Mano Preto, Mano Branco: Uma estratégia pedagógica na disciplina de História
Resumo
A estratégia pedagógica implementada para a construção do livro “Mano Preto, Mano Branco” vai de encontro a um tema central na formação cívica e da história de Portugal na sua relação de séculos com as colónias de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe e Timor Leste. As fontes orais disponíveis no bairro cingiram-se a Angola e Moçambique.
Foi realizado por seis turmas do 9º ano da Escola Secundária João II de Setúbal e por três docentes de História, a partir de uma série de entrevistas com 50 pessoas que viveram nas colónias de Angola e Moçambique entre 1950 e 1974.
Os 131 estudantes aceitaram a proposta de fazermos um estudo sobre o colonialismo assumindo que este trabalho era de investigação sobre um tema tabu na sociedade: participaram na construção do guião de entrevista, realizaram as entrevistas, transcreveram-nas e codificaram-nas.
Introdução
Uma escola secundária pode produzir/criar, e não apenas reproduzir, conhecimento. As escolas reúnem inúmeras pessoas com formação superior em várias áreas de conhecimento e centenas de jovens com curiosidade e vontade de serem protagonistas de novos conhecimentos, críticos e desocultadores. Foi a partir desse entendimento geral que se desenvolveu a experiência pedagógica de que se dá conta neste artigo.
Tratou-se de um percurso de investigação, colaborativo, entre alunos de seis turmas do 9º ano e 3 professores de História, sobre o colonialismo português, analisado a partir de histórias de familiares (entrevistas com 50 pessoas) dos estudantes. Esse trabalho desembocou na publicação, em 2004, do livro MANO PRETO MANO BRANCO - Direitos Humanos em Angola e Moçambique: 1950-1974, distribuído quase exclusivamente na cidade de Setúbal.
Ainda que os manuais escolares da disciplina de História abordem o tema do colonialismo, sabemos que tendem, de diversas maneiras, a “ocultar” a violência dessa realidade e a privilegiar uma perspetiva eurocêntrica (Araújo e Maeso, 2013). A história oral, os relatos de pessoas entrevistadas que viveram na pele e/ou no quotidiano, o colonialismo, colocam em causa a tese lusotropicalista1, desenvolvida por Gilberto Freyre, profundamente enraizada na sociedade portuguesa, sobre a pretensa excecionalidade do colonialismo português (Castelo, 1998). Essa tese é particularmente relevante de analisar, com os alunos, na disciplina de História. Por um lado, ela mostra como as relações de poder atravessam a própria historiografia, sendo narradas e glorificadas as “façanhas” coloniais portuguesas e suprimidas as histórias de resistência dos povos colonizados. Por outro, a persistência desta narrativa nos dias de hoje, tal como então, tem bloqueado a possibilidade de reconhecimento da existência de racismo na sociedade portuguesa e do facto de este ser uma continuidade colonial. Na verdade, não se trata de um problema de mero desconhecimento. O problema é que a desconstrução da tese de Gilberto Freyre, do suposto “não-racismo” da sociedade portuguesa (de então e de agora) obrigam a uma desconstrução da identidade nacional e a uma responsabilização política e social.
I. Uma estratégia pedagógica na disciplina de História
A estratégia pedagógica implementada para a construção deste livro vai de encontro a um tema central na formação cívica e da História de Portugal na sua relação de séculos com as colónias.
Os 131 estudantes de seis turmas do 9.º ano, aceitaram a proposta de se implementar um estudo sobre o colonialismo, organizados em equipas, geralmente, de 4 pessoas mistas do ponto do género com média de idades de 15 anos. Debruçando-se este trabalho de investigação sobre um tema tabu na sociedade, porque não é assumida a colonização como uma história de violência. Os estudantes assumiam que os avôs e avós que iam entrevistar poderiam encontrar-se num dilema entre o reconhecimento do que aconteceu e a vontade de o omitir. Os professores teriam um papel orientador do percurso dos alunos, mas também de colaboração enquanto co-autores.
Perante tal dificuldade, vários alunos e alunas deixaram claro que as equipas do 9.º ano iriam para o terreno conscientes dos problemas das fontes históricas, ou seja, as pessoas a entrevistar estariam, em grande parte, reféns da narrativa oficial. Tratava-se então de garantir ao máximo que as pessoas entrevistadas, com gravadores, teriam o nosso respeito e o nosso empenho em partilhá-las por alguns milhares de pessoas da cidade e da comunidade, através de um livro.
A pesquisa efetuada baseou-se nas técnicas da história oral. A maior parte das pessoas entrevistadas, mulheres e homens, eram avôs, avós, familiares das pessoas que as entrevistaram. Facto que abriu uma possibilidade que se confirmou: os depoimentos tinham muito mais garantia de serem sinceros e verdadeiros quando feitos e gravados pelos seus descendentes ou conhecidos que haviam feito uma formação prévia em crítica das fontes, problemas de fidelidade e veracidade em ciências sociais e humanas. De facto, é conhecida a contaminação fácil entre entrevistador e entrevistado sobretudo quando se estudam temas fortemente controversos. Esta contaminação é esbatida pelo grau de confiança construído entre entrevistador e entrevistado, tendo sido solicitado aos alunos que alertassem as pessoas entrevistadas para a necessidade de relatar a história vivida e não aquela que é dominante.
A investigação partiu de um guião de entrevista semi-dirigida construída na sala de aula com a participação de todos os alunos e alunas (ver anexo). Os temas que se considerou relacionavam-se com as histórias - vividas ou testemunhadas – dos avôs e avós que tivessem vivido nas colónias de um e do outro lado.
Feitas, transcritas e analisadas as cinquenta entrevistas, os alunos-investigadores organizaram a informação por cadernos temáticos, com o acompanhamento de um docente, e que viriam a dar origem aos capítulos do livro. Finalmente, uma equipa de três docentes de História analisou os cadernos temáticos, triangulando as diferentes fontes, ponderando eventuais contradições. Essa equipa elaborou os textos, utilizando para o efeito extratos das entrevistas, tecidos entre si até formarem o corpo do livro. Quando algumas passagens das entrevistas eram especialmente fortes e literárias, optou-se por as citar directamente.
Desde o início do trabalho, os alunos tinham conhecimento que a pesquisa seria publicada em livro, aspecto que motivou a sua participação, assim como a dos entrevistados. Aquando do lançamento do livro, foi evidente a emoção e contentamento dos participantes.
Mesmo que os docentes envolvidos não tivessem explicitamente aderido a teorias específicas para desenvolver com os alunos este trabalho, a estratégia pedagógica que esteve na base desde percurso de aprendizagem e produção de conhecimento é situável na “pedagogia crítica” (Freire, 2005; Giroux, 2007), que mobiliza e sintetiza propostas de movimentos pedagógicos, como a Escola Nova, Escola Moderna, pedagogia libertária, etc.. Os princípios pedagógicos que nortearam este trabalho, passaram assim por um entendimento da aprendizagem como um processo:
- Significativo: a contextualização da história colonial nas histórias de vida de familiares, promove profundas conexões emocionais, subjectivas e identitárias com o conhecimento aprendido. Promovendo aprendizagens mais profundas, mas sobretudo, uma maior capacidade de entender o seu mundo e transformá-lo;
- Colaborativo: não só os alunos trabalharam em grupo, como também os docentes o fizeram, entre si e com os alunos, procurando-se dessa forma quebrar lógicas de trabalho individualistas e competitivas que desestruturam a capacidade de acção colectiva indispensável para a transformação social;
- Não-autoritário: esbatimento das relações de poder que atravessam a produção de conhecimento escolar, como por exemplo: 1) entre o conhecimento das famílias/comunidade e o conhecimento escolar; 2) entre história escrita (grupos e instituições dominantes) e história oral (grupos socialmente menos prestigiados); 3) entre alunos/investigadores e professores/orientadores.
- Descoberta crítica: a aprendizagem é realizada num quadro de grande autonomia, com poucas diretivas em que o aprofundamento dos conhecimentos é realizado por via da desocultação de narrativas invisibilizadas e do questionamento das relações de poder que atravessam a historiografia.
- Consequente: o trabalho foi concluído com a produção de um livro que ultrapassa largamente os muros da escola. Não é, portanto, um mero exercício, mas efetivamente intervém na sociedade. Este aspecto é especialmente importante porque desenvolve o sentido de responsabilidade cívica e resiste à “alienação” entre “o que se faz” e o significado social do que se faz.
- Antirracista: o acesso a histórias de vida concretas e de familiares sobre a violência colonial portuguesa permite o reconhecimento, sem subterfúgios, da discriminação étnico-racial que suportava esse sistema. Esse é um dos primeiros passos para o rompimento da narrativa negacionista do lusotropicalismo que, até aos dias de hoje, tem bloqueado o antirracismo em Portugal.
II. Relatos da História Colonial
“São trabalhos como este que fazem as pessoas entrarem na pele do outro e sentirem com ele as amarguras e o sofrimento que regimes sociais injustos possam ter produzido em povos com os quais conviveram. Conhecer as injustiças da situação colonial, reconhecer que os nossos antepassados talvez afinal não tenham sido tão heroicos como muitos se esforçaram por nos fazer crer e que terão mesmo que inconscientemente contribuído para o sofrimento dos outros, nem sequer diminui os nossos antepassados. Reconhecer as nossas fraquezas significa ter uma grande força de caráter e capacidade de mudança.” (Pepetela, prefácio de Mano Preto, Mano Branco)
Sentimos uma sensação dupla e contraditória quando discutimos com turmas de 25 pessoas de 15 anos de idade o tema do colonialismo português. Por um lado, soltam-se de imediato as angústias que o tema acaba por provocar. A violência brutal que caracteriza as relações coloniais deixou marcas ainda vivas: dos seus 50 avôs e avós entrevistados, portugueses e africanos e afrodescentes, haveria certamente muita informação e memórias a recolher. Parecia-nos evidente que o estudo do tema da violência exigia evitar um massacre de informações e de imagens de grande violência. Ainda que fosse evidente que estes avôs e avós, de um e outro lado da história colonial, que viviam nas colónias portuguesas em África entre 1950 e 1974, fossem um tesouro acessível a equipas de 4 estudantes do 9.º ano.
Mano Preto Mano Branco apresenta elementos para a história do colonialismo português nos seguintes capítulos: habitat, direitos civis, educação, saúde, mulheres, trabalho, cultura e religiões, guerra colonial, segurança e pós 25 de abril (ver em anexo o Guião de entrevista semi-dirigida). Reproduzimos aqui algumas partes do livro e relatos que nos parecem particularmente reveladores da realidade colonial e que rompem com mistificações lusotropicalistas tão enraizadas na nossa sociedade.
“Não se passava com todas as pessoas, mas normalmente a atitude dos brancos para com os pretos era violenta. Nem sempre batiam. Muitas vezes batiam por razões de pequeníssima importância: ou porque “não tinham feito bem o trabalho”, ou porque não tinham feito “aquilo que lhes tinham mandado”: coisas do género.
Eram muito poucos os brancos que se davam com os pretos. Muito poucos - raríssimos! Havia o caso de uma parte da nova geração de brancos, com uma mentalidade diferente, jovens que se interessavam pelo que estava a acontecer por toda a África, que se indignavam e reprovavam as atitudes mais escandalosas e que contribuíam para que houvesse mais aproximação. Era o caso dos que vieram estudar nas universidades portuguesas, que fervilhavam de contestação e que adquiriam uma consciência política, que transportavam para África quando regressavam.
(…)
Certo tipo de humilhações públicas, que eram comuns ainda por volta de 1950, começaram a ser menos frequentes. Nessa altura ainda era possível ver grupos de homens pretos a limpar as ruas da cidade, empregados da Câmara, amarrados uns aos outros pelos pés numa cidade moçambicana.
Na década de 1960 ainda havia perseguições aos jovens que não tinham caderneta de identificação. Se não a possuíssem iam para o “contrato”. Eram presos e enviados para trabalhos forçados, por um ano, por seis meses, para campos de trabalho, por exemplo roças de café, com se fossem escravos. Iam levados como animais, na carroçaria dos camiões, aos quarenta e cinquenta de cada vez. O “contrato” era uma alternativa à cadeia.
Outros eram tomados por famílias brancas, como criados. À noite não podiam sequer sair de casa, para se encontrarem com os amigos, a não ser que o patrão lhes desse uma autorização por escrito. Se saíssem e fossem apanhados pela polícia sem autorização eram castigados.”
“Era grave, entre negro e branco era grave, sim. O branco maltratava os negros e, pronto, fazia trinta por uma linha e era um bocado difícil: pancadas, pancadarias.” (Gregório Tavares, em 1974 tinha 25 anos e vivia em Angola. Natural de Cabo-Verde)
“Chegava um branco que vinha da metrópole e descobria uma terra qualquer, de boa qualidade. Chegava ao pé do administrador e tinha todo o apoio. Um nativo, natural de lá, mesmo que fosse branco, que vivesse com dificuldades, nunca tinha apoio estatal, nunca tinha apoio da administração. Os administradores mandavam em tudo, tinham tudo. Eram presidentes da Câmara, comissários, controlavam a ação geral.” (Fernando Dias, em 1974 tinha 34 anos. Era guarda da PSP, numa cidade do interior de Moçambique).
“(…) O meu quarto não era dentro de casa, era no pátio ao lado dos porcos e das vacas (…) eu e os outros criados.
Havia uma casa pequena, que era para os criados que se portavam mal. Não sei o que se fazia lá dentro, mas por vezes ouviam-se gritos. E no dia seguinte o escravo vinha todo marcado. E se não fosse trabalhar, levava do patrão. (…)” (Iolanda Cezerilo. Começou a trabalhar aos 18 anos (1966) em casa de brancos, Angola)
Reflexões finais / Conclusões
A estratégia pedagógica adotada permitiu que alunos e alunas de algumas turmas de 9.º ano sejam co-autores de um livro que foi recebido com emoção e orgulho pelas suas famílias, pelas pessoas entrevistadas, pela comunidade setubalense e pela comunicação social. Ao longo do processo os alunos e alunas perceberam porque é tão doloroso este tema e tão escamoteado nos manuais escolares. Terem facilitado que esse tema fosse falado em casa, transmitido pelos seus avôs e avós, na primeira pessoa é um claro reconhecimento e valorização da sua história de vida, cujo contributo está no livro. A relação dos alunos e alunas com a escola e com os docentes também sofreu mudanças significativas, no sentido em que se sentiram valorizados e reconhecidos pelo sistema de ensino. Efetivamente, este seu trabalho de investigação é, ainda hoje, um contributo assinalável para o estudo do tema em sala de aula. A relação entre pares também se alterou, tendo-se verificado, empiricamente, uma diminuição das situações de discriminação entre alunos e alunas desse ano de ensino.
No seu conteúdo o livro apresenta uma realidade onde são constantes a violência física, as humilhações, a segregação espacial, as desigualdades gritantes, a exploração, o trabalho forçado ou até escravo, a expropriação das terras indígenas e das suas riquezas, o racismo.
Há que ter em conta que o período estudado tem características muito particulares e que o regime salazarista e caetanista tentava adaptar-se a uma alteração brusca e vertiginosa na situação internacional: a derrota do fascismo e nazismo na guerra mundial, a vaga de independências das colónias europeias em África e na Ásia, o início das guerras coloniais a partir de 1961 em Angola, Moçambique, Guiné Bissau, o isolamento crescente do regime português, intensificado a partir da eclosão das guerras colonias, em cada vez mais países de todos os continentes, as denúncias dos massacres efetuados pela tropa portuguesa na imprensa internacional.
Todas estas realidades são contadas nas entrevistas por pessoas que as protagonizaram ou testemunharam diretamente. E a sensação que se tem quando se relê este livro é que as violências relatadas e descritas deveriam ser nomeadas e referidas nos livros escolares, não só por rigor histórico, mas como catarse e reconciliação entre nós e os outros. Como um passo, um caminho para a compreensão das origens das desigualdades, pobreza, migrações forçadas, criação de guetos, racismos descarados e subtis que persistem na sociedade portuguesa, agravados por essa violência deliberada de não os querer sequer reconhecer.
O mito lusotropicalista é esmagador na escola, na comunicação social, na família. O que o livro mostra é uma realidade devastadora e oposta, uma dominação total da minoria branca sobre as maiorias negras. E, no entanto, continuamos a perpetuar este mito nos manuais escolares com medo de enfrentar a realidade da história colonial portuguesa.
Num tempo em que a extrema-direita europeia e mundial brandem seu ódio ao outro, ao emigrante, ao refugiado, ao diferente e que voltam a atacar as ciências sociais: os livros de história carecem de uma atualização nos temas do colonialismo/racismo. Concebidos por sucessivos e diferentes governos ao longo de décadas parecem querer evitar o excesso de ideologia (ou seja, as verdades cruas e nuas), argumento triste e caduco com que o ensino desta parte da história está capturado.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Marta; MAESO, Silvia Rodríguez (2013), “A presença ausente do racial: discursos políticos e pedagógicos sobre História, ‘Portugal’ e (pós)colonialismo”, Educar em Revista, 47, 145-171.
CASTELO, Cláudia (1998), “O modo português de estar no mundo”: o luso tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa : 1933 – 1961, Lisboa : Afrontamento.
FREIRE, Paulo (2005), A Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra.
GIROUX, Henry (2007), “Utopian thinking in dangerous times: Critical pedagogy and the project of educated hope”, em Coté, Mark; Day, Richard J.F.; Greig de Peuter, Utopian pedagogy: Radical experiments against neoliberal globalization, Toronto: University of Toronto Press, pp.25-42.
Artigo pubicado originalmente na Medi@ções – Revista OnLine da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, Cristina Roldão (coord), v. 7, n. 2 (2019): Educação (anti)racista: Que políticas, práticas e perspectivas?
- 1. O lusotropicalismo defende a ideia de que os portugueses desenvolveram um colonialismo amigável. Os portugueses teriam uma aptidão natural para se relacionar com as populações das zonas tropicais, o que resultaria da sua própria origem étnica e do longo contacto com mouros e judeus na Península Ibérica.