O que leva um Ser Humano? Repensar a partir da catástrofe Israel-Palestina
É a história de uma menina árabe israelita,
que ao final da tarde decide parar
para sentar-se no chão
e tomar algum tempo a observar os campos
sentindo a leve brisa partilhada
por várias comunidades…
O que leva um Ser Humano a pensar o que pensa, a fazer o que faz? Em torno dos mais recentes acontecimentos dramáticos em Israel e na Palestina, eis a questão estruturante deste texto. O verbo levar utilizado no início da questão indica que sobre o Humano é exercido um conjunto de forças sociais que influenciam as suas perceções e ações quotidianas. Somos levados a agir de uma dada forma, sem que a influência da leva seja necessariamente mais estruturante que o livre-arbítrio responsável na ação.
No campo da advocacia penal, a defesa é chamada a ad vocatus, a “emprestar a sua voz” ao que levou um Humano a agir de forma criminosa e/ou antissocial. Aqui poderão ser incluídas circunstâncias “atenuantes”. Relativamente ao que tem acontecido entre Israel e Palestina não há nada a atenuar porque demasiado está à nossa vista. Tão visível que nos pode cegar perante a necessidade de contextualização.
O ponto de partida a que convida a questão inicial não pretende justificar nada. Incentiva à curiosidade e à inclusão de factos históricos, contextuais e idiossincráticos, para tentar explicar atos sociais extremos perpetrados por Humanos. Aquele que ad vocatus em nome do acusado procura garantir que as múltiplas etapas processuais são corretamente seguidas e que a lei é cumprida de forma rigorosa e imparcial (cf. Henry Leclerc, François Sureau). Ambas as partes têm deveres, mas também direitos, procurando garantir a compreensão do que se passou e melhorar os mecanismos de jurisprudência preventiva, processual, deliberativa.
Para desenrolar o novelo do pensar o que se pensa e fazer o que se faz, proponho partir da base legal mas ainda simbólica que nos enquadra neste planeta: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Nações Unidas em 1948, ou seja, no mesmo ano em que se oficializou a criação do Estado de Israel em território palestiniano e se definiram as leis raciais que deram início ao apartheid na África do Sul. Embora as coincidências temporais desse ano histórico não augurem bons presságios para o futuro, mantenhamo-nos por agora na ideia central da Declaração Universal – todos os Humanos são iguais nas suas diferenças. As ações devem ser contextualizadas no espaço e no tempo, partindo das condições de nascimento e de vida para melhor explicar as decisões de cada pessoa. Com essas explicações e um constante melhoramento do meio social, será eventualmente possível prevenir futuras reproduções de atos condenáveis.
Ainda com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na ideia central de igualdade, não havendo, à partida, qualquer fator determinante que nos condicione à nascença para atuar de forma condenável ou certa perante a lei, estamos mais próximos do Outro Humano do que poderemos pensar. Os atos horríficos que têm sido cometidos pelas milícias do Hamas e pelas forças armadas de Israel são perpetrados por Humanos contra Humanos. Poderemos nós próprios cometer tais atos? Poderemos agir da mesma forma? Tendo vivido no mesmo contexto social, económico e político, cada um de nós seria suscetível de pertencer a um desses dois grupos bélicos. Somos “iguais à partida”, mas há todo um conjunto de fatores sociais que vão condicionando as nossas ações e reações ao longo da vida.
Da Shoah à Nakba
É a história de um velho escritor asquenaz dos anos 1970
a quem sintomas pós-traumáticos do gueto de Varsóvia
reemergem quando observa o que se passa
nos campos de refugiados palestinianos…
Como um horror pode levar a outro horror? A Shoah, que em hebraico significa catástrofe, é a palavra associada ao holocausto de cerca de seis milhões de judeus pelo regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Cronologicamente, esse genocídio em modo industrial surgiu depois dos inícios do sionismo, mas a sua carga extremista veio reforçar a causa por uma terra própria, pela criação de uma nação segura para os judeus. O drama da Shoah foi instrumentalizado por alguns como alavanca para a criação de um novo Estado em terras palestinas.
A frase errada, mas que serviu de mote, foi “Uma terra sem gente, para gente sem terra”. O problema, como em todas as formas de colonialismo, é que a terra tinha Seres Humanos. Assim como existe a desumanização do Outro, também existe a tática de invisibilizar a sua existência. O sionismo radical e o drama incomensurável da Shoah cegaram muitos judeus. Precisando do seu próprio lugar seguro, criaram insegurança no lugar do Outro.
Embora se tenha iniciado antes da criação do Estado de Israel, é a partir de 1948 que se desenvolve rapidamente outra catástrofe, mas desta vez em língua árabe – a Nakba. Foi massiva, com mais de 900 000 exilados, e tem continuado, lenta, mas persistentemente, até aos dias de hoje (cf. Edward Said). Para os sionistas significa a conquista do espaço seguro inexistente nos dois últimos milénios; para os palestinianos, o desenraizamento forçado de uma terra vivida e trabalhada. A nossa catástrofe influenciou o início da vossa catástrofe. A nossa chegada significa a vossa partida, e a expansão contínua dos colonatos é o maior entrave à solução dos dois Estados.
Será que é preciso passar por um pogrom de 7 de outubro e pelos consequentes bombardeamentos de Gaza? Como se o drama fosse o único meio para alavancar processos conclusivos num conflito de décadas. São assuntos incomparáveis, mas em Portugal, quantas vezes é preciso uma morte num acidente automóvel para finalmente pôr um sinal de stop num cruzamento? Tudo isto é previsível e por isso evitável: há que ir à raiz dos problemas, à origem do pensamento erróneo e irresponsável, cúmplice de morte (cf. Tobie Nathan, Gabor Mate).
No entanto, houve desde o início do processo Israel-Palestina um acompanhamento das principais potências mundiais, incluindo um enquadramento específico por parte das recém-criadas Nações Unidas. Mas a realidade atroz, o peso da culpa ou a cumplicidade das grandes nações face à Shoah fizeram com que se desse espaço a um sionismo destrutivo. Os enquadramentos e as mediações falharam, ou deixaram-se falhar. Golda Meir, figura-chave do sionismo na criação do Estado de Israel e ex-primeira-ministra, afirmava em 1969 que “os palestinianos nunca existiram”. As palavras matam.
Desde a proclamação do Estado de Israel, em 1948, muito foi feito, nomeadamente através da assinatura de acordos, para que se promovam soluções perenes no Oriente Próximo. Em 1978 houve a assinatura dos acordos de Camp David promovendo a paz entre Israel e o Egito, de que resultou o assassínio do presidente egípcio Anwar el-Sadat por membros do jihad islâmico. Em 1993, assistimos ao simbólico aperto de mão entre Yasser Arafat e Yitzhak Rabin. Arafat foi odiado por uma parte dos seus, Rabin foi assassinado por um judeu ortodoxo extremista. É agora provável que o recente diálogo entre Israel e a Arábia Saudita não tenha sido aceite pelo Hamas islamista radical, já que significaria uma aproximação entre as terras sagradas da Meca e Israel.
Ao longo dos anos, para definir a sua ação preventiva de ataques e atos terroristas, o Tsahal (Forças Armadas de Israel) tem usado a metáfora do “corte da relva”, quer dizer, o corte das “ervas daninhas que brotam do Hamas”. Mas ficou provado que a poda superficial não vai à raiz dos problemas e apenas reforça os “rebentos extremistas”. Além disso, tal como temos assistido desde dia 7 de outubro, o “corte” tem sido feito de forma tão indiscriminada que a lâmina passa por todo o tipo de rebentos. Em vez disso, o jardim de Abraão, patriarca semita dos três monoteísmos, requer permacultura social, beneficiando da simbiose, da cooperação e do envolvimento de todos os atores por igual.
Tempos de violência
É a história de um currículo escolar
e de um ambiente familiar
baseados no ódio do Outro,
no estereótipo e
na desumanização…
Uns dias antes do ataque das milícias do Hamas em Israel, houve em Portugal um pequeno incidente que me parece sintomático da violência, tanto física como simbólica, em que vivemos. Aconteceu numa manifestação de desobediência civil levada a cabo por jovens portugueses que alertavam para a questão da crise climática. Sentaram-se em fila, no asfalto da segunda circular de Lisboa, barrando assim a passagem dos carros em plena hora de ponta. Acabaram por ser tirados à força por condutores exasperados. Se repararem no vídeo que por aí circula, há um jovem de calções que sai do carro e traz consigo um stick de hóquei. O que ia ele fazer com este objeto ameaçador?
Embora os manifestantes estivessem a perturbar a circulação, intuito claro, fizeram-no de forma pacífica, sem violência física. Muito se falou sobre a necessidade de punir legalmente tais atos recorrentes de desobediência civil, mas nunca se falou sobre a responsabilidade penal daqueles que se interpuseram com violência, nomeadamente o jovem que vinha “armado” para mandar para canto a sua geração contestatária. A violência física ganhou nesta circunstância, mas a temporalidade da luta climática é outra.
Os manifestantes climáticos sabem perfeitamente as perturbações que causam a uma certa normalidade. Estão prontos a defender-se perante as acusações legais a que terão de fazer frente. Mas saberão o jovem do stick e outros condutores que reagiram com violência que também eles infringem a lei, que também eles teriam de responder relativamente aos seus atos? Não associo aqui as manifestações climáticas à luta dos palestinianos, nem os condutores à retaliação de Israel; são causas e consequências imediatas diferentes, mas é sintomático este empoderamento violento de alguns Humanos frente àqueles que pedem consideração perante a sua contestação, raramente tida em conta na sua profundidade.
Tal como para Israel, este pequeno caso local também envolveu a ideia do “direito a defender-se”, como se justificasse qualquer tipo de resposta à contestação do Outro. Depois do 7 de outubro é invocado o direito a defender-se, mas sem que se respeitem os enquadramentos legais internacionais. No meio de tanta emoção, sentida por todos, perdeu-se o foco no alvo que é o Hamas. A máquina de guerra foi posta a funcionar em ataques aéreos sobre tudo o que estivesse dentro da prisão a céu aberto que é Gaza. Depois de décadas a tentar construir a paz sem chegar a resultados concretos, um 7 de outubro descontextualizado é remediado com violência extrema face a um povo enclausurado. O radicalismo do Hamas não representa os dois milhões de palestinianos em Gaza, e nada justifica o assassínio de civis em ambos os lados.
Voltamos então à questão inicial: O que leva um Ser Humano a pensar o que pensa, a fazer o que faz? A esta pergunta juntam-se outras: Que condições existem para que cada pessoa tenha a disponibilidade física e mental, o tempo e o desejo de saber o que vive o Outro? Como absorver empaticamente as suas reivindicações? Como chegar a um entendimento que, pelo compromisso das várias partes, permita respeitar cada uma e avançar numa direção comum?
Levar a sério o Outro
É a história de um palestiniano
que tenta passar por mais um checkpoint,
mas percebe que o não-olhar do soldado israelita
o desconsidera como Ser Humano…
O Ser Humano tem tendência a verbalizar a sua contestação, identificando as injustiças a que é submetido, implícita e/ou explicitamente. Isso não quer dizer que a sua contestação tenha projeção, e ainda menos que seja levada a sério (continuamos com o verbo levar).
Há 75 anos que os palestinianos denunciam o que têm sofrido devido à criação do Estado de Israel em terras onde milenarmente já existiam Humanos, onde as três religiões monoteístas coexistiam numa simbiose concertada, tal como aqui ao lado na Andaluzia, até à Inquisição. Há 75 anos que judeus não sionistas alertam para formas de neocolonialismo e de apartheid no conflito Israel-Palestina (cf. Ilan Pappé, Amira Hass, Gideon Levy).
Tratando-se de um colonialismo moderno, iniciado em 1948, num período em que começou também o processo que poria fim a colónias, a tática da desumanização foi reproduzida pelo novo Israel. O Outro, neste caso os autóctones palestinianos, são, como foram os africanos ou os indígenas nos vários continentes, caracterizados como “animais”, como “vermes”, e por outros nomes que tentam quebrar a tal “igualdade” a que nos convida a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ainda hoje, o uso destas catalogações inumanas do Outro serve para justificar a forma como é tratado, a violência que é exercida sobre ele, a humilhação lenta, a tortura, o assassínio – como se acabar com um animal fosse mais fácil ou justificado.
Sobre a questão da capacidade bélica de um Humano face a Outro, impressiona escutar os testemunhos de soldados que voltam das suas missões de guerra e que observam como alguns dos seus colegas abraçam de forma ternurenta os filhos na base militar do seu país de origem: para o soldado observador do reencontro, o contraste entre a atitude bélica extremista do colega em campo de batalha e o carinho que o mesmo demonstra ao abraçar a filha de cinco anos faz, uma vez mais, pensar nos mecanismos de diferenciação dos atos. Trata-se da mesma pessoa, mas em contextos diferentes. Poderíamos ser essa pessoa. Tanto o soldado do Hamas como o do Tsahal têm família a quem abraçar e amar. O amor à família e à pátria pode alimentar o ódio ao próximo. Tanto um como o outro foram levados a criar mecanismos mentais e físicos de ódio, parecendo justificar assim as suas ações mais belicosas. Voltamos então à “banalidade do mal” arendtiana, mas também à banalidade do bem, ambas tão características dos Humanos consoante o seu contexto de vida e de ação, por vezes em simultâneo. É também aqui que estamos mais próximos do Outro quanto à humanidade.
Insistindo na questão de levar a sério as contestações do Outro, os acontecimentos explosivos no que parece ser um distante Oriente Próximo visto de Portugal (cf. Alexandra Lucas Coelho), podem também servir de alerta para o que acontece aqui, ao lado de cada um de nós, mesmo que com causas e repercussões muito diferentes. Refiro-me aos inúmeros contextos nos quais pouco se leva a sério a contestação do Outro: a violência doméstica e as queixas feitas por mulheres e crianças; o racismo quotidiano aos níveis micro e estrutural; a xenofobia; a violência policial em certos territórios e face a alguns tipos de manifestações; a surdez perante as violências contra certo tipo de identidades de género e sexualidades; a pressão psicológica, física e financeira relativamente à falta de habitação, de recursos e de estabilidade laboral; mas também todos os alertas e lutas em prol de uma Justiça Climática. A lista é demasiado longa e poderá, pela sua extensão, afogar as singularidades de cada contestação. Mas elas existem, estão aqui, em nós e ao redor.
Na base da contestação está um dos pontos essenciais para qualquer Humano – ser considerado. A consideração por alguém significa incluir a Outra pessoa em pé de igualdade para em conjunto trocar impressões e construir um compromisso no respeito pela diferença. Muitas formas de contestação são originadas por um ato presente nas escolas, nas ruas, na Internet, nos locais de trabalho e na gestão político-policial de Humanos – o bullying, forma de assédio moral e físico, forma de humilhação. Também a pessoa alvo de bullying revela a sua dor, mesmo que seja apenas pelo olhar. Temos de ser capazes de ler esse olhar, de ler o corpo dos Outros, diariamente, para resolver tais atos de violência física e simbólica pela base. Não se trata apenas de “podar os ramos” das interações sociais, trata-se de ir à raiz, à origem, sempre complexa e difícil de trabalhar. Será eventualmente necessário desenlaçar raízes, mudar o tipo de solo e garantir a drenagem, num diálogo constante com o que assedia e o que sofre porque ambos poderão contribuir para encontrar uma solução rizomática perene (cf. Souleymane Bachir Diagne).
Um terceiro ponto para que remetem as contestações referidas até agora tem que ver com a necessidade de garantir um espaço de vida – um lugar seguro. Este pode ser somático, o corpo-mente como lugar pessoal, base da construção do Eu; mas também físico e material, como um quarto, uma casa, um bairro, um país. A necessidade de garantir lugares seguros é tão forte, tão interligada a noções de dignidade e consideração, que o Humano pode sacrificar a sua própria vida em nome desse direito. Ela pode levar refugiados ao suicídio, mas também estar presente na resistência inquebrável de uma idosa portuguesa que se agarra à sua casa isolada numa serra a arder enquanto os bombeiros a tentam retirar à força: Não, esta é a minha casa, o meu espaço de sobrevivência, o meu lugar seguro, e daqui ninguém me tira. Se não há este lugar, então não há nada para mim! A perda de casa e de território foi historicamente vivida pela comunidade judaica em todo o mundo, assim como a comunidade palestina a foi vivendo durante a colonização otomana, a inglesa e agora a israelita. As consequências do retirar dos lugares seguros, ou da sua inexistência, podem ser dramáticas, como tivemos uma vez mais a oportunidade de testemunhar nestas últimas semanas.
Pessoas desesperadas são mais suscetíveis de cometer atos desesperados, sobretudo quando o seu único “lugar seguro” é Gaza, gerida tal uma prisão desde o bloqueio imposto por Israel em 2007. Como se cresce neste contexto? As taxas de reincidência no crime revelam que as prisões são também lugares de desenvolvimento de delinquência, de exacerbação da revolta, de partilha de radicalismos religiosos, criminosos e anti estado policial. Há que estar atento a quem estende a mão à juventude desesperada, que vive num presente altamente instável e sem perspetivas de futuro. Será que a única mão estendida é o Hamas? Será que o único futuro de Israel passa pela extrema-direita messiânica? Como podem o radicalismo islâmico e o fanatismo judaico ortodoxo, ambos nas suas versões quotidianas e políticas, ter sido imaginados como o único lugar seguro para construir um futuro? Qualquer um deles propõe a oposição ao Outro, aniquilando-o.
Constatações reveladoras
É a história de um agricultor da Cisjordânia
a quem durante a noite os colonos
cortaram o olival centenário…
Desde o ataque a Israel no dia 7 de outubro que, sobretudo nos campos da política e dos média, se revelou um conjunto de ações e reações problemáticas. A primeira diz respeito à não descrição do que aconteceu nesse dia como sendo terrorismo. Assim como há um uso abusivo das palavras que lhes retira impacto, também existe a omissão de certas palavras para significar o que aconteceu. Ambas as atitudes causam danos, uma por desgaste do significado, outra por caracterização incorreta.
A segunda reação problemática, mas infelizmente recorrente em eventos dramáticos e intrincados como estes, é a de analisar os factos de forma simplista, no tempo e no espaço. Por exemplo, analisar o conflito israelo-palestiniano como se tivesse começado no dia 7 de outubro. A atenção à complexidade, o esforço de análise sob uma perspetiva histórica e sociológica, intersecionando inúmeros dados, têm feito emergir muitas oposições, nomeadamente dizendo que “explicar é justificar”. Este chavão já tinha sido utilizado por Manuel Valls, primeiro-ministro francês, após os atentados de 2015 em Paris face às explicações contextualizantes dos especialistas em ciências sociais e humanas (cf. Bernard Lahire). Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos da América, num contexto em que a comunidade judaica está muito polarizada, a filósofa Judith Butler publicou um artigo contra o ataque que é feito aos que procuram ir à raiz dos problemas e ao tipo de “solo social” que permitiu o seu desenvolvimento. Essa procura e proposta leva a acusações de “relativismo”, de “contextualização”. Em vários países, jornalistas, intelectuais e artistas tiveram de justificar a importância crucial da procura incessante de explicações. Foi o caso também para António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, depois do seu discurso de 24 de outubro na Assembleia Geral. Ignorar as “raízes do mal” é um tipo de cegueira ego e etnocêntrica que nos tem levado aos atos perpetrados desde dia 7 de outubro. Tudo isto contribui para uma perceção binária dos factos sociais, obrigando a fazer uma escolha entre branco e preto, numa realidade que é um arco-íris.
Quase inversamente, a complexidade da raiz dos acontecimentos no Oriente Próximo é posta em causa por outras razões. Numa recente entrevista, Nadav Lapid, realizador israelita de filmes que revelam a complexidade humana e quotidiana do (sobre)viver, alertava para o facto de a demonstração exaustiva do que é complexo poder ofuscar algo que se estrutura em constatações simples: “Enquanto nos mantivermos em relacionamentos distorcidos e perversos, alimentamos o desastre. Neste momento alimentamos o próximo desastre.” Assim como as palavras se desgastam, também o excesso de explicação (superficial e repetitiva em canais de informação contínua) pode levar o espectador a perder a noção básica do que está em questão. A dormência dos espíritos é para todos nós uma forma apática de sobrevivência.
A terceira constatação problemática destas últimas semanas remete para a recorrente obrigatoriedade a que os comentadores de origem palestiniana são submetidos para justificarem a sua humanidade. Quando convidados pelos média a comentar o que se passou no dia 7 de outubro, a primeira pergunta que lhes é feita visa sempre que revelem ao mundo que não são “animais” ou “monstros”. Os jornalistas querem ouvir uma condenação forte ao Hamas e uma palavra de solidariedade face ao horror nos kibutzim fronteiriços. A condenação de tais atos é tão óbvia para a maioria dos palestinianos, que a antropóloga e escritora Yara El-Ghadban foi uma das muitas pessoas que reagiram a este julgamento implícito: “Eu não tenho de vos relembrar a minha humanidade!” A pressão exercida revela um ponto de partida estereotípado por parte de alguns jornalistas e público. Na sociedade portuguesa, lembra o facto das mulheres se sentirem obrigadas a trabalhar muito mais e melhor para serem aceites na comunidade laboral patriarcal; também faz lembrar os meus colegas académicos do Sul Global que se sentem obrigados a dominar perfeitamente as teorias dos autores do Norte Global, para serem aceites pelo mundo académico dominante.
A quarta observação tem a ver com a “economia da atenção” (cf. Herbert Simon, Yves Citton), ou seja, o tempo de atenção limitado de cada Humano tido como uma raridade a mercantilizar. Nos média, depois de o conflito Rússia-Ucrânia ter tomado o lugar dominado pela pandemia da covid-19 em 2022, o conflito Israel-Palestina tem agora quase todo o tempo de antena. Ficam obliteradas as guerras no Sudão, na Somália, na fronteira entre a Arménia e o Azerbaijão, ou as tentativas de limpeza étnica contra os Uigures na China e os Yazidis no Iraque, entre tantas outras. O conflito desviou a nossa atenção das manifestações semanais que duravam há um ano em Israel contra uma reforma judicial que pretendia reforçar um poder totalitário. Mas também dos gravíssimos problemas relacionados com as migrações forçadas por todo o mundo e a catástrofe global em era de Antropoceno.
Por fim, a tudo isto juntam-se os nossos próprios problemas individuais, nomeadamente o “fim do mês” apertado que elimina qualquer outra preocupação mais distante. O “fim do mês” pessoal desvia as atenções e reconfigura prioridades, não havendo tempo de consciencialização nem disponibilidade de contestação sobre questões globais. Tudo parece distante e menos importante quando falta pão na mesa, quando faltam sapatos de inverno para os filhos, quando o banco nos relembra o quanto a ele estamos presos. E nesta “economia da atenção”, que tempo há para ler um livro, para usufruir dos eventos culturais disponíveis? Que possibilidade existe de comunicar e estar aberto à imensa beleza das artes vindas das culturas judaicas e árabes?
A falha dos extremos
É a história de um jovem adulto
que aprende a voar de parapente
e a passar para o outro lado do muro…
Ao nível macro, os contextos de violência tanto se nutrem de regimes extremistas como os alimentam. O século XX foi palco de regimes baseados na atrocidade, com cúmplices em todo o espectro político. As democracias dialogam e/ou confrontam-se com regimes autoritários e autocráticos. O problema é que nem através do voto as democracias evitam a queda nos extremos. Foi pelo sufrágio democrático que se chegou às coligações de extrema-direita do Likud de Benjamin Netanyahu nos últimos 15 anos; em 2007 o Hamas foi eleito em Gaza, com observadores europeus a garantir que os procedimentos eleitorais seguiam as regras; foi em democracia que se votou em Jair Bolsonaro, em Donald Trump, em Andrzej Duda na Polónia, em Georgia Meloni na Itália, em António Oliveira Salazar como o “melhor português de sempre”…
Não que isso ponha em causa a Democracia ou a Républica, mas torna-se urgente repensar como estas podem servir como mecanismos estruturais, legais e utópicos para a legitimação de extremismos através do voto. Há que melhorar constantemente as razões para votar. Há que voltar à base que são os Humanos eleitores, à sua formação, à sua disponibilidade física e mental, às suas contestações. É preciso garantir condições para que cada pessoa desenvolva um sentido crítico, consciente do passado e com visão a longo prazo, do que quer para a sua freguesia, município, país, continente, para gaïa (cf. Bruno Latour).
No entanto, é possível que, contrariando o título deste subcapítulo, os extremos não tenham falhado. Souberam perfeitamente ler e aproveitar-se do tipo de Humanos que as sociedades criaram ao longo de gerações. Conhecem as suas forças e sobretudo as suas falhas, infiltram-se nos seus interstícios emotivos. Seguindo os princípios democráticos, sabem partir dessa matéria-prima humana e “fabricar o consentimento” perante as ideias mais radicais (cf. Noam Chomsky).
Mas a falha total dos extremismos liderados pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu para a segurança de Israel e para o futuro dos dois povos deve servir de alerta a todos nós, embebidos nos nossos próprios regimes políticos. Em Israel falhou a solução da direita radical, dos muros, do domo de ferro, da tecnologia, da violência quotidiana, da humilhação, do controlo da água, da comida, dos medicamentos e do combustível. Este grave fracasso é uma chamada de atenção à responsabilidade sobre a consciência, a ação, o voto e a contestação de cada pessoa. Nada trava um Ser Humano humilhado.
Assim como se pensou que o “problema da Palestina” pertencia ao passado e já estava resolvido, também se pode crer na segurança da democracia. E aqui o peso recai muito sobre os partidos e as figuras de proa da direita e da esquerda voltadas para o centro. A falta de exemplaridade, de clareza e de ética, os escândalos judiciais, o obscurantismo e as quebras deontológicas, tudo isso alimenta o sentimento de traição, de desilusão e o desinteresse por parte dos votantes. Os extremos de ambos os lados infiltram-se no vazio deixado por outras forças políticas e civis. Contradizendo ou prevenindo tudo isto, relembro uma iniciativa importante aquando das eleições do Presidente da Républica, Marcelo Rebelo de Sousa: no início dos seus dois mandatos, o Presidente católico reuniu-se com os representantes das muitas fés em Portugal; em 2016, no dia em que tomou posse, promoveu um encontro multirreligioso na Mesquita de Lisboa. É simbólico, mas muito importante numa Républica que se quer laica e inclusiva.
Voltando à questão dos extremos e da sua presença em tudo o que sejam fontes de comunicação, temos de relacioná-la também com uma constante luta no campo da “economia da atenção”, acima referida. Há todo um mercado, um business até, em torno do “chamar a atenção”. Algumas figuras públicas são experts e insistem no escândalo, na violência física e verbal, no oposto da arte diplomática, para assim atrair a atenção sobre si e sobre o que representam. O problema é que, de facto, toda essa performance extrema é mais chamativa do que qualquer outra ação conciliativa e lenta. Um chavão ou a exposição de um preconceito têm mais impacto imediato do que a sua contradição, por esta demorar tempo e requerer atenção.
Quem é professor já deve ter vivido a seguinte situação: no final da primeira semana de um novo ano letivo, é frequente que os únicos nomes de que nos lembramos numa turma sejam os dos alunos que causaram mais “distúrbios” e que, por isso, foram mais vezes chamados à atenção. Demoramos muito mais tempo a assimilar os nomes dos alunos discretos e atentos. O nosso trabalho é cuidar de todos por igual e dar um apoio especial aos que mais necessitam, mas é flagrante como o que fica ao final da semana são os alunos ditos “problemáticos”. Na sociedade do espetáculo, este começa logo na sala de aula.
Relacionando este pequeno caso escolar com o que se passa nos mundos da política e dos média, pretendo retomar a nossa capacidade de atenção para o que está menos visível, mas que pode corresponder a uma maioria. O que pensa e faz essa maioria silenciosa? Que presença tem? Que voz é a de cada um dos seus membros? Também aqui os professores saberão o quanto podemos ficar surpreendidos com o carisma e a profundidade performática de um aluno discreto quando se lhe dá o devido espaço para que se exprima. São belas surpresas. É também a estes Humanos, e à possibilidade de criação de lugares seguros, que devemos estar atentos, mesmo que isso seja difícil e exija tempo.
Sentimentos dormentes
É a história de um velho sefardita israelita
que passou a vida a lutar por igualdade e justiça
entre árabes e judeus, mas para quem
os atentados a partir de 7 de outubro são
a gota d’água ao desespero…
Face ao horror que acontece quotidianamente no Oriente Próximo, podemos apenas imaginá-lo, associá-lo a outros sofrimentos ou a emoções que cada um já viveu. Depois da barbárie, já o escritor Primo Levi, sobrevivente da Shoah, exprimia o quão difícil era encontrar as palavras e que, quando se encontravam, ninguém conseguia acreditar. Atualmente, o uso repetitivo de conceitos desgasta o seu sentido e torna os nossos sentimentos dormentes face a atos que nos ultrapassam na realidade e no imaginário. Há um problema na escolha e no uso das palavras, na forma como ecoam nos corpos e na ressonância que podem ter na nossa mente. A literatura pode aproximar-nos de tais eventos e emoções, mas, como me dizia uma amiga que viveu a Segunda Guerra Mundial e que deixou de ler livros nas últimas décadas da sua vida: “Não leio mais porque a realidade ultrapassa sempre a ficção”.
A isso junta-se o constante uso de números para relatar quantitativamente uma realidade. O que são 40 bebés assassinados nos kibutzim? O que quer dizer o número 1400 mortos nos ataques do Hamas? O que significa cada uma das mais de 7000 vidas bombardeadas em Gaza? Em cada conflito bélico os números também contribuem para anonimizar vidas e empilhar tudo nas valas comuns das nossas mentes espectadoras. É um automatismo, quase por sobrevivência psíquica, mas é necessário re-humanizar cada corpo caído.
E neste momento em Gaza não basta a morte: há que encontrar o corpo; há que guardá-lo na câmara frigorífica de uma carrinha de gelados que está a ficar sem gasolina; há que tentar enterrá-lo num cemitério, mas os misseis não permitem o cortejo fúnebre; há que iniciar um luto difícil sem espaços seguros, nem paz de alma.
O falecido poeta palestiniano Mahmoud Darwich escreveu que o seu povo sofria “de um mal incurável chamado esperança”. A esperança será a última a morrer, mas morre-se demasiado por esperança. O cessar-fogo é urgente, uma questão de Direitos Humanos para uma população refém do Hamas e do Tsahal.
Tudo está mais à vista, desde a história do conflito aos massacres de dia 7 de outubro, à retaliação cega sobre uma Gaza enclausurada. Também está à vista a falta de poder, ou hipocrisia, da comunidade internacional para um cessar-fogo, para a criação de corredores humanitários, ou para acolher refugiados que ninguém quer, nem Israel nem os países árabes limítrofes.
O efeito borboleta passa rapidamente a encadear um efeito dominó mundial, tanto contra um dos dois polos, Israel ou Palestina, como a favor de um cessar-fogo e de novas discussões pragmáticas para atingir um acordo mundial que estruture a solução de dois Estados. É urgente e universal a necessidade de garantir a vida num lugar seguro, com possibilidades para uma nova geração sonhar um futuro, no qual se considere o Outro e as suas contestações, no respeito pela diferença.