A Poesia não é um luxo - Pré-Publicação de "Irmã Marginal"
ÍNDICE
A tradução não é um luxo 7 Gisela Casimiro
IRMÃ MARGINAL
Notas de uma viagem à Rússia 25
A poesia não é um luxo 57
A transformação do silêncio em linguagem e acção 65
Arranhar a superfície: algumas notas sobre 73 os obstáculos às mulheres e ao amor
Usos do erótico: o erótico como poder 87
Sexismo: uma doença americana em blackface 99
Uma carta aberta a Mary Daly 109
Homem criança: a resposta de uma lésbica feminista negra 119
Uma entrevista: Audre Lorde e Adrienne Rich 133
As ferramentas do amo nunca irão desmantelar a casa do amo 175
Idade, raça, classe e sexo: as mulheres redefinem 183 a diferença
Os usos da raiva: as mulheres respondem ao racismo 201
Aprender com os anos 219
Olhos nos olhos: as mulheres negras, o ódio e a raiva 239
Granada revisitada: um relatório provisório 285
A POESIA NÃO É UM LUXO
A qualidade da luz pela qual escrutinamos as nossas vidas influencia directamente o modo por que vivemos e as mudanças que esperamos operar através dessas vidas. Assim embrenhadas nesta luz, formamos as ideias pelas quais lutamos para concretizar a nossa magia. Isto é a poesia como iluminação, pois é através da poesia que nomeamos as ideias que são – até ao poema – inominadas e informes, prestes a nascer, mas já sentidas. Esse destilar da experiência em que nasce a verdadeira poesia dá à luz pensamento, como o sonho dá à luz o conceito, como o sentimento dá à luz a ideia, como o conhecimento dá à luz (antecede) o entendimento.
Conforme aprendemos a suportar a intimidade do escrutínio e a nele florescer, conforme aprendemos a usar os resultados desse escrutínio para fortalecer a nossa existência, os medos que nos dominam as vidas e nos compõem os silêncios começam a perder o controlo que exercem em nós.
Em cada uma de nós, mulheres, há um obscuro lugar interior onde, oculto e crescente, o nosso verdadeiro espírito ascende «belo/ e resistente como castanhas/ pilares contra o teu, o nosso pesadelo de fraqueza1» e de impotência.
Estes lugares de possibilidade em nós são obscuros porque são antigos e escondidos: sobreviveram e fortaleceram‐se nesta escuridão. Nestes lugares profundos, cada uma de nós guarda uma incrível reserva de criatividade e poder, de emoção e sentimento por examinar e registar. O lugar de poder da mulher em cada uma de nós não é branco nem superficial: é escuro, é ancestral e é profundo.
Quando consideramos viver à maneira europeia um problema a resolver, baseamo‐nos somente nas nossas ideias para nos libertarmos, pois foi o que os missionários brancos nos disseram ser precioso.
No entanto, conforme vamos tendo mais contacto com a nossa própria consciência de vida, ancestral e não‐europeia, como situação a experienciar e com a qual interagir, aprendemos cada vez mais a valorizar os nossos sentimentos, e a respeitar as fontes ocultas do nosso poder de onde surgem o verdadeiro conhecimento, logo a acção duradoura.
Neste momento, acredito que nós, mulheres, carregamos em nós a possibilidade de fusão destas duas abordagens tão necessárias à sobrevivência, e que é na nossa poesia que mais nos aproximamos desta combinação. Falo aqui da poesia como destilação reveladora da experiência, não o mundo estéril dos jogos de palavras que, com demasiada frequência, os missionários brancos usaram para distorcer o significado da palavra «poesia» – de modo a mascarar um desejo desesperado por imaginação sem discernimento.
Para as mulheres, a poesia não é, pois, um luxo. É uma necessidade vital da nossa existência. Forma a qualidade da luz pela qual manifestamos as nossas esperanças e sonhos no sentido da sobrevivência e da mudança, tornando‐os primeiro linguagem, depois ideia, e depois acção mais tangível. A poesia é o modo como nomeamos o inominado para que possa ser pensado. Os horizontes mais longínquos das nossas esperanças e medos são calcetados pelos nossos poemas, esculpidos na experiência rochosa do nosso quotidiano.
Uma vez conhecidos e aceites por nós, os nossos sentimentos e a sua exploração honesta tornam‐se santuários e terrenos férteis para a mais radical e ousada das ideias. Tornam‐se abrigo da diferença tão necessária à mudança e conceptualização de qualquer acção significativa. Neste preciso momento, poderia nomear pelo menos dez ideias que achei intoleráveis ou incompreensíveis e assustadoras, excepto quando me chegaram em sonhos e poemas. Não é mera fantasia, mas atenção disciplinada ao verdadeiro significado de «isto parece‐me bem». Podemos treinar‐nos a respeitar os nossos sentimentos e transpô‐los para uma linguagem que permita partilhá‐los. E, quando essa linguagem ainda não existe, é a nossa poesia que ajuda a criá‐la. A poesia não é mero sonho e visão: é o alicerce arquitectónico das nossas vidas. Lança as fundações de um futuro de mudança, ponte que nos atravessa os medos do que nunca foi antes possível.
A possibilidade não é eterna nem momentânea. Não é fácil suster a crença na sua eficácia. Podemos por vezes trabalhar longa e arduamente para estabelecer uma cabeça‐de‐praia de verdadeira resistência às mortes que se espera que vivamos, só para que essa cabeça‐de‐praia seja invadida ou ameaçada pelos falsos boatos que fomos socializadas a recear, ou pela escassez das validações que fomos aconselhadas a procurar por segurança. As mulheres vêem‐se diminuídas ou amainadas pelas acusações falsamente benignas de infantilidade, de não‐universalidade, de mutabilidade, de sensualidade. E quem formula a seguinte pergunta: estou a alterar a tua aura, as tuas ideias, os teus sonhos, ou estou só a deslocar‐te para a acção temporária e reactiva? E mesmo que não seja tarefa fácil, deve ser vista no contexto de uma necessidade de verdadeira mudança das próprias fundações das nossas vidas.
Os missionários brancos disseram‐nos: penso, logo existo. A mãe negra em cada uma de nós – a poeta – sussurra‐nos nos sonhos: sinto, logo posso ser livre. A poesia cria a linguagem para expressar e representar esta demanda revolucionária, a concretização dessa liberdade.
Não obstante, a experiência ensinou‐nos que a acção no presente é necessária, sempre. Os nossos filhos só podem sonhar se viverem, só podem viver se forem nutridos, e quem mais irá alimentá‐los do verdadeiro alimento sem o qual os seus sonhos não serão diferentes dos nossos? Grita a criança: «Se querem que um dia mudemos o mundo, temos pelo menos de viver o suficiente para crescermos!»
Por vezes inebriamo‐nos dos sonhos de novas ideias. A cabeça vai salvar‐nos. O cérebro por si só vai libertar‐nos. Mas não há novas ideias à espera nos bastidores para nos salvar enquanto mulheres, enquanto seres humanos. Existem só as ideias antigas e esquecidas, novas combinações, extrapolações e constatações no nosso íntimo – com a coragem renovada de as testar. E devemos encorajar‐nos constantemente umas às outras a tentar as acções heréticas que os nossos sonhos implicam, e que tantas das nossas ideias antigas desdenham. Na vanguarda do nosso movimento rumo à mudança, só a poesia roça a possibilidade tornada real. Os nossos poemas formulam as implicações de nós mesmas, o que sentimos por dentro e nos atrevemos a realizar (ou à luz do qual mobilizar): os nossos medos, as nossas esperanças, os nossos terrores mais acalentados.
Nas estruturas vigentes definidas pelo lucro, pelo poder linear, pela desumanização institucional, os nossos sentimentos não estavam destinados a sobreviver. Mantidos como acessórios inevitáveis ou agradáveis passatempos, dos sentimentos esperava‐se que se submetessem perante o pensamento, como das mulheres se esperava que se submetessem perante os homens. Mas as mulheres sobreviveram. Enquanto poetas. E não existem novas dores. Já as sentimos antes. Escondemo‐las no mesmo lugar onde escondemos o nosso poder. Emergem‐nos dos sonhos, e são os nossos sonhos que indicam o caminho da liberdade. Estes sonhos são concretizáveis pelos nossos poemas, que nos dão a força e a coragem para ver, sentir, falar e ousar.
Se se reduz a luxo o que precisamos para sonhar, para conduzir os nossos espíritos mais profunda e directamente rumo à promessa e através dela, abdicamos do âmago – da fonte – do nosso poder, da nossa feminilidade: abdicamos do futuro dos nossos mundos.
Pois não há ideias novas. Há apenas novas formas de as fazer sentir – de examinar o que essas ideias transmitem quando vivenciadas num domingo às sete da manhã, após o brunch, durante a loucura do amor, a guerra, o parto, a chorarmos os nossos mortos – enquanto sofremos os velhos anseios, batalhamos contra os velhos avisos e medos de ficarmos caladas, impotentes e sós, enquanto saboreamos novas possibilidades e forças.
TÍTULO ORIGINAL
Sister Outsider
AUTORA
Audre Lorde
TRADUÇÃO E PREFÁCIO
Gisela Casimiro
REVISÃO
Nuno Quintas | oficinacaixaalta.pt
CONCEPÇÃO GRÁFICA
Rui Silva
PAGINAÇÃO
Rita Lynce
IMPRESSÃO
Guide – Artes Gráficas
COPYRIGHT
© 1984, 2007 Audre Lorde © 2023 Orfeu Negro
1.a EDIÇÃO
Lisboa, Novembro 2023
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- 1. Versos do poema «Black Mother Woman», publicado originalmente em From a Land Where Other People Live (Detroit, Broadside Press, 1973), e coligido na antologia Chosen Poems: Old and New (Nova Iorque, W. W. Norton and Company, 1982), p. 53.