Excertos do Livro “Prisão Política”
As editoras Elivulu (Angola) e Perfil Criativo (Portugal) no seguimento da publicação de várias edições dedicadas à questão da memória colectiva de Angola, publicaram em 2021 o diário de cárcere de um jovem preso político angolano, Sedrick de Carvalho, do processo conhecido como 15+2, que nos revela os bastidores da sua detenção, prisão e julgamento.
I Capítulo: A Detenção e Os Dias na Esquadra
– Meus senhores, DNIC. Ninguém se mexa. Baixem as cabeças. Não estão a ouvir? Baixem as cabeças! – ordenou um funcionário do SIC que, na altura, provavelmente pelo hábito, ainda chamou o organismo agregado ao Ministério do Interior pela antiga denominação.
Os agentes apontavam muitas armas para as nossas cabeças. A postura deles era a de homens manietados, parecendo bonecos com cordas nas mãos e nos pés. Estávamos na Vila Alice, no distrito urbano do Rangel, em Luanda. Eram 13 horas e poucos minutos. Na ocasião, julgava que éramos apenas uns nove ou dez jovens em mais uma sessão de debates sobre técnicas de luta não-violenta na sala do Instituto Luandense de Línguas e Informática (ILULA), pertencente ao Sr. Alberto Neto, ex-membro do MPLA e candidato a Presidente da República, em 1992.
Lembro-me de que, quando os agentes chegaram, um deles passou logo pela sala onde nos encontrávamos. Parecia perdido. Do lugar em que me sentara, eu via nitidamente quem passava pelo quintal, visto que a porta da sala estava aberta. Ficava sempre aberta, para ser exacto. O que disse as palavras acima ainda hesitou antes de entrar. Pensei que talvez estivesse perdido e precisasse de alguma informação, por isso levantei e me dirigi para ele. Não estava perdido. Apenas parou o tempo suficiente para dizer aos outros agentes:
– Aqui estão eles.
Repentinamente, entrou na sala e empurrou-me pelo peito.
II Capítulo: O Campo de Concentração de Calomboloca
– Meus senhores, sejam bem-vindos! Se vocês se comportarem, não teremos problemas – anunciou o director da cadeia de Calomboloca, subcomissário prisional Agostinho Diogo, quando chegámos ao estabelecimento prisional.
Mas recuemos um pouco para a manhã de sábado na esquadra da Fubu. Talvez fossem 10h do dia 27, quando a minha esposa chegou com alimentação e roupa limpa. Eu tinha acordado cedo e fizera algumas flexões para disfarçar o meu ânimo descaído. O graduado de serviço já me tinha dito que a Neusa estava ali, e só esta informação me deixou bem disposto, porém disse-lhe que precisava ainda de confirmar com os superiores se eram permitidas visitas. Enquanto aguardava, ela foi encaminhada para perto da cela para assistir apenas à entrega da alimentação. Vesti a camisola que me tinham levado na quarta-feira e meti num saco a camisa branca com que fui detido. Estava bastante suja e com as manchas de sangue que não descobri de onde saíram.
Um veículo entrou no quintal da esquadra. Os rostos já me eram conhecidos – agentes do SIC, novamente. Fiquei apreensivo.
– Que mais querem esses tipos? – perguntei-me.
III Capítulo: No Hospital-Prisão de São Paulo
Era Outubro, numa noite de sexta-feira, por volta das 22 horas, já todas as portas fechadas e o silêncio obrigatório decretado, um agente aproximou-se da nossa cela e, pela grade, chamou pelo meu nome. Não me levantei.
– O OSA disse para te preparares porque foste requisitado – disse.
Levantei-me. Olhei pela abertura da porta e vi homens do DESP, que nunca tinham sido vistos naquela prisão. Perguntei por quem e para onde. Não sabia, alegadamente. E, se era para levar as minhas coisas, também não sabia. Parecia não saber o que se passava e desconhecia os agentes que os acompanhava.
– Arruma as coisas básicas. Daqui a pouco voltamos – retiraram-se.
Mabiala ainda estava acordado. Sorrateiramente, começámos a falar, tentando perceber aquela requisição nocturna e tão imprecisa. Preparei-me para o pior. Podendo ser o momento da execução, retirei da Bíblia o papelinho que continha o número de telemóvel da Neusa. Coloquei no bolso da calça.
«Se me matarem e atirarem o corpo para alguma mata ou rua, pelo menos alguém encontrará um número para contactar. Se for ao rio, espero que os jacarés não comam o papel e a água não apague totalmente o número», pensava.
O meu «compuna» – calão para companheiro de cela – acreditava ser uma transferência para o Hospital-Prisão de São Paulo. A partir do posto médico, sabia que todos os meus companheiros de processo estavam já naquela prisão, à excepção dos que permaneciam em Calomboloca, três apenas.
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Autor: Sedrick de Carvalho / Editora: Elivulu Editora | Perfil Criativo - Edições
Disponível: Autores.Club: https://shop.autores.club/pt/inicio/314-prisao-politica.html
Wook: https://www.wook.pt/livro/prisao-politica-sedrick-de-carvalho/25710499