A presença africana

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Vou deixar de alimentar o burro

Agora que o meu camelo está crescido

Poema popular wolof

 

I

GANA

Um turista americano na Europa, anda, frequentemente, à procura de monumentos: catedrais e palácios, túmulos importantes, todo um conjunto de nomes e rostos conservados pela arquitectura da história. Folheia o seu guia a fim de prestar uma homenagem pessoal às ruas, quartos e restaurantes que sobreviveram aos homens que os tornaram famosos. Reclama uma parte desse património e, muito antes de chegar, as suas reacções já estão de certa forma determinadas por esse sentimento de expectativa. Descende de homens cuja emigração do continente europeu resultou de um acto de livre vontade e cuja memória ainda se mantém viva pela forma muito própria com que olham o mundo. A Europa nada acrescenta ao seu problema de identidade.

Samuel Fosso, Untitled, 1998.Samuel Fosso, Untitled, 1998.

Um negro das Caraíbas que empreenda uma viagem semelhante a África está menos seguro. A sua relação com esse continente é mais pessoal e mais problemática. Mais pessoal, porque as suas actuais condições de vida e o seu estatuto como homem indicam claramente as razões que levaram os seus antepassados a abandonar aquele continente. Essa emigração não foi um acto voluntário, foi uma deportação comercial cujas consequências deixaram marcas profundas em todos os aspectos da vida das Caraíbas. Estas consequências sentem-se de um modo mais profundo na sua vida pessoal e na sua relação com o ambiente que o rodeia: as políticas raciais e coloniais que constituíram o fundamento e o marco da sua passagem da infância à adolescência. A sua relação com África é mais problemática, porque ao contrário do Americano, ninguém lhe deu a conhecer a história desse continente. Da sua formação não constou qualquer leitura que possa consultar, tal guia, aos reinos perdidos de nomes e lugares que dão à geografia um significado humano. Sabe-o através de rumores e mitos ensombrados pela tutela estrangeira. E, a pouco e pouco, através da acção condicionadora da sua formação, começa a identificar-se com o medo: o medo desse continente como um mundo para além da intervenção humana. Sendo, em parte, um produto desse mundo, vivendo sob a ideia do seu desfiguramento no passado, o Negro caribenho parece ter relutância em reconhecer a sua parte neste legado que é seu património.

Por isso, durante o voo de Londres para Acra, ia tentando reunir os fragmentos dos meus primeiros anos de escola; tentando lembrar-me do momento em que, pela primeira vez, ouvira a palavra África e das emoções que ela em mim provocara. Lembrei-me como, com oito ou nove anos, ouvira o director da minha escola primária pronunciar-se com alguma veemência sobre a Etiópia. Parecia zangado. Estávamos a 24 de Maio e o inspector escolar inglês viera entregar prémios. Ninguém nos explicou o que era realmente a Etiópia. Não havia mapas na sala que nos permitissem localizar esse país no mundo. Alguns de nós pensaram que poderia tratar-se do nome cristão de um leão cujo apelido seria Judá. O nome Judá fazia mais sentido, uma vez que a Bíblia fazia parte do nosso abecedário.

Eram estes fragmentos de rumor e fantasia que ia tentando reunir durante o voo. Mas as viagens de avião não nos deixam muito tempo para reflexões deste género e, quando avistei a terra, plana, seca e vazia, percebi que nem sequer tinha quaisquer ideias preconcebidas. Nem estava preparado, ao sair do aeroporto, para o meu primeiro choque com a familiaridade.

Era meio-dia. Indiferente ao calor estupidificante de Acra, uma procissão obediente de escuteiros chegara para dar as boas vindas a um qualquer dignitário inglês. Desempenharam o seu papel de boas vindas com uma postura incrivelmente correcta. Era exactamente como, quando, numa aldeia nas Caraíbas, as crianças são convocadas para celebrar uma ocasião importante. Nem os empregados de mesa, nem os meus amigos conseguiam agora que desviasse a minha atenção do militarismo eficiente daqueles rapazinhos. Os membros eram firmes como aço, ou moles como água, consoante as ordens a que haviam sido treinados a obedecer. Os rostos abriam-se em gargalhadas, quando uma voz os autorizava a ficar à-vontade. Mas, em poucos segundos, os músculos voltavam a retesar-se, os sorrisos apagavam-se e os olhos tornavam-se fixos e sinistros como facas. O sol não conseguia deixar qualquer vestígio na sua pele. Quando o vento soprava, os lenços verdes e amarelos esvoaçavam à volta dos seus pescoços como chamas, tal delírio de um prisioneiro ansiando por ser libertado.

Identificavam-se completamente com o papel que tinham ensaiado para esse dia. Foi uma experiência profundamente marcante, pois revi-me em todos os detalhes por eles vividos. Voltei a recordar-me do antigo director da escola primária, lembrando ao inspector inglês o nome do leão que vivia algures neste continente. A experiência foi mais profunda e marcante do que a impressão deixada pela frase: ‘também éramos assim’. Não se tratava apenas da memória da minha pessoa e da minha aldeia, no tempo em que era da idade daqueles rapazes. Tal como a cerimónia do funeral do rei, era um exemplo de hábitos e história reencarnados naquele momento. Era como se a cerimónia haitiana das almas, se tivesse tornado real: como se tivesse ocorrido uma ressurreição de vozes simultaneamente familiares e desconhecidas.

O chefe dos escuteiros inglês era um homem frágil, magro, amável e muito surpreendido. Não reparara nele no avião; pois naquele canil barulhento éramos todos carga anónima. Mas agora era impossível evitá-lo. Tentava manter um sorriso, mas logo o sol lhe cerrava os dentes, lembrando-lhe que aquele calor não era motivo para riso. Parecia bastante surpreendido; não se sabe se por reconhecer a insensibilidade dos rapazes às condições climatéricas, se face ao enorme choque da sua própria importância na presença deles.

Samuel Fosso, Le Chef, 1997.Samuel Fosso, Le Chef, 1997.

Em pouco tempo, estava tudo acabado: um breve discurso de boas vindas, a réplica, a saudação final e a cerimónia terminou. Os rapazes esqueceram o uniforme e transformaram o lugar numa festa de escuteiros. Corriam em todas as direcções, dirigindo-se às camionetas, de onde o público da aldeia, provavelmente suas tias e seus primos, tinham assistido à sua actuação. Falavam todos ao mesmo tempo. As suas vozes tiniam como metal e as suas mãos eram como batutas dirigindo a louca cacofonia das suas discussões. Não era possível compreender como um ritual tão inofensivo como a recepção de um chefe de escuteiros inglês podia agora produzir um coro de discórdia tão aterrador.

Porque discutiam? Ou de que se regozijavam? Era difícil distinguir os ruídos de guerra dos ruídos de paz. Dirigi-me ao meu amigo caribenho para lhe perguntar o que se passava. Sorriu e subitamente compreendi o significado daquele sorriso e a razão daquele barulho estridente. Nenhum de nós conseguia perceber uma palavra do que os rapazes diziam. O chefe de escuteiros inglês também não. Foi nesse momento que a diferença entre a minha infância e a deles se tornou absolutamente evidente. Não tinham qualquer dívida de vocabulário para com Próspero. O Inglês correspondia a uma maneira de pensar que conseguiam dominar, quando a situação assim o requeria, mas as suas paixões eram exprimidas a um ritmo diferente.

‘Estão a falar Fanti e Ga,’ disse N.

‘E isso significa que, se souberes Fanti, também sabes Ga?’

Estava a ter a minha primeira lição sobre a magia das línguas.

‘Não necessariamente,’ respondeu N., ‘mas o que muitas vezes acontece é o seguinte: quando falo contigo em Fanti, tu respondes-me em Ga e, embora, eu não fale Ga e tu não fales Fanti, algures no meio, compreendemos o sentido.’

Sentado na varanda do hotel do aeroporto, revivi, por alguns momentos, os problemas que tivera com os uniformes escolares, para logo os esquecer. Pouco depois, dei por mim a falar sozinho, sem que ninguém me ouvisse, repetindo instintivamente a mesma revelação maravilhosa: ‘Mas o Gana é livre,’ pensava, ‘um Estado livre e independente.’ Implícita, nesse silêncio, estava a consciência aguda de que as Caraíbas não o eram. E, enquanto tomávamos a nossa primeira bebida, N. e eu concordámos que o Gana nos ajudava a reduzir o nosso sentimento de vergonha.

A tarde foi, à sua maneira, uma espécie de emergência. Acra parecia um lugar inacabado: havia andaimes por todo o lado, crateras abertas resultantes de demolições recentes, estradas em reparação, edifícios novos em folha à espera de serem inaugurados. Não era possível detectar com precisão os contornos da cidade, nem tão pouco saber onde era o centro, porque toda a cidade estava em processo de construção. Era como um estaleiro centrado na sua actividade. A impressão que se tinha era de que se estava em permanente mudança. Daqui a um ano, já não seria possível reconhecê-la. O Gana encontrava-se em febre de construção: estradas, escolas, portos e hospitais. A meu ver, isto faz parte do sentimento de liberdade.

Os nomes, que não tinham nem mais um dia do que o actual governo, evocavam um momento histórico recente: Rotunda Nkrumah, Avenida da Independência. E o busto do primeiro-ministro, em tamanho natural, dominava a entrada da Casa da Assembleia, com a sua inscrição premente: ‘Procurai em primeiro lugar o reino político.’

 

(…)

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MALHAS QUE OS IMPÉRIOS TECEM. TEXTOS ANTI-COLONIAIS, CONTEXTOS PÓS-COLONIAIS 2

Índice

Manuela Ribeiro Sanches, Viagens da teoria antes do pós-colonial

Agradecimentos

I – Viagens transnacionais, afiliações múltiplas

W. E. B. Du Bois, Do nosso esforço espiritual

Alain Locke, O novo Negro

Léopold Sédar Senghor, O contributo do homem negro

George Lamming, A presença africana

C. L. R. James, De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro

Mário de (Pinto) Andrade, Prefácio a Antologia Temática de Poesia Africana

II – Poder, colonialismo, resistência trans-nacional

Michel Leiris, O etnógrafo perante o colonialismo

Georges Balandier , A situação colonial: uma abordagem teórica

Aimé Césaire, Cultura e colonização

Richard Wright, Tradição e industrialização

Frantz Fanon, Racismo e cultura

Kwame Nkruhmah, O neo-colonialismo em África

Eduardo Mondlane, A estrutura social – mitos e factos

Eduardo Mondlane,  Resistência - A procura de um movimento nacional

Amílcar Cabral, Libertação nacional e cultura

 

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  • 1. “The African presence”, The Pleasures of Exile, London, Pluto Press, (2005) [1960], pp. 56-85. Tradução de Marina Santos. Revisão de Maria José Rodrigues e Manuela Ribeiro Sanches.
Translation:  Marina Santos

por George Lamming
Mukanda | 31 Maio 2011 | África, Caraíbas, Gana, identidade, turista