Fomos para África, só que agora cá dentro
Em 1998, Portugal ainda era a ex-metrópole naïve que festejava os Descobrimentos na inconsciência de que haveria uma ressaca do dia seguinte, e de que até o Padre António Vieira se tornaria tóxico. Vinte anos, algum pós-colonialismo e muito kuduro depois, África tornou-se um sujeito e um objecto recorrente nas práticas artísticas que irradiaram de Lisboa para o resto do país — ou, nalguns casos, do resto do mundo.
Num minuto, as esculturas com que Ângela Ferreira (Maputo, 1958) quis quebrar o silêncio colectivo sobre a nossa recalcada relação com África, acabada de chegar da África do Sul pós-apartheid, onde o debate pós-colonial estava anos-luz à frente, eram “coisas de pretos”; no minuto seguinte, os Buraka Som Sistema, virtuosa experiência-piloto de engenharia genética suburbana (dois angolanos e dois portugueses, um dos quais filho de pai moçambicano), eram o fenómeno mais internacional da música portuguesa, projectando a Amadora para o mundo, via kuduro, como anunciavam em 2006, no título do primeiro EP.
Foi tudo muito rápido — ou tudo muito lento, se tivermos em conta que mais de 20 anos depois da ponte aérea com que o país se despediu de África ainda investimos milhões numa exposição universal em que “celebrávamos a nossa glória marítima de maneira completamente naïve”, lembra Ângela Ferreira. Seria a última vez. De então para cá, vários desenvolvimentos, alguns dos quais traumáticos, como a crise profunda que obrigou o país a reavaliar a sua relação com as ex-colónias (sobretudo com Angola, ou mais exactamente com o dinheiro angolano), outros mais felizes, como a chegada à maioridade de uma nova geração de afrodescendentes, muito mais bem equipada do que as comunidades imigrantes que a antecederam, reconfiguraram o espaço público, tornando-o mais disponível (quando não mesmo sequioso) em relação às práticas artísticas que têm África como sujeito ou como objecto.
Alguma coisa nos aconteceu enquanto país, à medida que as ajudas europeias iam permitindo a reconversão dos bairros de lata em bairros sociais (e assim Cavaco Silva criou a kizomba, sugere Kalaf Epalanga, um dos Buraka, no seu primeiro romance, Também os Brancos Sabem Dançar), processo que Kiluanje Liberdade, Vasco Pimentel e Inês Gonçalves davam a ver em Outros Bairros (1998) e cujas profundas implicações Pedro Costa foi documentando em filmes como Ossos (1997), No Quarto da Vanda (2000), Juventude em Marcha (2006) e Cavalo Dinheiro (2014). E à medida que a escola pública, acrescenta enfaticamente ao PÚBLICO Marlon Silva (Lisboa, 1988), aliás DJ Marfox, ia acelerando o cruzamento das “várias gírias” em que se declina o português deste início de século XXI — incluindo a deste filho de imigrantes são-tomenses criado entre o Bairro da Portela e a Quinta do Mocho que a Príncipe Discos levou das discotecas africanas da periferia para o centro de Lisboa e que apenas dois anos depois a Rolling Stone estava a listar como um dos dez músicos que era obrigatório conhecer. Alguma coisa teve de nos acontecer enquanto país para que finalmente as experiências da exploração colonial, do retorno e do nosso racismo estrutural pudessem ser reescritas sem eufemismos, como as reescreveram, em livro, Isabela Figueiredo (Caderno de Memórias Coloniais, 2009), Dulce Maria Cardoso (O Retorno, 2011) ou Djaimilia Pereira de Almeida (Esse Cabelo, 2015) — ou, no palco, o Teatro do Vestido (Retornos, Exílios e Alguns que Ficaram, 2014; Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, 2014; Filhos do Retorno, 2017), André Amálio (Portugal Não É Um País Pequeno, 2015; Passa-Porte, 2016; Libertação, 2017) e, de forma mais fantasiosa, ou mais libertina, a mala voadora (Moçambique, 2016) e o Teatro Praga (Zululuzu, 2016).
Pelo caminho, aparecia a primeira companhia portuguesa fundada por actores negros (Teatro Griot), Lisboa convidava um congolês, Faustin Linyekula, para ser o seu Artista na Cidade (uma cidade em que, por fatalidade, acabaria por encontrar casa na Rua do Zaire…), uma coreógrafa cabo-verdiana, Marlene Monteiro Freitas, dava a Portugal um Leão de Prata de Veneza, textos fundamentais do anti-colonialismo (como Pele Negra, Máscaras Brancas, de Frantz Fanon) ou do pós-colonialismo (como Crítica da Razão Negra, de Achille Mbembe) chegavam finalmente às livrarias, uma associação destinada a dar a conhecer a diversidade dos afrolisboetas, a Afrolis, desdobrava-se em iniciativas. Subitamente, Ângela Ferreira já não estava sozinha: Francisco Vidal, Mónica de Miranda, José Maia, Manuel Botelho, Manuel Santos Maia, Vasco Araújo, Daniel Barroca, Filipa César, Maria Lusitano, Catarina Simão e Grada Kilomba abordavam nos seus próprios termos as feridas, os fantasmas e as sequelas do colonialismo, artistas angolanos de várias gerações (António Ole, Yonamine, Kiluanji Kia Henda, Nástio Mosquito, Délio Jasse, Edson Chagas) faziam de Portugal uma escala no seu trajecto em direcção à Europa, e um moçambicano, Mauro Pinto, ganhava o BESPhoto logo na segunda edição em que este se abriu aos restantes países lusófonos, em 2012 (seria seguido quatro anos depois por Félix Mula) – e a lista, claro, está muito longe de ser exaustiva.
A descolonização em curso
Como é que chegámos aqui? Para começar, não chegámos aqui sozinhos, sublinha António Pinto Ribeiro, programador que entre 1992 e 2004 fez da Culturgest uma instituição pioneira no mapeamento de “um continente visto até então como ‘um continente perdido’, do qual pouco haveria a esperar nomeadamente nas artes”, missão que depois prosseguiria na Gulbenkian, onde de 2007 a 2015 comissariou o programa Próximo Futuro. “Foi só na primeira década deste século que a arte contemporânea produzida em África tomou uma importância substantiva para a trilogia média-mercado-instituições, com particular destaque para as capitais europeias e o Canadá”, começa por apontar num depoimento enviado ao PÚBLICO por e-mail desde a Cidade do Cabo, onde foi visitar o recém-inaugurado Zeitz Museum of Contemporary Art (Zeitz-Mocaa) e a Investec Cape Town Art Fair, que vai na sua sexta edição. Entre os antecedentes mais longínquos desta “atenção recente”, cita as exposições African Artists in America (MoMA, Nova Iorque, 1978) e Magiciens de la Terre (Pompidou/Grande Halle de La Vilette, Paris, 1989), “que afrontou os cânones da arte europeia e incluiu de um modo perturbante obras de artistas não europeus, legitimando-os, com grande embaraço para a crítica da época”. Mas se o Ocidente fez o seu caminho (em 2005 a exposição Africa Remix: Contemporary Art of a Continent voltava a obrigar o Norte a olhar para o Sul, pondo fim a “uma história de desprezo”, como lhe chamou o Le Monde; em 2009 a Bonham’s abria o seu primeiro leilão de arte moderna e contemporânea africana, operação que a Sotheby’s reproduziria em Maio do ano passado; em 2013 aparecia a feira 1- 54, dedicada aos artistas contemporâneos do continente e da diáspora, hoje com edições anuais em Londres, Nova Iorque e Marraquexe; em 2016 Paris passava a ter uma iniciativa congénere, a AKAA — Also Known as Africa), “os africanos”, nota Pinto Ribeiro, “fizeram o mais importante: continuaram a empresa que já tinham iniciado com as independências e reforçaram os lugares de criação, expressão e difusão da sua arte fortemente comprometida com o futuro”, processo a que não foram alheios “o capital de conhecimento criado nas centenas de universidades que abriram no continente” e a preciosa ferramenta global que é o telemóvel.
Por trás, claro, esteve sempre a mão invisível do mercado, “ávido por novidades, sobretudo de países economicamente aliciantes como Angola, Brasil e China”, acrescenta Marta Lança, que enquanto editora do portal BUALA tem sido, nos últimos oito anos, uma observadora atenta do fenómeno. Pelo menos metade dos compradores nos leilões da Bonham’s são africanos, nomeadamente da África do Sul e da Nigéria, estimava em 2015 o Financial Times — assim se construíram colecções de referência como a de Sindika Dokolo, o marido de Isabel dos Santos, que em 2015 se mostrou numa exposição entusiasticamente acolhida pela Câmara Municipal do Porto, You Love Me, You Love Me Not. “Não foi a Europa que despertou, foi o mercado que impôs esta inflexão: os africanos começaram a poder comprar arte, tanto como investimento pessoal como enquanto acção de política cultural visando as diásporas ou a Europa — é a nossa sina, estamos sempre a tentar provar ao Ocidente que sabemos usar sapatos. Agora, porém, há compradores africanos que podem validar as colecções africanas, dispensando a legitimação das instâncias ocidentais”, resume, “sem lirismos”, o artista e músico Nástio Mosquito (Luanda, 1981), cujo trabalho tem circulado entre o MoMA e a Tate Modern, a Fundação Cartier e a Fundação Prada, a Bienal de São Paulo e a Bienal de Veneza.
“Apesar de toda a programação anterior da Culturgest e da Gulbenkian”, concorda Marta Lança, “o boom de Angola”, circa 2008, entretanto simbolicamente coroado com o Leão de Ouro da Bienal de Veneza de 2013, seria determinante para que o meio artístico português se abrisse com “entusiasmo” a artistas que, “nascidos no pós-independência, já se haviam desembaraçado do vínculo colonial, preferindo reivindicar outros patrimónios” ligados a experiências como “a guerra civil, o pós-guerra, a globalização, o capitalismo, as diásporas e as culturas urbanas”, abordadas com “liberdade artística total”.
Paralelamente, contextualiza Manuela Ribeiro Sanches, professora aposentada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, autora de ensaios como Deslocalizar a Europa. Antropologia, Arte, Literatura e História na Pós-colonialidade ou Portugal não é um país pequeno. Contar o ”Império” na Pós-colonialidade, e ex-coordenadora da base de dados ArtÁfrica — lançada em 2001 pela Gulbenkian para rastrear a então muito mal conhecida produção artística dos PALOP e das suas diásporas —, a relação de Portugal com África ia atravessando várias fases, do luto pela perda abrupta do império aos anos “em que quisemos esquecer África, porque subitamente éramos europeus”, da Expo’98 com que, já anacronicamente, “celebrámos a nossa velha posição no mundo” à CPLP em que “continuamos a tentar reencenar o império”. Mas sim, algures ao longo desta década alguma coisa nos fez sair do círculo vicioso do saudosismo e da negação, admite: “Basta ver como o debate sobre o racismo se instalou nos media.” E a mudança “tem necessariamente a ver com o emergir de uma geração de afrodescendentes que reivindicam a sua inscrição não enquanto africanos mas enquanto portugueses — e europeus — negros”, forçando o país a tornar-se “mais plural no verdadeiro sentido da palavra” e dispondo-o a ver em África mais do que “o continente das trevas” que “é preciso ajudar”.
É outro processo revolucionário em curso, o da descolonização, “e nunca estará acabado”, diz esta académica, citando a importância de plataformas como o entretanto extinto Africa.Cont e de estruturas como o Hangar — Centro de Investigação Artística, com as suas residências 180º Artistas ao Sul. Sendo inquestionável que se avançou imenso “na reflexão crítica sobre a história de África nos seus vários momentos (pré-colonial, colonial e póscolonial) sobre os quais há hoje uma produção teórica importante e uma produção artística inovadora e que — aspecto determinante — não se centra em África mas atinge no seu âmago a Europa, os antigos impérios e a globalização, incluindo a financeira”, frisa Pinto Ribeiro.
Africanizados
Entre 1992, o ano em que Ângela Ferreira chegou a Portugal para uma primeira estadia de sete anos, e 2004, quando regressou, o país tinha mudado irreversivelmente. “Os anos 1990 foram de amnésia, no sentido de se pretender que África não era um assunto, ou que era um assunto sem interesse. A prática artística não o considerava um tópico que permitisse avanços conceptuais ou estéticos — os artistas portugueses queriam integrar-se num xadrez internacional de que até aí tinham sido excluídos e estavam totalmente virados para a Europa e para os EUA”, descreve ao PÚBLICO. Exceptuando “a literatura, caso à parte em termos de recepção, com autores muito lidos como o Mia Couto”, não havia contexto em que pudesse integrar-se, até porque “o discurso pós-colonial, que já batia forte no mundo anglo-saxónico e certamente em África, pura e simplesmente não existia”. Durante anos, peças como Kanimambo, em que aludia à ironia de termos tido de importar “milhares de trabalhadores africanos para construir a über-obra que foi a Expo’98”, não tinham reverberação possível: “E como as pessoas não entendiam a urgência da mensagem, desvirtuavam-na, ou deslavavam-na. Era muito frustrante.”
Mas país que encontrou em 2004 já não era o mesmo. A crise doméstica, por um lado, e um contexto global multipolar contrário ao paradigma de dominação ocidental da produção artística, por outro, vieram mudar tudo de lugar: “A pressão para aceitar os artistas africanos que querem inscrever-se internacionalmente a partir de Lisboa aumenta. E os artistas portugueses também percebem que a sua credibilidade depende da adesão ao discurso póscolonial, que nalguns casos será muito superficial, aos olhos de quem sempre o levou a sério — mas é sinal de que o discurso está aí, na rua, para ser bem e mal usado. Sempre é melhor do que a twilight zone dos anos 1990.” Marta Lança acredita, de resto, que, digerido o hype, a tendência é para surgirem reflexões mais consistentes: “O interesse vai sendo alargado com as dinâmicas da globalização e de um afropolitanismo emergente. No início este fenómeno parecia ser vivido com certa dose de desonestidade, introduzido mais por agendas exteriores do que por um debate profundo, inscrevendo nos artistas e nos curadores um discurso no qual não se reviam ou que adaptavam artificialmente tentando adequar-se às expectativas e ao mercado”, analisa, notando que é agora felizmente “mais comum contestar a guetização das culturas em nichos, colocando a arte africana como algo à parte”, e que nos tornámos “mais exigentes contra a condescendência, o exotismo ou o multiculturalismo de inclusão”.
Nesse processo, foi crucial a influência das diásporas, que Pinto Ribeiro diz terem sido “protagonistas fundamentais”: “Se por um lado africanizam a Europa, por outro libertam-se da marca colonialista que as tratava negativamente como ‘africanos’ para se reclamarem europeus de pleno direito. É também por isto que o fenómeno africano não é apenas uma questão de moda.” Ainda que, contraponha Nástio Mosquito, não devamos confundir a mudança de paradigma com “uma verdadeira mudança de mentalidade”, nomeadamente na interacção do país com os territórios que colonizou: “A relação que Portugal não tem com Angola é um problema; pretender que não é uma mentira que custa muito caro. É verdade que hoje as rádios se renderam a Anselmo Ralph, Matias Damásio, C4 Pedro, mas essas formas só estão a contaminar o mainstream porque não dá para resistir mais: a kizomba vende, os concertos estão cheios de caucasianos…”, argumenta. Fora dessa arena comercial, o panorama não é tão inclusivo, pelo menos do seu ponto de vista: “Como é que em plena Década Internacional dos Afrodescendentes o Estado continua sistemicamente a não apoiar essa comunidade? São portugueses, porra!”.
Portugueses que, contrapõe DJ Marfox, bem mais optimista, têm cada vez mais à-vontade para circular entre a periferia e o centro. “Tem tudo a ver com inserção. Os muros invisíveis que havia de ambos os lados foram caindo e as pessoas passaram a olhar-se de tu para tu sem preconceitos. Foi nesse processo que nasceu a música afrodescendente, ou lusófona, ou como quisermos chamar-lhe”, afirma. Afinal, o Portugal de 2018 é o país em que o rock se cruzou com o kuduro e deu os Throes + The Shine, em que uma rapper sem qualquer ligação familiar a Cabo Verde, Juana Na Rap, decidiu rimar em crioulo, em que “figuras públicas e miúdos do bairro sem o sexto ano concluído” dançam lado a lado nas noites em que Marfox e os seus companheiros da Príncipe Discos actuam no MusicBox. ““Para muitas pessoas, terá sido a descoberta de uma nova periferia. Para mim, vindo do subúrbio, do gueto, das discotecas africanas, foi a descoberta de uma nova Lisboa. E a descoberta do que somos, porque às vezes, não sabendo falar bem nem português nem crioulo, ficamos no limbo. Somos isto. Somos filhos da lusofonia.”
Maneira de retomar, agora no plural, agora no presente, 40 anos e muito kuduro depois, a frase com que Dulce Maria Cardoso acabava O Retorno, escrita a giz, em letras garrafais, num telhado dos arredores de Lisboa: “Nós estamos aqui.”
Artigo originalmente publicado em Público a 05/03/2018.