Mulheres negras e a força matricomunitária
O poder do feminino nas tradições africanas é milenar – e essas relações de pertencimento estão envoltas por valores ancestrais e sociais, pois os poderes de gestação não são somente para gestar a vida, mas estão também nas forças dinâmicas e propulsoras que movem as relações de todo um processo do comum, que organiza e propõe perspectivas de interrelações grupais. Essas dinâmicas instrumentam a existência comunitária e colocam as mulheres como força para gerir e gestar a vida e gerir e gestar as organizações ancestrais, sociais, econômicas e políticas de um povo, assumindo o papel de matrigeradoras e matrigestoras de uma comunidade.
Quando falamos em poder estamos falando de relações sociais de africanidade, estabelecidas com base em um coletivo socioancestral que baseia seus modos de vivência e experiência alicerçados nas tradições de um povo – tradições essas que buscam reforço e equilíbrio nos elementos da natureza como princípio básico de reorganização existencial. É por isso que é preciso compreender que nessas relações existe uma antropoteologia segundo a qual os seres humanos são considerados ontologicamente constituintes do sagrado, como ensina o filósofo Jayro Pereira de Jesus.
Nesse contexto, o poder do feminino, constituído na natureza e no corpo das mulheres, interliga-se com a parte masculina e, nesse encontro, produz a manutenção da vida, sendo revestido por um valor sagrado. Esse valor faz parte da roda cíclica da existência, que busca o equilíbrio dinâmico, necessário para pensar o fortalecimento do povo preto na sua matriz germinativa de enfrentamento aos massacres colonialistas e ao epistemicídio (de acordo com a filósofa Sueli Carneiro). Ou seja, a força biomítica (biológica e divina) restabelece dentro da comunidade o segredo, o sagrado social, econômico e político que garantirá a resistência e a sobrevivência do povo preto na dispersão da diáspora.
O sequestro do Atlântico trouxe filosofias e ciências capazes de reestruturar e realocar os descendentes de África dispersos pela escravização. Essas práticas, embasando as teorias afrocêntricas, recriaram nos territórios negros dos terreiros e quilombos representações materiais e simbólicas que permitiram o resguardo de capitais científicos, culturais, ambientais e filosóficos que resistem às violações e violências impetradas ao povo negro. Modelos de sociedades matriarcais e comunitárias embarcaram nas memórias da juventude da negra escravizada e as bagagens existenciais depositadas em seus corpos suportaram todo o massacre e a dor e restabeleceram as forças para assim garantir o compromisso de reorganizar o trilho civilizacional do povo negro disperso, fora de África.
Sendo preciso retornar às experiências comunitárias e cooperativas que esses grupos já vivenciaram (herança de seus antepassados, repassada por gerações), no momento de dor, a saída era olhar para trás (Sankofa) e firmar um pacto de compromisso com a/o outra/o africana/o escravizada/o, mesmo sendo de etnias diferentes. Mulheres e homens, acolhendo-se com energias ancestrais, olhares, falas, cicatrizes, curas ancestrais, toques, cheiros, afetos, choros, risos e principalmente escutas e observações, reinventavam suas diferenças e resguardavam todas as estratégias de reorganização. Cada mulher e cada homem foram trazendo suas formas de conhecer e organizar e assim foram tecendo suas histórias e recriando mapas que deram direcionamento a uma ação conjunta, percebendo que havia algo comum entre elas e eles: a sobrevivência do povo negro fora de África.
Os processos de observação, escuta e espera foram a base da auto-organização e do planejamento de espaços de potencialidade de vida. E as mulheres foram fundamentais para desenhar novas formas de convivência e possibilidades de viver em sociedade, articulando formas de compreender as dinâmicas do escravismo. Aproveitando seu trânsito dentro das casas-grandes e senzalas, igrejas e ruas, para transmitir ideias revolucionárias para fora das estruturas pensantes escravocratas, elas foram fundamentais para a criação de planos de sobrevivência, rotas de fuga e a construção, por grupos de diferentes etnias, de espaços afastados das casas-grandes e senzalas: os terreiros e os quilombos, lugares que reelaboraram a força subjetiva africana de organização e de humanização desses indivíduos.
No Brasil, as lideranças femininas negras estão presentes até hoje à frente de grandes comunidades tradicionais (quilombos e terreiros) e organizações comunitárias, como entidades sociais de mulheres negras, escolas de samba, empresas solidárias, associações e cooperativas. Os vínculos solidários e a matriz matrilinear são referenciais importantes de reorientação sagrada e constroem no universo social das lutas das mulheres negras as práticas sucessórias de relações de acolhimento, respeito e cumplicidade com as demais diferenças.
As famílias de asé (axé), nos territórios de terreiros e quilombos, são reorientadas no útero mítico de África (ancestral), sacralizadas e ressocializadas. E as mulheres, impulsionadas pela força dessas raízes ancestrais, organizaram com o povo negro contrapontos às forças externas, trazendo a solidariedade aos povos africanos, materializada nas famílias extensas que são recriadas nas religiões tradicionais.
Mãe Aninha de Obá Biyi, Mãe Senhora, Mãe Stella, Mãe Olga do Alaketu, Mãe Menininha do Gantois (Bahia); Tia Ciata, Mãe Beata, Mãe Mariazinha, Yá Torody (Rio de Janeiro); Mãe Rita do Candombe (Beco Firme); Mãe Apolinária (Morro de Santana); Mãe Pretinha do Oxalá (Vila Floresta); Mãe Marlene da Obá (Vila Santa Izabel); Mãe Nilza de Iemanjá (Vila Bom Jesus); Mãe Maria de Oxum (Vila Cruzeiro, em Porto Alegre); Mãe Ciana, Joana Biriba, Mãe Gilda (em Santa Maria da Boa Vista, PE), estas últimas sobrevivendo e trazendo práticas e técnicas de convivência no semiárido nordestino. Todas essas mulheres desenvolviam e desenvolvem trabalhos sociais em comunidades marcadas pela segregação e exclusão, com atuações comunitárias de grandes exemplos de sociabilidade que precisam ser vivenciados e reproduzidos como autodesenvolvimento territorial e autossustentabilidade para o povo preto.
Essas mulheres agregaram no sagrado social e político das comunidades de terreiros uma reconstrução dos valores de convivências sociais e políticas, recriando os vínculos com as comunidades, em sua grande maioria de população negra, população essa destroçada pela lógica colonialista e judaico-cristã. Apresentar outras perspectivas mais humanas e dialógicas de conceber o sagrado é fundamental para garantir a participação comunitária, ligando as realidades interna e externa dos indivíduos até encontrar um elo entre a memória e o interesse pela própria história. Para assim vencerem as adversidades, o preconceito e os estereótipos de demonização impostos aos cultos afro.
Essas mulheres deram palavras para seus corpos, e foram suas danças ancestrais e suas cantigas que trouxeram as memórias corporal e social como estrutura das bases solidárias, em que os compassos, os ritmos e as cantigas entoadas traziam novamente a história comunitária, política e social. Rever a história desses territórios e seu formato de organização é compreender que as mulheres negras tiveram e têm papel fundamental na continuidade da vida e estabeleceram relações de equilíbrio para o respeito a outras formas de conceber o sagrado diante das bárbaras opressões e do terrorismo que sofrem ainda hoje essas comunidades.
A contribuição feminina nos territórios tradicionais estabelece a condição de estar em igualdade de direitos. O matriarcado e a matrilinearidade assumem a condição de respeito, vida e autossustentabilidade, retroalimentando o poder sagrado, social e comunitário como instrumento para um Devir negro. Uma reconstrução gestada por mulheres a fim de gestar a potência e sobrevivência de um povo: O Negro.
Artigo originalmente publicado em Revista Cult a 27/01/2020