Inquietude no Luisiana
Uma viagem em múltiplas temporalidades: da Slave Rebellion Reenactment às paisagens químicas do delta desapossado
No passado dia 9 de Novembro tive a oportunidade de assistir em Nova Orleães à Slave Rebellion Reenactment, uma performance que envolve a comunidade organizada pelo artista Dread Scott e documentada pelo realizador John Akomfrah, que reimaginou a Revolta da Costa Alemã de 1811, revisitando a “história ocultada de pessoas com um plano audacioso de organizar e aproveitar o Território de Orleães, lutando não apenas pela sua própria emancipação mas para acabar com a escravatura”. Naquele que foi um gesto impressionante de interrupção do chronos linear, num Luisiana que resiste a formas de políticas de exclusão como legado da história colonial na região, Scott quis confrontar temporalidades e perturbar o horizonte do possível, perguntando: “e se esta revolta tivesse sucesso?”
Envolvendo centenas de pessoas, a reconstituição decorreu ao longo de dois dias, partindo do norte de Nova Orleães e chegando a Congo Square, local de forte carga histórica e espiritual onde o comércio da escravos decorria e onde a música ecoa há séculos. Cobrindo os 41km onde a revolta de 1811 teve lugar, a procissão de reconstituição cantou em crioulo e inglês ao som de batuques africanos enquanto marchava por entre comunidades suburbanas e fábricas espalhadas ao longo do rio Mississipi. A performance foi imaginada por comunidades auto-organizadas, seguindo a estrutura da própria revolta, em que pequenos grupos conspiravam clandestinamente. Ao sobrepor as multidões vestidas à época com as paisagens do Luisiana que se afoga em solastalgia, a procissão de Scott quis provocar uma “anomalia histórica que formou uma dissonância cognitiva para os espectadores”, jogando com múltiplas temporalidades do possível.
Os membros da procissão marcharam pelas paisagens excessivamente poluídas do corredor petroquímico do Mississipi, em tempos chamado o “país das plantações”, uma extensão de cerca de 400 plantações que operavam desde Plaquemine até ao Golfo do México, onde o cultivo de açúcar, algodão e tabaco foi suportado por gerações de trabalho forçado. A escravatura na região começou em 1719 e sequestrou as vidas de inúmeros habitantes da região de Senegambia que desembarcaram para quarentena no porto de Algiers, sendo depois vendidos nos mais de sessenta locais reconhecidos como mercados de escravos em Nova Orleães. O comércio internacional de escravos foi banido mais tarde em 1808, apesar de transportes ilegais terem continuado no Luisiana até à década de 1830.
Actualmente, o legado da escravatura está enraizado em diversas formas de políticas de exclusão que higienizaram a Nova Orleães pós-Katrina, onde muitas instituições encerraram, escolas foram totalmente privatizadas e a população negra reduzida a 59%. Os planos de gestão costeira e a forte presença da indústria na região também se materializam em formas hierárquicas de trabalho extractivista, sem contar com o bem-estar físico dos trabalhadores que estão permanentemente expostos à manipulação de materiais perigosos e os habitantes locais que enfrentam ambientes envoltos numa forte densidade química.
A maioria dos descendentes dos habitantes outrora escravos na região habita hoje em dia no corredor químico também conhecido por “Cancer Alley” (em português “Beco do Cancro”), uma extensão de 190 km que vai de Baton Rouge até Nova Orleães. “Cancer Alley”, como o nome conta, está condenado a ser um território de exclusão onde práticas de zoneamento são aplicadas pela distribuição de toxicidade pelas classes mais baixas e populações racializadas. O Luisiana, sendo um dos Deltas mais industrializados do mundo, acolhe mais de 150 fábricas de produtos químicos, com o Mississipi a filtrar todos os dias uma enorme quantidade de descargas residuais. Os locais de plantações são actualmente ocupados pelas petroquímicas e instituições carcerárias, perpetuando formas de despossessão de terra através da expropriação, confinando as populações a um ciclo de infinita subjugação. O rescaldo da escravatura está impresso nas muitas camadas de violência exercidas pelo estado e corporações, perpetuando a subalternizarão dos corpos negros, naquilo a que Christina Sharpe chamou de “clima total de anti-negritude”. Um clima absoluto em que corpos enfrentam formas de colonialismo molecular num habitat em desaparecimento.
O alcance da zona de extracção no Luisiana estende-se em múltiplas direcções. Este estado foi construído através de um longo processo de extracção, não apenas de trabalho humano mas também de recursos fósseis, contribuindo para o ciclo colonial de exaustão da terra e da violação dos direitos humanos que hoje se encontra banalizado em formas de domínio geológico biopolítico. O delta do Mississipi representa 8% do total de reservas de gás nos EUA, processando 3.3 milhões de barris de petróleo todos os dias, ao mesmo tempo que é fustigado por uma das mais agressivas formas de erosão costeira devido à subida do nível das águas. Aqui, o entrosamento do humano com o poder da água está mais patente do que nunca, tal como o aprisionamento e a gestão necropolítica dos corpos, mas também o controlo soberano sobre não-humanos e geontologias inertes.
Reconhecendo a necessidade de debater formas radicalizadas de extracção e como estas constituem práticas de zoneamento contemporâneo, é talvez útil abordar o recente livro “A Billion Black Anthropocenes or none” de Kathryn Yusoff que re-situa a discussão da disciplina em torno do antropoceno, acusando “um comum geológico universalista, que habilmente elimina histórias de racismo que foram incubadas através da estrutura reguladora das relações geológicas. A categorização racial da Negritude partilha a sua natalidade com a extracção mineral do Novo Mundo… Isto é, a racialização pertence a uma categorização material da divisão da matéria (corpórea e mineralógica) em activa e inerte” (2) Continua: “A geologia é um mecanismo de poder e política que possui uma resolução mais baixa ou uma operação subjectiva mais subterrânea do que a biopolítica mais performativa, mas continua a ser opressiva nas suas qualidades extractivas”. (81) Acrescentaria que podemos encontrar um paralelismo entre a lógica universalista da geologia, o plano de gestão (ou falta dele) de descargas tóxicas e o racional supremacista por trás das estratégias de recuperação costeira, que estão a ser elaboradas à porta fechada em maquetes que fazem lembrar um centro de comandos de guerra, lembrando-nos sem reservas que vivemos na época da militarização da água.
Depois das muitas conversas que tive durante as minhas visitas no Luisiana, pensei: e se considerássemos todo o trabalho que foi feito para o desenvolvimento daquelas terras, tanto humano como não-humano, o vivo, o inerte e o que ainda-não-vive, levar-nos-ia isto a uma nova compreensão do seu ambiente e constituição como camadas geológicas em fluxo que desaparecem? Podemos interpretar o modo como o metabolismo energético especulado em torno do Mississipi impede formas de recuperação da terra e da saúde humana enquanto privilegia formas de propriedade dissolvida?
Formas de despossessão de terra têm assombrado muitas gerações do delta, à medida que plantações e grandes empresas afastaram os seus habitantes originais, de muitas tribos que antecederam a ocupação destas terras durante milhares de anos. Nova Orleães, também conhecida como Bulbancha — a terra de muitas línguas — foi outrora casa dos Chitimacha, Atakapa, Caddo, Choctaw, Houma, Natchez e Tunica. Uma das vozes desta história de despossessão é a fotógrafa Monique Verdin, habitante da paróquia de St Bernards e descendente da nação Houma, cuja família viveu nas restingas (bayou) durante muitas gerações apesar da falta de reconhecimento federal. Dedicaram-se à pesca de camarão, actividade que lhes garantiu a sobrevivência ao preservarem a sua soberania alimentar, mas que hoje está a ser desafiada uma vez que os níveis de salinidade colocam em risco a resiliência do pântano em desaparecimento que não tem raízes suficientemente profundas para sobreviver ao aumento das tempestades. A própria Verdin tornou-se activista, documentando e narrando as terras em desaparecimento no golfo, registando as alterações nas restingas e as polémicas entre as políticas de recuperação e os habitantes. Para os Houma, o processo intricado de reconhecimento federal tribal também se revelou difícil, devido às especificidades burocráticas e às provas genéticas exigidas, mas também à difícil conciliação de membros familiares que é perturbada pelo monopólio de trabalho da indústria petroquímica, que simultaneamente contribui para o aumento da perda de terras na região e para o deslocamento de cidadãos.
“Ninguém quer ir para o pântano, certo?” diz Verdin enquanto descemos de carro junto a Shell Beach, um dos principais eixos dos 16000 km de canais construídos que actualmente circundam o Mississipi como seus afluentes. A presença industrial na região está profundamente ligada à dependência do rio enquanto fonte de manutenção hídrica para refinarias e centrais químicas, para não falar no seu papel enquanto canal de transporte para o tráfego marítimo internacional. Os terrenos indesejáveis das restingas têm por vizinho um número alarmante daquilo a que Verdin chama os “monstros do rio” — gruas, contentores, refinarias e outras infraestruturas que lançam no ar um sabor metálico. E enquanto remava pelo corredor petroquímico ao pensar nas temporalidades disjuntas da matéria, acampada ao som ininterrupto de bombeamentos das inúmeras refinarias agora naturalizadas, um poema ecoava na minha cabeça:
a fábrica insone
o baixo de uma chama oracular
bombeando à noite
desenterrando a terra
espuma no rio
que se desfaz pelos céus
o alvorecer do poder hidrológico
agora militarizado
serpente que vagueia pelos grãos de areia,
os indícios de ADN
mimetizando os movimentos cósmicos do devir
serpente vagueia, serpente recua
o mergulho cósmico
ondas incertas
fragmentos de arco-íris nas nuvens
o desemaranhamento químico separando-se à deriva
Leitura adicional:
The Rebellion ‘Un-Bibliography’ - a activista Shana griffin compilou uma extensa ‘não-bibliografia’ de textos, filmes, museus e fontes comunitárias, acessíveis a partir deste link