Um ciclo de debates para questionar a amnésia colonial do Porto e do país
Uma parceria entre três espaços independentes quer discutir o passado colonial da cidade. O primeiro debate incide sobre o Monumento ao Esforço Colonizador inaugurado pelo Estado Novo e reerguido em 1984.
Três espaços independentes do Porto reuniram-se para discutir os vestígios do passado colonial na cidade e para isso criaram o hub VAHA Porto Hub. O evento inaugural desta parceria, resultado de um projecto que o atelier Instituto, o colectivo InterStruc e a associação Rampa viram aprovado pelo programa VAHA – uma rede de organizações culturais de países europeus e outros territórios vizinhos, com sede na Turquia, que tem como objectivo fortalecer a sociedade civil através do apoio a espaços não institucionais –, é já esta quinta-feira e consiste no primeiro debate online de um ciclo intitulado Pós-Amnésia: Desmontando Manifestações Coloniais. Acessível através das redes sociais das três entidades, o evento tem o seu início marcado para as 19h.
Dedicado ao tema “Monumentos e Memoriais”, este primeiro debate reflecte sobre três casos específicos: o Monumento ao Esforço Colonizador Português (Porto), de 1934, o Memorial à Escravatura (Lisboa), actualmente em construção, e a escultura Mãe Preta (São Paulo), de 1955. Para apresentar as experiências de várias cidades com que “o Porto espera aprender”, foram convidadas Beatriz Gomes Dias, deputada do Bloco de Esquerda e fundadora da Djass – Associação de Afrodescendentes, uma das proponentes do memorial a implantar em Lisboa, Bárbara Neves Alves, designer de comunicação e professora universitária radicada na Holanda, e o arquitecto e investigador brasileiro Felipe Moreira. A moderação é de Mamadou Ba, dirigente da associação SOS Racismo.
“O hub achou que seria interessante trazer para o Porto uma série de debates à volta da história colonial da cidade. Este debate está muito ausente no Porto e nós decidimos trabalhar localmente sobre a presença ou ausência de certas narrativas, trazendo para participar maioritariamente pessoas de fora da cidade”, explica Nuno Coelho, designer de comunicação e professor na Universidade de Coimbra que é membro da associação Rampa. “Há uma predominância de narrativas ligadas à história colonial e uma ausência de narrativas relacionadas com a escravatura. Não há qualquer menção na toponímia, nos monumentos ou em qualquer manifestação urbana no espaço público que relembre ou simbolize o passado escravocrata do Porto”, acrescenta. Ao trazer intervenientes de fora do espaço geográfico da cidade que reflectiram mais sobre o problema, a discussão de quinta-feira alarga-se obrigatoriamente aos casos de cidades como Lisboa e São Paulo e, no debate seguinte, também a Luanda.
O Monumento ao Esforço Colonizador Português, actualmente situado na Praça do Império, foi feito para a Exposição Colonial Portuguesa de 1934 que teve lugar no Palácio de Cristal. A escultura, então implantada à entrada dos jardins, é da autoria de Alberto Ponce de Castro e José de Sousa Caldas e figura seis tipos de colonos: o missionário, o militar, o comerciante, o médico, o agricultor e a mulher. “O monumento é problemático porque tem uma mensagem implícita de racismo: está a glorificar uma história colonial e uma supremacia eurocêntrica, além de trazer também questões de género pela forma como a única mulher está representada apenas com os seios destapados, numa representação da fertilidade. Aquela exposição colonial também incluiu os chamados ‘zoos humanos’ com a exibição de pessoas negras que foram trazidas das antigas colónias para serem exibidas”, lembra Nuno Coelho.
O que poucas pessoas saberão, comenta, é que o monumento acabou por ser desmantelado no início da década de 50, depois de uma discussão estética que já vinha dos anos 40. “Ficou três décadas arrumado num canto, mas em 1984 o então presidente da câmara, Paulo Vallada, também ele um colono, decidiu reerguê-lo em plena democracia. Há um esforço para o recuperar [já num período pós-colonial], um acto simbólico sobre o qual nos interessa reflectir.” Mais recentemente, o monumento já foi pichado em protesto, mas também serviu de ponto de encontro ao PNR, um partido de extrema-direita.
O segundo debate, agendado para 4 de Março e tendo como mote “Rotas e Toponímias”, alarga a discussão a África. “Convidámos três grupos que fazem visitas guiadas nas suas cidades, em três continentes diferentes, em que mostram o impacto que alguns eventos relacionados com o colonialismo têm no espaço urbano, principalmente na toponímia e até nas placas de lojas”, explica o arquitecto Paulo Moreira, do Instituto. Participam nessa sessão o colectivo Cartografia Negra (São Paulo), a Associação Kalu (Luanda) e ainda Naky Gaglo (Lisboa), com moderação da historiadora de arte brasileira Isabeli Santiago, actualmente a viver no Porto.
Uma semana depois, a 11 de Março, novamente uma quinta-feira, terá lugar o último debate do ciclo, sobre o tema mais genérico “História e Cultura”, que pretende mostrar como “o legado colonial está enraizado estruturalmente na sociedade”, explica Isabel Stein, investigadora brasileira que pertence ao colectivo InterStruc e vive actualmente em Lisboa, “para entendermos a presença contemporânea desses traços coloniais, como certas narrativas se tornaram hegemónicas e outras foram marginalizadas”. Os três convidados são Ângelo Delgado, autor do livro Sem Ofensa, compilação de episódios raciais no contexto urbano português, Onésio Intumbo, fotógrafo e sociólogo guineense que vive em Coimbra, e Manuel de Sousa, criador da página de Facebook Porto Desaparecido e autor do livro Porto D’Honra. A moderação estará a cargo de Navváb Aly Danso, uma académica e activista que nasceu em Cabo Verde e vive actualmente no Porto.
Artigo originalmente publicado por Público a 25.02.2021