MARIA AMPÁ

GUINÉ-BISSAU, 2011

A Mariama Bâ, sempre.


OS TEMPOS SÃO NOVOS JÁ SABEMOS. SENTIMO-LO. MAS OS TEMPOS SÃO VELHOS TAMBÉM, DIZ-NOS O ANJO DA HISTÓRIA. CONHECEMOS AS NOSSAS VITÓRIAS E AS NOSSAS DERROTAS. PODEMOS VIAJAR NO TEMPO ATÉ ÀS BARRICADAS E AOS MUROS DE FUZILAMENTO, ÀS RUAS E ÀS TERRAS OCUPADAS, PODEMOS DISCUTIR COM ESTE OU AQUELE CADÁVER OS DETALHES DO SEU PENSAMENTO E DO SEU DESEJO DE VIVER LIVRE. SE HÁ COISA QUE NÃO PODEMOS HOJE É INVOCAR IGNORÂNCIA, INGENUIDADE, AFIRMAR QUE NÃO ESTAMOS PREPARADOS, QUE DESCONHECEMOS O QUE ESTÁ POR VIR.

O TEMPO PASSA E A HISTÓRIA DESDOBRA. HÁ DEZ ANOS, TALVEZ HÁ VINTE OU MESMO TRINTA, QUE É ANUNCIADA UMA CRISE NA ACUMULAÇÃO DO CAPITAL. NOS ÚLTIMOS ANOS, A REALIDADE GANHOU UM CERTO TIPO DE REALISMO: OS PATRÕES DEIXARAM DE QUERER PAGAR SALÁRIOS, O ESTADO SOCIAL É CONSIDERADO DESNECESSÁRIO E A POLÍCIA VOLTOU A DISPARAR. HÁ MAIS DE DEZ ANOS, TALVEZ HÁ VINTE, COMEÇARAM A ACONTECER COISAS INTERESSANTES: OS ZAPATISTAS ENFIARAM UM PASSAMONTANHAS QUE NÃO MAIS SAIU DAS RUAS.

NÃO É A FATIGADA GUERRILHA QUE TORNA, ANTES O RENASCIMENTO DA DISSIDÊNCIA E DA NEGAÇÃO NOS NOSSOS-NOVOS-VELHOS-TEMPOS.

 

A estrutura hierárquica e o centralismo democrático nunca tiveram muita graça. Para mais, os partidos e os sindicatos estão hoje plenamente integrados na máquina produtiva, são peças chave na reprodução social do capitalismo e do poder. Mas o esgotamento foi mais longe: o que é hoje uma associação ou uma cooperativa? O que é uma casa do povo ou uma colectividade desportiva? Para que servem? Mais longe ainda: a inoperância e aborrecimento da militância, do activismo, dos guetos políticos e do movimento consumaram a impossibilidade de cooperação, de estar junto. Já não sabemos como fazer. Estamos paralisados. Ou rarefeitos.


A dificuldade de nos constituirmos como contra-poder é inseparável das derrotas acumuladas no último século. Tudo o que foi vivido, todo o saber produzido nos momentos revolucionários está congelado à espera do olhar do anjo da história. Todas as FORMAS experimentadas se fragmentaram e ocultaram sob a poeira do avanço rigoroso da civilização democrática.

 

Voltou o rosto para o passado. A cadeia de factos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já as não consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval.

 

Como reaver uma certa efectividade nos gestos dissidentes? Como construir um comum que se levanta? De que forma? O recuo do império é inseparável da potência do contra-poder.

 

O CONTRA-PODER É CONTRA O PODER; canção taoista.

 

O renascimento, o iluminismo, a revolução francesa e a burguesia nunca deixaram de inventar o indivíduo: deram-lhe propriedades e colocaram-no no centro do mundo. O romantismo, o niilismo, o existencialismo e os anarquistas deram-lhe asas. O liberalismo, a psicanálise e o espectáculo esvaziaram-no: inventaram o eu, depois o ego e de seguida infelizes epopeias pessoais. O centro da galáxia deixou de ser a TERRA para a passar a ser o SOL para passar a ser o EU.

 

Não é preciso um ano para que praticamente todas as células do corpo se renovem. Morrem e aparecem outras feitas de minerais e átomos que estavam lá FORA. Três quartos do corpo é água que FLUI, pelo que no humano médio um mês deve chegar para a sua renovação completa. Os átomos que incontornavelmente nos constituem são feitos de nada, é verdade que está lá um núcleo minúsculo e um electrão varrido que anda às voltas - um núcleo do tamanho de um limão e os electrões mais afastados a orbitar a três quilómetros de distância. Espaço VAZIO acima de tudo. Nada perdura portanto, nada de material, de substantivo próprio, nada do qual possamos dizer: isto sou eu. Um corpo é um corpo, quem falou de essências purezas identidades almas?

 

O VERBO SER É UMA ARMADILHA BURGUESA. O VERBO ESTAR UMA ARMA REVOLUCIONÁRIA. 

 

O que há são processos, vontades, ligações, desejos, gostos, memórias. Processos de processos. Da microscopia à micropolítica, da geologia à geopolítica. Da memória do passado à vidência do futuro. E aquele indivíduo ali no espelho que me ama há tantos anos? E aquela inclinação histórica por bolas de Berlim e rapazes? São os processos e fluxos que constituem o MUNDO, nada mais e nada menos. Cristalizar a vida, galáxia de processos, em identidades é torná-la ideologia e assim sujeitar e reduzir corpos, pensamento, comunidade. Todos os processos sociais que devieram ideologia tomaram o nome histórico de barbárie. E claro que há vida no vivo, definindo vida como potência, impulso de auto-criação, organização autopoiética.

 

FIXA O TEU PONTO DE VISTA, POIS TUDO O RESTO SE MOVE; lema publicitário.

 

Sempre que uma luta ou corpo de pensamento se transmuta em ideologia é sinal de que os estamos a perder. Não é uma lei mas todos conhecemos as diferenças entre o levantamento anarquista espanhol de 1936 e um colectivo anarquista em tempos de recuo. Todos conhecemos as diferenças entre um partido comunista e a revolução russa de 1917.


Podemos, talvez, continuar a chamar INDIVÍDUO à zona de maior densidade do conjunto nebuloso e complexo de processos, com as suas propriedades e intensidades, que converge para determinado corpo e dizer, por fim, eu sou uma nuvem voltei a perder o meu bilhete de identidade.

 

Não é novidade para ninguém que a identidade ocupa o centro do dispositivo de controlo social. Por parte de uma organização chamada State, da sociedade mercantil e da clínica. Aquele que mantiver o seu nome próprio por mais de duas vezes será doravante mercadoria. A invisibilidade surge então, em paradoxo, como meio de salvaguarda de existências e de crítica do sujeito.

 

A primeira tarefa histórica do insurrecto é a dissolução do eu. BE WATER, MY FRIEND.

 

Há, por toda a parte, uma falsa oposição entre colectivo e indivíduo que gera contudo separações verdadeiras. Uns partiram do múltiplo para chegar ao que lhe é comum, outros partiram do único para descobrir a diferença. E que não nos surpreenda ver a enciclopédia do tempo histórico reduzida a uma tautologia. Uma proposta para a superação dicotómica: na matilha cada um permanece só, estando no entanto com os outros, por exemplo os loboscaçadores, cada um efectua a sua própria acção ao mesmo tempo que participa do bando. Quando a matilha cerca o fogo, cada um poderá ter vizinhos à direita e à esquerda, mas as costas estão livres, as costas estão expostas à natureza selvagem.

 

A guerra civil fornece uma forma contra o impasse: todos contra todos, fazer alianças, nomear o inimigo. Por guerra civil entendese o debate sem tréguas, onde todas as posições são irredutíveis mas sintetizáveis. Por guerra civil entende-se a elaboração de estratégias comuns entre sensibilidades distintas e a tomada de posição. Entende-se a formação de alianças fraternas, momentâneas ou perenes, entre corpos que se estranham.

 

OPONHAMOS ÀS LÓGICAS DO PODER AS RESSONÂNCIAS DO AMOR, MAS SEM ROMANTISMOS NEM MERDICES; escrito na rua em Lisboa.

 

Falar, falar, nunca mais nos calarmos, partir pedra, agarrar alguém pelos colarinhos que está a fugir ao debate e a restabelecer identidades, folclorizar diferenças, dramatizar posições, organizar combates de boxes entre posições inconciliáveis, dizer a um anarquista que ele se comporta como um jovem comunista autoritário. A guerra civil como teatro da guerra.

 

LUBU KA TA TAKA LION MA ORA KI KI DUS I DJUNTU Ê TA MATA ONÇA; provérbio guineense.

 

Nos momentos de crise dos impérios, o senso comum tende a sofrer alterações muito rápidas e só aí a palavra emancipação ganha a possibilidade de estar em todas as cabeças. É preciso desejar a surpresa de recém-chegadas sensibilidades radicais para que a revolta não nos apanhe ciumentos, rancorosos e ultrapassados. A antiguidade e persistência de um percurso pessoal dissidente é um campo de forças e não uma cátedra moral. Sabemos ainda, para alívio de todos, que depois de uma semana de barricadas estamos todos nivelados pelas mesmas qualidades. Assim vai o tempo, dilata e comprime em função da velocidade.

 

Um levantamento generalizado nunca contará com uma maioria coesa em termos de estratégia e ideias. Será sempre um espaço de confronto entre sensibilidades distintas, mais ou menos organizadas. Não é por termos uma CNT-FAI hegemónica em 1936 em Barcelona, que a disputa foi menor sobre o que se devia ou não fazer. É nossa a opção: continuar a preferir cómodos refúgios grupusculares ou assumir a plena confrontação de ideias e a disputa dos acontecimentos no interior do presente histórico.

 

Não há pensamento e acção radical que não resultem da intensa conexão e apreensão dos fluxos que compõe o mundo. Proteger a autonomia com uma cúpula asséptica (o partido, o gueto político, a ideologia, a comunidade) é, pelo inverso, impedir o contágio do mundo pelo vírus da AUTONOMIA. Apenas na disputa das ruas e do imaginário, na fissuração do discurso dominante, a autonomia se pode constituir. Ela é a negação do mundo em actos.

 

A ALTIVEZ E A MODÉSTIA SÃO O YIN E YANG DOS REVOLTOSOS. A GREVE GERAL SELVAGEM POR TEMPO INDETERMINADO O SEU PROGRAMA.

 

A vanguarda persiste como hipótese. Alguns disseram que a civilização mercantil ergue-se sobre a cumplicidade de todos. Outros disseram que esperar por maiorias revolucionárias é a dupla armadilha da democracia. Não há remédio santo para a disseminação do contrapoder, mas alguma coisa aprendemos com o anjo da história: escolher a multiplicação em vez do crescimento, massificar a ilegalidade, nunca a concentrar, não criar exércitos, não ocupar castelos, confiar na assembleia mas abolir o centralismo democrático e as votações, como os lobos actuar em pequenos grupos ainda que a multidão seja imensa, desconstruir identidades, não representar ninguém, nem mesmo nós próprios, identidade = criminalidade. Que silêncio ensurdecedor emitiram os revoltosos dos subúrbios de Paris em 2005.

 

E se for na físico-química da água que se descobre uma filosofia da coexistência entre dissolução e ligação? Dissolução universal, múltiplos tipos de ligação, capilaridade contra gravítica, tensão superficial, mudança de estado e ponto triplo, calor sensível e calor latente, tudo isto é emancipação dentro de água.

 

 

Há uma genealogia da emancipação por fazer a partir da revisão das derrotas e dos derrotados da história, que nos permita aí encontrar, afinal, as vitórias específicas que alimentarão o nosso presente: bruxas queimadas, cristianismos refractários, comunismos sem estado, anarquias esquecidas, camponeses fora da história, náufragos atlânticos.

 

 

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QUANDO TODO O MUNDO FOR ANARQUISTA, POR ASSIM DIZER, ASSISTIREMOS A UMA INFLAÇÃO MULTIDIMENSIONAL DE TENDÊNCIAS, DE EXPERIÊNCIAS, DE COMUNAS, DE ESCOLAS RADICALMENTE DIFERENTES, E ISSO NÃO MAIS SUCESSIVAMENTE, MAS SIM SIMULTANEAMENTE.

EDIÇÃO E REVISÃO: Mosca Brabu
PAGINAÇÃO E CAPA: Sara Silva Santos
IMPRESSÃO: Gràfiques Trema
TIRAGEM: 100 exemplares
PRIMEIRA EDIÇÃO: Janeiro 2015

por Maria Ampá
Mukanda | 7 Novembro 2019 | anti-colonial, comunitário, dissidência, emancipação, físico-química, Guiné Bissau, libertário, Maria Ampá, processos, revolução, tempo