A poesia é para comer - Iguarias para o corpo e para o espírito
Há muito tempo que versos e petiscos se cozinhavam na minha mente, em lume brando, como convéma uma receita que se quer apurada, insinuando no meu espírito aromas irresistíveis de cozinha de infância. Nasci numa família em que a gastronomia foi sempre – ao longo de gerações – um culto e um prazer,com honras de biblioteca e pesando, até, na escolha de itinerários de viagem. E o que pode haver de maispoético do que as memórias de um tempo em que tudo era assim, brando e promissor, sem pressas nematropelos, apesar da sede imensa de uma vida inteira pela frente, por beber ainda?Enquanto tudo se espera, tudo pode acontecer… A ideia de reunir num mesmo livro duas das minhas paixões – a poesia e a gastronomia (na sua vertenteculinária) – foi tomando forma naturalmente, deixando-me água na boca e na imaginação. Impunha-seencontrar uma fórmula original, que glorificasse igualmente as duas artes e as casasse harmoniosamente,prevenindo o risco de divórcio. Ambas são de personalidade forte e muita sensibilidade: nubentes difíceis,portanto. Mas possíveis, porque iluminadas pela mesma chama. Agostinho da Silva afirma-o, como ninguém,num dos seus pequenos e magníficos poemas:
A quem faz pão ou poema
só se muda o jeito à mão
e não o tema.
Também Carlos Drummond de Andrade reconhece esta similaridade entre o alimento do corpo e o do espírito:
Deixaste-nos mais famintos,poesia, comida estranha, se nenhum pão te equivale…
Ou Aníbal Beça, que vai mais longe e “saboreia” palavras como frutos, de tal modo que nos deixa quase a salivar também:
O fruto palavra de doce mascavo repuxa viscoso no tacho da boca mel caramelado.
Inspirei-me ainda na ancestralidade desse misterioso, complexo e tantas vezes incompreendido universo feminino, a que naturalmente pertenço, expresso com golpe de asa e mestria neste verso de Ana Luísa Amaral:
E descascar ervilhas ao ritmo de um verso: A prosódia da mão, a ervilha dançando em redondilha.
Ou nesta concisa e tão expressiva análise sensorial de Regine Limaverde:
Tentei o doce de tua boca mas provei o salgado de meus olhos.
Enfim, descoberta a fórmula – uma antologia de poesia lusófona, em que cada texto contivesse pelomenos uma referência culinária e esta pudesse dar origem a uma receita, lancei-me à saborosa tarefa da pesquisa de poemas. Encontrei, naturalmente, muitos mais do que os que constam neste livro, mas seria impossível apresentar aqui essa recolha exaustiva. Houve que fazer uma selecção, cujo critério é da minha inteira responsabilidade. Não posso deixar de agradecer, em primeiro lugar, a todos os poetas de Portugal, Brasil e demais países lusófonos, a verve e o rasgo poético. Sem eles, verdadeiros autores deste livro, esta edição não existiria ou seria apenas uma compilação de cardápios, mais ou menos inspirados. É justo que sublinhe os poetas brasileiros vivos aqui representados, pelo extraordinário carinho e entusiasmo com que aderiram a este projecto. A escolha dos poetas presentes nesta antologia não cedeu a quaisquer critériosideológicos (políticos, religiosos ou outros). O único denominador comum que aqui se poderá deparar, além do tema, é a PALAVRA – e, por maioria de razão, a palavra poética – livre por natureza. Privilegiou-se, isso sim, uma representação tão abrangente quanto possível, no tempo, no espaço geográficoe no estilo. Por isso se encontrarão clássicos e desconhecidos, dispostos nestas páginas de formapropositadamente aleatória. A qualidade dos poetas e dos poemas exigia igual rigor na escolha das receitas culinárias, razão pela qualelas foram entregues a alguns dos maiores magos da actual cozinha lusófona. Com as asas próprias dos artistas– e eles são-no, de pleno direito - inspiraram-se nos poemas que receberam como desafio, deixando-se contagiar pelo espírito e ambiente das palavras, e, acrescentando-lhes rasgo e técnica, enriquecerameste livro com as suas extraordinárias criações. Para todos eles vai o meu segundo agradecimento, bem como a minha deleitada admiração. Um justíssimo destaque para José Avillez, primus inter pares, que desde a primeira hora abraçou esta ideia e lhe deu o seu valioso apoio. O meu terceiro agradecimento dirige-se a todos os artistas plásticos que, com as suas obras de arte, adicionaram forma e cor a esta aventura sensorial e assim a engrandeceram excepcionalmente. O universo de selecção foi o mesmo que para poetas e cozinheiros: os países de língua portuguesa como nacionalidade dos artistas. Dos clássicos e tradicionais bodégons à expressão livre do abstraccionismo contemporâneo, da pintura à escultura, passando pela cerâmica, estas obras são o perfeito contraponto para poemas e receitas. Aos prefaciadores Astrid Cabral e Nuno Júdice, a minha gratidão pelo privilégio que representam para este livro as suas palavras, tão belas quanto generosas. Devo também um agradecimento muito especial a José Bento dos Santos, profundo conhecedor dos segredos e da história da gastronomia, e, na sua pessoa, à Academia Portuguesa de Gastronomia, pela atribuição de um prémio à forma inicialdeste livro. Foi uma honra que muito me tocou. Agradeço igualmente à Casa Fernando Pessoa, pela honrosa chancela. Last but never the least, o meu comovido “obrigada” à incansável, divertida e talentosa equipa feminina com quem embarquei nesta aventura de editar um livro no Brasil: Renata Lima, fada-madrinha deste projecto transatlântico, cuja varinha mágica tudo consegue e tudo resolve. Sem o seu precioso contributo, nada disto teria sido possível. Fernanda Carvalho, responsável pela pesquisa iconográfica, cuja sensibilidade e bom gosto juntaram o luxo das imagens ao meu casamento de poemas e receitas, conferindo ao conjunto, além de uma beleza adicional, o toque picante de um triângulo amoroso. Heloisa Faria e Elisa Janowitzer, com mestria e originalidade, coreografaram os delicados bailados nupciais de letras, paladares e imagens, assinando um projecto gráfico que tão bem exprime o espíritoque presidiu a este livro. Luciana Fróes, sábia viajante pelo olimpo alquímico dos sabores e aromas domundo – imagino-a facilmente como uma discípula de Brillat-Savarin, embrenhada nas suas Méditationsde Gastronomie Transcendante – que foi a nossa preciosa ponte com a nata dos chefs do Brasil. A excelência do contributo de cada uma destas parceiras de elite acrescentou a estas páginas um inestimávelvalor. A comunicação entre nós foi tão fácil que, logo desde o início, esqueci a distância de umoceano entre nós. Foi um verdadeiro prazer trabalhar convosco, amigas! Quanto ao título, surgiu-me com a maior das naturalidades: a proclamação apaixonada de NatáliaCorreia, na sua “Defesa do poeta”, não poderia ser mais apropriada e consentânea com o espírito do livro. Faço minhas as suas palavras: a poesia é para comer, sim. É alimento vital, calórico e energético, que nos deixa lambuzados os dedos da alma, e a chorar por mais. É um alimento tão precioso e essencial comoo que damos ao corpo. E, tal como esse, igualmente perigoso: se mal usado, pode matar-nos de fartura enquanto nos promete a vida eterna. Finalmente, permito-me convocar, como lema para este livro, o espírito de harmonia universal desenhado pelo poeta Thiago de Mello, querido amigo de além-mar, nos seus memoráveis Estatutos do Homem:
Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usara couraça do silêncio nem a armadura das palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.
Excerto retirado da Introdução do livro A poesia é para comer - Iguarias para o corpo e para o espírito de Ana Vidal, Editora Babel (2006).