, e também a estrutura ideológica, social e cultural sobre a qual assentou a disseminação de uma visualidade intensa relacionada com a ideia de «primitivo».
A exposição aborda os problemas do primitivismo a partir de Portugal nas suas relações com o contexto da ditadura, da colonização, do anticolonialismo e do pós-colonialismo, numa máquina visual impregnada de imagens e referências artísticas e culturais que problematiza a invenção do «primitivo» e a sua persistência até à contemporaneidade.
Mariana Pinto dos Santos e Marta Mestre, curadoras