Marianne Keating

Marianne Keating é uma artista irlandesa radicada em Londres. Nos seus filmes e instalações, Keating analisa a relação entre a Irlanda e as Caraíbas, particularmente a Jamaica, no âmbito do Império britânico e da atualidade. Especificamente, Keating reflete acerca da história da diáspora irlandesa nas Caraíbas, amplamente desconhecida, e interroga o legado contemporâneo do estabelecimento dos irlandeses na região.

Keating examina a vaga de imigração da Irlanda para a Jamaica, então colónia britânica, ocorrida em meados do século XIX. Este fenómeno verificou-se no quadro da economia de plantação das Caraíbas, assente na industrialização da produção de açúcar, outrora conhecido como “ouro branco” (embora também sejam relevantes o cacau e o café). Esta economia de plantação desenvolveu-se com recurso a mão-de-obra escravizada, ancorada no tráfico negreiro realizado na esfera do comércio triangular do Oceano Atlântico.

A ida de irlandeses para a Jamaica começou em 1835, na sequência da abolição da escravatura no Império Britânico no ano anterior. Dada a libertação da comunidade escravizada, de origem africana, as herdades jamaicanas padeciam de uma força de trabalho tanto reduzida quanto reivindicativa, pois a população negra, agora emancipada, pugnava pela remuneração até então negada. Simultaneamente, as precárias condições de existência de um segmento significativo da população irlandesa nativa, de matriz católica, propiciaram o contexto ideal para o recrutamento de uma renovada força de trabalho para essas herdades jamaicanas por parte dos colonizadores britânicos.

Os colonos britânicos sujeitaram os irlandeses a um regime de indentura. Tal manifestava-se num contrato – assinado ou forçado – que vinculava o trabalhador a um empregador durante um determinado período, ao fim do qual ficava livre. O regime de indentura foi um sistema de servidão, na medida que pressupunha trabalhar em troca de viagem, abrigo e alimentação em vez de um salário.

A ida de irlandeses para a Jamaica, em regime de indentura, terminou em 1842. Tal deveu-se à ação movida por várias personalidades e entidades de natureza humanitária, nomeadamente integrantes do movimento abolicionista, que denunciaram o sistema de servidão subjacente ao processo migratório, sublinhando a sua reminiscência com a escravatura.

Nos seus filmes, Keating reúne uma variedade de materiais de arquivo (incluindo relatórios governamentais e fotografias), filmagens “encontradas” e extratos de fontes escritas (de ensaios sociológicos a artigos de jornal), tratados de modo não-sequencial. Keating complementa estes elementos com os seus próprios registos em vídeo, entrevistas e notas de investigação. A artista usa o texto como legenda ou voz-off para complementar a imagem e o som, sobrepondo informação para amplificar os pontos de vista apresentados. A sua abordagem à disjunção entre “documento” e imagem/som/texto “postos em ação” questiona a legitimidade da instância arquivística.

Marianne Keating, Landlessness, 2017. Crawford Art Gallery, 2019. Fotografia Jed NiezgodaMarianne Keating, Landlessness, 2017. Crawford Art Gallery, 2019. Fotografia Jed Niezgoda

Landlessness (2017) é uma das principais obras de Keating. Trata-se de uma dupla projeção de vídeo baseada em documentos depositados nos arquivos nacionais da Irlanda, Inglaterra e Jamaica. O guião traça o percurso de um grupo de trabalhadores indenturados irlandeses, entre um dos portos da costa ocidental da Irlanda e Freeman’s Hall, uma herdade em Trelawny, na costa norte da Jamaica.

Um ecrã mostra fragmentos da paisagem irlandesa, sobrepostas com legendas tiradas de um diálogo entre o pensador Alexis de Tocqueville e John Revans, membro de uma comissão de pobreza da Irlanda, realizado em 1835. Na sua conversa, explanam as raízes e manifestações da miséria na Irlanda do século XIX, identificando as suas origens na desigualdade colonial entre a população irlandesa nativa, de matriz católica, e os colonizadores britânicos, de índole protestante.

Paralelamente, o segundo ecrã mostra tomadas de vista do Oceano Atlântico e da Jamaica, sobrepostas com legendas tiradas de dois diálogos, um também de 1835 e o outro de 1841. Por um lado, John Russell, representante do governo britânico responsável por questões ultramarinas e migratórias, e H. Hendricks, fundador da Sociedade de Imigração da Índia Ocidental e representante da plantocracia jamaicana, explicam as suas razões para a renovação da força de trabalho das herdades jamaicanas com trabalhadores indenturados provenientes da Irlanda. Por outro lado, Charles Metcalfe, governador da Jamaica, e John Ewart, agente de imigrantes, debatem a complexidade de tal processo migratório, desde as complicações financeiras até ao descontentamento demonstrado pelos irlandeses recém-chegados à Jamaica. 

Outra obra importante de Keating é Better Must Come A New Jamaica (2019). Keating fez este vídeo monocanal com imagens que encontrou online, tiradas de documentários britânicos e jamaicanos e clips publicitários de turismo jamaicanos, e filmagens que ela própria executou na Jamaica. Keating mescla referências aos fundadores e líderes do sistema político bipartidário da Jamaica, Norman Manley e Alexander Bustamante – ambos descendentes de irlandeses – na antecâmara da independência da Jamaica em 1962. A artista segue a trajetória da “nova” Jamaica, particularmente o governo de inspiração socialista do filho de Norman Manley, Michael Manley, que foi primeiro-ministro da Jamaica entre 1972 e 1980 e entre 1989 e 1992.

Marianne Keating, Better Must Come - A New Jamaica, 2019. Crawford Art Gallery, 2019. Fotografia Jed NiezgodaMarianne Keating, Better Must Come - A New Jamaica, 2019. Crawford Art Gallery, 2019. Fotografia Jed Niezgoda

Uma luta entre Manley e o líder da oposição, o conservador Edward Seaga, ocorreu na eleição de 1976, quando Seaga foi supostamente apoiado pela Agência Central de Informação dos Estados Unidos da América numa operação para desestabilizar o governo de Manley, a fim de levá-lo ao poder. Este conflito resultou em violência política no país. A violência política na Jamaica cresceu em consequência da perda de poder por Manley, a favor de Seaga, na eleição de 1980, resultando em 844 assassinatos. A luta entre as ideologias antagónicas protagonizadas por Manley e Seaga tem vindo a moldar a sociedade jamaicana desde então.

Outros filmes ilustram aspetos da prática de Keating. Make the Economy Scream (2017) é um deles. O filme relata o incêndio de uma ala da Eventide Home for the Aged, um lar de terceira idade situado em Admiral Town, antes conhecida como Admiral Pen. Na década de 1840, este local era um centro de acolhimento de trabalhadores indenturados irlandeses, que aí se alojavam temporariamente. Numa entrevista, o jornalista e escritor Louis Wolf atribui à Agência Central de Informação norte-americana a responsabilidade por este acidente enquanto parte da sua suposta campanha para derrubar o governo de Michael Manley durante o final da década de 1970 devido aos seus ideais socialistas.

They Don’t Do Much in the Cane-hole Way (2019) constitui outro exemplo. Keating foca-se em Wilvie Balmer, uma professora aposentada descendente de trabalhadores indenturados irlandeses. Keating filma Balmer a discorrer acerca dos benefícios da vegetação que cresce à volta da sua casa, onde a sua família viveu desde a chegada à Jamaica na década de 1830.

Marianne Keating, Journey to Kings Valley, 2019. Still de vídeo.Marianne Keating, Journey to Kings Valley, 2019. Still de vídeo.

Journey to Kings Valley (2019) também constitui outro exemplo. Keating foca-se em Kings Valley, a herdade na qual os avós de Alexander Bustamante e Norman Manley trabalharam no século XIX. Hoje, a herdade está abandonada, apenas acessível através de densos campos de cana-de-açúcar por cultivar e, por isso, cobertos de vegetação. Keating filma dois habitantes locais a percorrer um caminho improvisado até às ruínas de Kings Valley.

Uma instalação, We Know Where We Are Going: Vol. I (2019), possui duas componentes: um disco de vinil que reproduz um discurso político proferido por Michael Manley em 1976; fotografias do território da Jamaica, em forma de diapositivo, que Keating fez ou adquiriu em mercados e online. Keating junta representações pessoais da paisagem idílica da Jamaica ao progresso social que Manley imaginou para o país.

Através da sua investigação, Keating acumula vestígios da presença irlandesa na Jamaica negligenciados pela historiografia ou desconsiderados pela memória coletiva, inserindo novas vozes na instância arquivística, até agora silenciosas. Ao fazer isto, a artista critica as construções de nacionalidade, colonialismo e identidade dominantes no Ocidente, produzindo uma alternativa às grandes narrativas que moldam a visão do mundo.

 

Texto escrito por ocasião da exposição de Marianne Keating comissariada por Miguel Amado para a RAMPA, Porto, enquanto diretor do Cork Printmakers, Irlanda.

por Miguel Amado
Mukanda | 18 Novembro 2019 | açúcar, colonização, indentura, Irlanda, Jamaica, migração, plantações