Força e poder. Re-imaginar a revolução
Como é possível que um grupo de cinquenta pessoas pare um despejo? E isso uma, e outra vez (até seiscentas). Essa pergunta persegue-me há já algum tempo. A 25 de Setembro, na Plaza de Neptuno, constatámos por nós que a polícia é capaz de despejar um espaço com qualquer número de manifestantes. Que força é essa que permite a cinquenta pessoas impedir um despejo? O que significa ter força, se tal não coincide exactamente com ter poder (físico, quantitativo, económico, institucional, etc.)? O que se segue é uma tentativa de resposta que não pretende esgotar a pergunta. Ou seja, podem ser dadas outras respostas e há sobretudo que continuar a debater-se a resposta, que é o que me parece mais importante.
Guerra de movimento e guerra de posições
Antes, porém de regressar ao leito central do rio que é a pergunta pela força desse punhado de pessoas à frente de uma casa, abro agora um delta. Coloco-me assim no debate em torno da ideia de revolução que se travou no marxismo do período entre as duas guerras mundiais, interessando-me especialmente pela(s) perspectiva(s) do marxista italiano Antonio Gramsci. À primeira vista, será um salto muito estranho, mas trata-se de um debate com ressonâncias bem contemporâneas. O passado não passa: é um depósito riquíssimo de imagens e saberes sempre actualizável (ou re-significável) a partir dos problemas e das necessidades do presente.
Gramsci intervém no debate com uma distinção entre “guerra de movimento” e “guerra de posições”. Pensar a luta de classes como uma guerra, e usar por isso a linguagem da estratégia militar, era então algo muito comum no marxismo. Para além do mais, Gramsci escreve a partir das prisões de Mussolini e sob a necessidade de continuamente inventar metáforas para esquivar a censura. Paradoxalmente, o recurso a essa linguagem alusiva e muitas vezes críptica no lugar do vocabulário marxista clássico, multiplicou por mil a capacidade sugestiva e de inspiração futura da obra de Gramsci.
Ora bem, as características-chave da “guerra de movimento” são: a velocidade, o carácter minoritário e o ataque frontal. Gramsci confronta-se aqui com noções como a “revolução permanente” de Trotsky, a greve geral de Georges Sorel, a insurreição operária de Rosa Luxemburgo e, especialmente, com a tomada do poder leninista. Estas imagens da mudança revolucionária chocam uma e outra vez com a realidade europeia e ocidental: repressão sangrenta do levantamento espartaquista na Alemanha (1918), desarticulação da revolta popular dos conselhos operários em Itália durante o “biénio vermelho” (1919/20), etc. Para evitar os previsíveis efeitos de frustração e continuar a aspirar activamente à mudança social, há que re-imaginar a revolução.
A guerra de movimento só pode ter êxito, reflecte Gramsci a partir da prisão, onde a sociedade permanece relativamente autónoma do Estado, e a sociedade civil (como chama às instituições inter-relacionadas com o poder estatal: justiça, meios de comunicação, etc.) é primária e informe: por exemplo, na Rússia. Mas na Europa ocidental, pelo contrário, as instituições da sociedade civil são bastante sólidas, fazendo as vezes de “trincheiras e fortificações que protegem a ordem social. Parece que uma catástrofe económica abriu uma brecha decisiva na posição inimiga, mas é só um efeito superficial e por detrás há uma eficiente linha de defesa”.
Gramsci critica o “misticismo histórico” (a revolução como fulguração milagrosa) e o determinismo económico (a suposição de que o afundamento económico desencadeará o processo revolucionário), e teoriza uma outra estratégia, outra imagem da transformação social: a “guerra de posições”. A característica-chave da guerra de posições é a afirmação e o desenvolvimento de uma nova visão do mundo. Em cada gesto da vida quotidiana, diz Gramsci, há uma visão do mundo (ou filosofia) implícita. A revolução difunde uma nova visão do mundo (e, portanto, outros gestos) que a pouco e pouco esvazia o poder da antiga e finalmente toma-lhe o lugar. Este processo é o que Gramsci chama “construção de hegemonia”. Não há poder que possa durar muito tempo sem hegemonia, sem controlo sobre os gestos da vida corrente. Seria um domínio sem legitimidade, um poder reduzido à pura repressão, ao medo. A tomada do poder deve portanto ser precedida por uma “tomada” da sociedade civil.
Cristianismo e Iluminismo
Para ilustrar esta outra ideia de revolução, Gramsci recorre a dois exemplos: o cristianismo e o Iluminismo. É no mínimo curioso: usa uma reforma religiosa e uma mudança intelectual como modelos para pensar a revolução política que projecta. Em ambos os exemplos, o elemento determinante da mudança é uma nova definição da realidade.
No caso do cristianismo, a ideia de que Cristo ressuscitou e de que há vida depois da morte. O cristianismo organiza-se em torno desta “boa nova”, que trata de infiltrar por todas as fendas do velho mundo pagão. O interessante aqui é que os primeiros cristãos não procuram o poder, evitam-no até. Mas actuam de tal forma que por fim o poder vem ter com eles, coisa que aconteceu com a conversão do imperador Constantino no século IV d. C. A lição dos primeiros cristãos seria então: não lutes directamente pelo poder, expõe a nova concepção do mundo de que és portador e assim finalmente o poder cairá (nas tuas mãos).
No caso do Iluminismo, a ideia de uma igual dignidade de todas as pessoas enquanto seres dotados de razão. O Iluminismo é o movimento que dissemina esta ideia, em salões, clubs ou enciclopédias. Finalmente, diz Gramsci, quando a Revolução Francesa se dá, ela já tinha acontecido. A dominação não tem legitimidade porque a nova concepção do mundo silenciosamente substituiu a antiga, deixando fora de jogo os poderes do Antigo Regime quase sem que estes se dessem conta. A lição dos iluministas seria: a revolução ganha-se antes de se fazer a revolução, no processo de elaboração e expansão de uma nova imagem do mundo.
Estes são os exemplos mencionados por Gramsci, que morreu na prisão em 1937. Mas o século XX deixou-nos outros, seguramente muito mais próximos de nós. Pensemos, por exemplo, no movimento gay. Um movimento ao mesmo tempo visível e invisível, formal e informal, político e cultural, que transforma completamente a percepção comum sobre a diferença afectivo-sexual, e chega a alcançar mudanças a nível legislativo. Ou o movimento negro dos direitos civis. Martin Luther King explicava que a força irresistível do movimento era a superação dos sentimentos de inferioridade, profundamente interiorizados, por via do confronto de igual para igual com os opressores (por exemplo, nas campanhas de desobediência civil). Tal levantamento de dignidade traria por arrasto alterações nas leis do país.
Portanto, a guerra de posições, diferentemente da guerra de movimento, é uma infiltração, mais do que um assalto. Um deslocamento lento, mais do que uma acumulação de forças. Um movimento colectivo e anónimo, mais do que uma operação minoritária e centralizada. Uma forma de pressão indirecta, quotidiana e difusa, mais do que uma insurreição concentrada e simultânea (mas atenção: Gramsci não exclui em nenhum momento o recurso à insurreição, apenas a subordina à construção da hegemonia). E baseia-se sobretudo na elaboração e no desenvolvimento de uma nova definição da realidade, isto é (e recorrendo às palavras do filósofo Cornelius Castoriadis), do“que conta e o que não conta, o que tem sentido e o que não tem, uma definição inscrita não nos livros, mas no ser mesmo das coisas: o actuar dos seres humanos, as suas relações, a sua organização, a sua percepção do que é, a sua afirmação e procura do que vale, a materialidade dos objetos que produzem, utilizam e consomem”.
O 15 de Março [15-M] como revolução cultural
Voltemos agora à cena inicial, tendo em mente este passeio pelos escritos de Gramsci. Creio que se cinquenta pessoas são capazes de parar um despejo é porque (em alguma medida) ele já tinha sido parado. Ou seja, é porque o 15-M, entendido como um novo clima social e não como organização ou estrutura, redefiniu a realidade. O que antes não se via (o facto mesmo de que existem despejos) agora é visto. O que antes se via (normalizado) como uma “execução rotineira por não pagamento de hipoteca”, agora surge-nos como algo intolerável. O que se nos apresentava como inevitável, agora aparece como algo contingente. O clima singular do 15-M coloca em crise, nos termos da análise de Gramsci, as instituições da sociedade civil associadas ao Estado: agentes de polícia que recusam proceder a despejos, juízes que aproveitam qualquer resquício para favorecerem os despejados, jornalistas e meios de comunicação que simpatizam e amplificam as suas mensagens, etc. Definitivamente, cinquenta pessoas, em ligação directa com este clima do 15-M, tanto no quê (aquilo por que lutam) como no como (as formas de lutar), não são só cinquenta pessoas. Estão acompanhadas por milhões de outras, invisíveis. É aquilo a que o filósofo Alain Badiou chama uma “minoria maioritária”. Um agente da mudança: capaz de a contagiar porque está ele próprio contaminado.
Podemos então definir ‘força’, voltando à pergunta que nos colocávamos no início, como a capacidade de redefinir a realidade: o digno e o indigno, o possível e o impossível, o visível e o invisível. O novo clima social do 15-M não tem de certeza muito poder (físico, quantitativo, institucional ou económico), mas sim força. Não só é uma mudança social ou política, mas também – e muito especialmente – uma transformação cultural (e até estética): uma modificação na percepção (os limiares do que se vê e do que não se vê), na sensibilidade (o que consideramos compatível com a nossa existência ou intolerável) e na ideia do possível (o “sí se puede”).
A importância de tudo isto não foi muito bem entendida por quem critica a inclinação excessivamente “emocional” do 15-M, começando pelo famoso sociólogo Zygmunt Bauman. Porque é precisamente isso que vagamente denominamos afectivo ou emocional – quer dizer, a base inconsciente da nossa vida em comum – o que pode levar alguém a considerar-se vizinho e próximo de alguém que vive longe, e a colocar-se frente à sua casa para o proteger de um despejo. O sentimento de que a vida de cada qual não se esgota em cada um, mas está antes interligada a outras muitas vidas desconhecidas (“somos el 99%”).
A política não é sobretudo uma questão de denúncia e de consciencialização, porque não há gota que faça transbordar o copo e o mal pode ser tolerado indefinidamente; é antes uma espécie de mudança de pele por meio da qual nos fazemos sensíveis a isto ou alérgicos àquilo. Não passa por convencer (discurso) ou seduzir (marketing), mas antes pela abertura de espaços, todo o tipo de espaços nos quais fazemos a experiência de outra forma de vida, de outra definição da realidade, de outra visão do mundo. Na luta pela hegemonia, a pele – a tua, a minha, a de todos – é o campo de batalha.
Este texto foi publicado na revista Jeux Sans Frontières, #2 (2015), numa versão em inglês.
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