São Tomé, “a jóia do império”
No início do século XX, São Tomé era um dos maiores produtores de cacau do mundo, a mais lucrativa colónia portuguesa, e, nas palavras dos contemporâneos, “a jóia do império”. No entanto, uma breve viagem ao passado revela uma “jóia” feita de trabalho forçado, violência e racismo.
São Tomé, Junho de 1907. Amália, de 3o anos de idade, natural de Angola, é encontrada pela polícia rural a vaguear numa estrada do Norte da ilha. Trazia uma corrente presa à cintura, fechada a cadeado. No interrogatório, declarou que na roça onde estava contratada lhe batiam com palmatória nas mãos e nos pés “até fazer ferida”. Disse ainda que, da primeira vez que tentara fugir para denunciar os maus tratos à justiça, as autoridades devolveram-na de imediato ao seu patrão. O castigo que se seguiu procurou ser exemplar: ficou trancada num armazém mais de um mês, dia e noite. Ainda assim, ela não vergou. Por isso, ataram-lhe uma corrente e mandaram-na para o mato colher cacau sempre vigiada. Escapara num dos raros momentos em que se viu sozinha. Perante este relato, a administração colonial abriu um inquérito. Chamaram-se vários trabalhadores que, testemunhando sob o olhar atento do capataz da roça, negaram os factos. O capataz afirmou nada saber sobre correntes ou castigos. Segundo ele, a história resumia-se a um delírio de Amália, que “não tinha o juízo todo”. Amália foi forçada a voltar à plantação.
No mês seguinte, o príncipe Luís Filipe desembarcava com pompa no cais de São Tomé. Eram os primeiros pés da realeza a pisar a ilha, à época, a mais lucrativa colónia portuguesa, um dos maiores produtores de cacau do mundo e, nas palavras dos contemporâneos, “a jóia do império”. O objetivo da viagem combinava propaganda e reabilitação. Em 1907, enquanto se celebravam quase três décadas sobre a abolição da escravatura, a violência do regime de trabalho nas roças de São Tomé e do sistema de recrutamento de homens e mulheres em Angola tinha saltado para as páginas da imprensa internacional.
A polémica envolvia associações antiesclavagistas e fabricantes de chocolate britânicos, roceiros portugueses e a diplomacia dos dois países. Luís Filipe viu quatro plantações em três dias, antes de seguir para a costa africana. Os relatos da visita não falam de calabouços, chicotes, palmatórias ou cacetes, apesar destes povoarem os inúmeros registos oficiais de brutalidade que sobrevivem no Arquivo Histórico de São Tomé e Príncipe. Eles apenas mostram, com orgulho, um dos melhores exemplos do progresso europeu nas colónias: cidades em miniatura com casa grande e sanzalas imaculadas, terreiros iluminados com luz elétrica, hospitais, milhões de cacaueiros e exércitos de africanos disciplinados. Mas para que as plantações funcionassem com a precisão de um relógio suíço, além da violência extrema que atingia alguns, doses maciças de violência quotidiana eram aplicadas sobre todos, mulheres, homens e crianças.
Plantações modernas
São Tomé é um território exemplar para compreender as intersecções entre imperialismo, escravatura e capitalismo na longa duração. No século XVI, depois de experiências iniciais na ilha da Madeira, consolidou-se aí o sistema de plantação moderno, que, com o tempo, chegaria a todo o mundo. Percebeu-se que, usando o trabalho de pessoas capturadas na costa africana no cultivo da cana-de-açúcar, se podia produzir este bem de luxo com lucros incomparáveis. Nessas plantações, a escravatura, e o processo de desumanização de mulheres e homens que a tornou possível, ajudou a consolidar ideias mais antigas sobre diferença e hierarquia racial que marcaram as relações de trabalho nos séculos seguintes e que sobrevivem até hoje.
Quando a cana e os engenhos foram transplantados para o Brasil em meados de 1500, São Tomé transformou-se num dos mais importantes pontos da rede de tráfico de pessoas através do Atlântico. Viajando no convés de navios negreiros, as primeiras árvores de café e de cacau chegaram à ilha nos finais do século XVIII. Mas as plantações em larga escala de café e cacau tiveram de esperar, porque nada suplantava o dinheiro ganho com o negócio da escravatura, sobretudo o tráfico ilegal. Só em 1850, quando o Brasil deixou de importar trabalhadores das costas de África, é que a maioria dos traficantes portugueses se viu obrigada a mudar de vida. Alguns tornaram-se banqueiros, alimentando muitas das instituições de crédito que financiaram a Regeneração, outros tornaram-se plantadores. Esses que se fixaram em São Tomé adaptaram com sucesso as tecnologias agrícolas e de administração do trabalho escravo experimentadas nas fazendas cafezeiras do vale do Paraíba, no Brasil. As fazendas de café de São Tomé uniram-se à banca, empresas de navegação, seguradoras e comércio de importação/exportação, dando novo impulso ao capitalismo em Portugal.
A semelhança entre métodos de cultivo e transformação do café e cacau permitiu que a transição entre essas duas culturas agrícolas se fizesse sem grandes sobressaltos. O cacau surge em força em São Tomé quando os preços do café caíram no mercado internacional, coincidindo também com a abolição da escravatura no Império Português. Num primeiro momento, quando os ex-escravizados se recusaram a prestar serviços para os seus antigos patrões, o futuro das plantações viu-se ameaçado. Não tardou até que o Estado colonial criasse novos enquadramentos legais para obrigar os africanos a regressar ao mato e aos terreiros das roças. Recrutadas à força e obrigadas a assinar contratos de trabalho, cerca de 66 mil pessoas saíram de Angola para São Tomé entre 1876 e 1904. Nas várias leis que regularam os contratos e que se publicaram ao longo desses anos, as linhas que demarcavam a liberdade da servidão, e que determinavam a condenação ou complacência em relação à crueldade, eram bastante ténues. Essas linhas continuaram a seguir padrões raciais bem definidos.
Plantações científicas
Com o recurso a trabalho forçado, as roças de cacau cresceram e multiplicaram-se, acabando por dominar quase todo o território de São Tomé no início do século XX. Nesse processo, os plantadores contaram, antes do mais, com a ajuda da natureza: a árvore do cacau, originária da Amazónia, encontrou na floresta tropical da ilha um habitat ideal. Para melhorar a produtividade da cultura do cacau, contrataram agrónomos, químicos e engenheiros, portugueses e estrangeiros. Para melhorar o desempenho dos trabalhadores, investiram em modernas tecnologias de gestão.
Em São Tomé, as grandes roças passaram a depender de um planeamento rigoroso e da contabilização de todas as tarefas agrícolas. O rigor contabilístico era tanto mais importante quanto, desde o final do século XIX, muitas dessas empresas agrícolas se tinham transformado em sociedades por quotas, administradas por profissionais in loco e geridas à distância, a partir de Lisboa. Os mesmos registos que permitiam o governo do quotidiano ajudavam também a tornar visível e perscrutável pelos acionistas em Portugal o processo produtivo na ilha.
Todo o trabalho do cacau — as derrubadas, a abertura de novas covas, a adubação, as sementeiras, a poda, as capinas, a colheita, a quebra, a fermentação, a secagem, a escolha, o ensacamento, o transporte — traduzia-se numa escrituração detalhada, elaborada dia a dia, mês a mês e resumidas no final do ano. Embora as tarefas variassem de acordo com o ciclo do cacau, cada mulher, homem e criança devia estar permanentemente ocupado e alcançar as exigentes metas de produção definidas para cada serviço. Na punição das falhas usava-se o castigo corporal, justificando-se deste modo: “Porque é o único que eles [os negros] compreendem.” Contabilidade e violência faziam parte do mesmo sistema.
A existência de salários e contratos não nos deve iludir quanto à natureza forçada do trabalho nestas plantações. Proibidas de sair, as pessoas viam os seus salários sumirem-se na loja da roça, alimentando um sistema em circuito fechado que beneficiava os patrões. Por sua vez, o repatriamento ao fim dos cinco anos de contrato também nunca passou de uma ficção. Coagidos à recontratação, com a cumplicidade das autoridades, mulheres e homens habituados às lides do cacau eram um capital humano que a economia das roças não podia perder. Na verdade, o controlo exercido sobre uma população servil tornava a gestão científica do trabalho ainda mais eficaz.
Mas nesta história de violência importa não tomar controlo por consentimento. O caso de Amália dá conta das táticas de revolta e das estratégias dos roceiros e do Estado colonial para com os insurgentes.
Plantações-modelo
Nos finais do século XIX, São Tomé produzia um dos cacaus mais cobiçados pelas fábricas de chocolate da Europa. A cada ano, o cacau que saía dos armazéns vendia-se barato, e, por isso, esmagava a concorrência mundial. Com o tempo, as plantações de São Tomé, verdadeiras máquinas de fazer dinheiro e poder, começaram a atrair a curiosidade dos estrangeiros. Se, por um lado, os britânicos se dedicaram a denunciar o regime de trabalho nessa colónia, por outro, belgas e alemães olhavam para a ilha como inspiração para os seus próprios empreendimentos nos trópicos. Um financeiro alemão de passagem por São Tomé afirmava: “Por toda a parte onde estivemos observámos condições que são para classificar como modelo, sob todos os pontos de vista.”
Dezenas de agrónomos, botânicos, funcionários coloniais, empresários e capitalistas, interessados em colonizar o Congo e os Camarões, foram aprender os segredos do sucesso do cacau português. Numa época de cooperação e concorrência entre impérios, as autoridades em Lisboa olhavam desconfiadas para as consequências desse sucesso. Milhões de sementes de cacau e alguns “trabalhadores experimentados” eram transportados pelos agentes belgas e alemães, de forma mais ou menos clandestina, para as suas colónias africanas. A esses homens e mulheres juntavam-se muitos milhares de mulheres e homens locais, forçados a trabalhar nas novas plantações. Com o tempo, as florestas do Mayombe e do sopé do monte Camarões foram desaparecendo, dando lugar a cacauais à imagem e semelhança de São Tomé.
Em 1907, as roças de São Tomé estavam no centro de uma rede que se estendia aos principais interesses industriais, financeiros e coloniais de Portugal e da Europa. São Tomé era, de facto, a “jóia do império”, moderna, rica, lucrativa. Importa, no entanto, não ignorar o passado de trabalho forçado, de violência e de racismo que criou essa “jóia” e lhe deu forma. Essa é a história que nunca deve ser esquecida.
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Esta investigação foi realizada no âmbito do projeto A Cor do Trabalho: Vidas Racializadas dos Migrantes, financiado pelo Conselho Europeu de investigação (ERC AdG 695573).
Historiadora, ICS-ULisboa
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Artigo originalmente publicado em Público a 06/12/2020