O contributo do homem negro

1A sabedoria não reside na razão, mas no amor. (André Gide, Les Nouvelles Nourritures.)

 

(Os negros) interrompem o ritmo mecânico da América, é preciso reconhecê-lo; tínhamos esquecido que os homens podem viver sem conta bancária e sem banheira. (Paul Morand, New York.)

 

Buraka Som Sistema

Que o Negro já esteja presente na elaboração do novo mundo não o demonstra o envolvimento de tropas africanas na Europa; elas provam apenas que ele participa na demolição da antiga ordem, da velha ordem. O Negro revela a sua presença efectiva em algumas obras singulares de escritores e artistas contemporâneos; e também noutras, menos perfeitas, porventura, mas não menos emocionantes, oriundas de homens negros. Não é apenas dessa presença que aqui quero falar, mas, antes e sobretudo, de todas as presenças virtuais que o estudo do Negro nos permite entrever.

Adopto a palavra, seguindo outros; é cómoda. Haverá negros, negros puros, negros pretos? A ciência diz que não. Sei que há, houve, uma cultura negra, cuja área compreendia os países do Sudão, da Guiné e do Congo, no sentido clássico das palavras. Ouçamos o etnólogo alemão: “O Sudão possui, assim, também ele, uma civilização autóctone e ardente. É um facto que a exploração encontrou, na África Equatorial, antigas civilizações vigorosas e viçosas em todos os lugares onde a preponderância árabe, o sangue hamita ou a civilização europeia não roubaram aos falenos negros a poeira das suas asas, outrora tão belas. Por toda a parte2!”. Cultura3 una e unitária: “Não conheço nenhum povo do Norte que possa ser comparado a estes primitivos pela unidade de civilização.” Civilização, ou mais precisamente, cultura, que nasceu da acção recíproca da raça, da tradição e do meio; que, emigrada para a América, permaneceu intacta no seu estilo, se não nos seus elementos ergológicos. A civilização desapareceu, esquecida; a cultura não se extinguiu. E a escravatura compensou, justamente, o meio e a acção desagregadora da mestiçagem.

É desta cultura que quero falar, precisamente não enquanto etnólogo. Vou dedicar-me mais aos seus florescimentos humanos do que aos ramos novos enxertados sobre o velho tronco humano. Parcialmente, entenda-se. São bem conhecidos os defeitos dos negros para a eles não regressar, nomeadamente o de, imperdoável entre outros, não se deixar assimilar na sua personalidade profunda. Não falo de não deixar assimilar o seu estilo. Apenas me interessam aqui – são interessantes – os elementos fecundos que a sua cultura traz, os elementos do estilo negro. E este permanecerá enquanto a alma negra permanecer viva. Poder-se-ia dizer eterna?

Começaremos por estudar, brevemente, a alma negra; depois, a sua concepção do mundo, de que derivam a vida religiosa e a vida social; finalmente, as artes que existem em função de uma e da outra. Restar-me-á, assim, apenas proceder à recolha num conjunto das riquezas reunidas ao longo deste estudo num espírito humanista.

Grace Jones

Surgiram inúmeras obras sobre a ‘alma negra’, mas ela permanece misteriosa tal floresta sob o voo dos aviões. O Padre Libermann dizia aos seus missionários: “Sede negros entre os negros a fim de os conquistardes para Jesus Cristo.” Quer dizer que a concepção racionalista, as explicações mecânico-materialistas nada explicam. Aqui menos do que em qualquer outro lado. Quantos, devorados pelo Minotauro, não se teriam perdido com a cumplicidade de Ariana, da Emoção-Feminilidade. Trata-se de um confusionismo totalmente racionalista, quando se explica o Negro pelo seu utilitarismo, quando não é prático; pelo seu materialismo, quando é sensual.

Quer-se compreender a sua alma? Criemos uma sensibilidade como a sua. Sem literatura entre o sujeito e o objecto, sem imaginação no sentido corrente da palavra, sem sujeito nem objecto. Que as cores não percam nada da sua intensidade, as formas nada do seu peso nem do seu volume, os sons nada da sua singularidade carnal… Até aos ritmos imperceptíveis, aparentemente, a todas as solicitações do mundo, o corpo negro, a alma negra são permeáveis. Não apenas às do cosmos. Sensibilidade moral também. É um facto frequentemente notado que o Negro é sensível às palavras e às ideias, embora o seja singularmente às qualidades sensíveis – porventura sensuais? – da palavra, às qualidades espirituais, não intelectuais, das ideias. Sedu-lo o bem-dizer; seduzem-no tanto o teórico comunista quanto herói e o santo: “A sua voz emocionava os homens4” dizia o Padre Dahin. O que dá a impressão de que o Negro é facilmente assimilável, quando é ele que assimila. Daí o entusiasmo dos latinos em geral, dos missionários em particular, perante a facilidade com que julgam ‘converter’ ou ‘civilizar’ os negros. Daí o seu desalento súbito perante uma qualquer revelação irracional e tipicamente negra: “Não os conhecemos … não podemos conhecê-los”, confessa esse mesmo Padre Dahin no seu leito de morte, depois de mais cinquenta anos em África.

Sensibilidade emotiva. A emoção é negra, como a razão helena. Água agitada por todos os sopros? “Alma de ar livre”5, batida pelos ventos e cujo fruto cai frequentemente antes de amadurecer? Sim, em certo sentido. O Negro é hoje mais rico de dons do que de obras. Mas a árvore mergulha as suas raízes longe na terra, o rio corre profundo, transportando lâminas preciosas. E canta o poeta afro-americano6:

Conheci rios,

Rios antigos, sombrios,

A minha alma tornou-se profunda como os rios profundos

 

Fechemos o parêntesis. A própria natureza da emoção, da sensibilidade, do Negro, explica a sua atitude perante o objecto, percepcionado com tal violência essencial. É um abandono que se torna necessidade, atitude activa de comunhão; ou mesmo de identificação, por muito forte que seja a acção – quase me arriscava a dizer personalidade – do objecto. Atitude rítmica. Retenha-se a palavra.

 

(…)

 

 

excerto do livro Malhas que os impérios tecem, Textos anti-coloniais, contextos pós-coloniais (org. Manuela Ribeiro Sanches)

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Índice

Manuela Ribeiro Sanches, Viagens da teoria antes do pós-colonial

Agradecimentos

I – Viagens transnacionais, afiliações múltiplas

W. E. B. Du Bois, Do nosso esforço espiritual

Alain Locke, O novo Negro

Léopold Sédar Senghor, O contributo do homem negro

George Lamming, A presença africana

C. L. R. James, De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro

Mário de (Pinto) Andrade, Prefácio a Antologia Temática de Poesia Africana

II – Poder, colonialismo, resistência trans-nacional

Michel Leiris, O etnógrafo perante o colonialismo

Georges Balandier , A situação colonial: uma abordagem teórica

Aimé Césaire, Cultura e colonização

Richard Wright, Tradição e industrialização

Frantz Fanon, Racismo e cultura

Kwame Nkruhmah, O neo-colonialismo em África

Eduardo Mondlane, A estrutura social – mitos e factos

Eduardo Mondlane,  Resistência - A procura de um movimento nacional

Amílcar Cabral, Libertação nacional e cultura

  • 1. Senghor, Léopold Sédar. “Ce que l’homme noir apporte”. Négritude et Humanisme. Paris: Du Seuil 1961 [1939], pp. 23-38. Tradução de Manuela Ribeiro Sanches. Revisão de Maria José Rodrigues.
  • 2. Leo Frobenius, Histoire de la Civilisation Africaine, Paris, Gallimard, 1936.
  • 3. Entendo por cultura, o espírito da civilização; por civilização, as obras e realizações da cultura. Dou, portanto, a estas duas palavras sentidos muito diferentes daqueles que lhes atribui Daniel Rops (Ce qui meurt et ce qui naît). Mas trata-se, no fundo, apenas de uma diferença de terminologia.
  • 4. Marcel Sauvage, Les Secrets d’Afrique Noire, Paris, Denoël, 1937.
  • 5. Georges Hardy, L’Art Nègre. L’Art Animiste des Noirs d’Afrique, Paris, 1927.
  • 6. Excerto do poema “The Negro Speaks of Rivers” de Langston Hughes (N. T.).
Translation:  Manuela Ribeiro Sanches

por Léopold Sédar Senghor
Mukanda | 30 Maio 2011 | anti-colonial, negritude, negro