O homem que via no escuro, A Lisboa de Bruno Candé - PRÉ-PUBLICAÇÃO

Prólogo: porque falamos de Bruno Candé

No dia em que morreu, Bruno Candé deixou em cima do balcão da cozinha dois ovos já cozidos, um frasco de feijão frade por abrir e uma lata de atum a escorrer. Estes elementos eram já representação de uma vida em suspenso, uma refeição pronta que nunca aconteceu, quando a família irrompeu casa adentro para reconstituir os últimos passos dele. Não foram só os ovos, o atum e o feijão: um bairro inteiro ficou em suspenso quando aqueles três tiros arrebataram Bruno numa avenida de Lisboa.

Sabe quem o conhece como foi ele «o primeiro» em vários ofícios e ocasiões. Terá ajudado a levar, pela primeira vez, uma companhia de teatro profissional à Zona J, em Chelas. Mesmo no centro de um bairro social, atores e atrizes que enchiam salas no país e no mundo preparavam-se para fazer morada no lugar onde normalmente ninguém vai, se ali não morar. Foi, por conta da vida como ator (sonho de menino, concretização tardia), o primeiro da família a aparecer na televisão. Lá estava ele, numa novela — foi «ver para acreditar», confessaram os familiares. Ali, ele não era Bruno Candé, era um inspetor da polícia empenhado na missão de descobrir o culpado de todos os crimes. E foi ainda o primeiro grande susto da sua família, com um episódio que o pôs taco a taco com a morte logo aos seis meses de idade. O acontecimento tornou-o eterno devoto a um santo Lisboeta.

Não é, porém, por nenhum destes ofícios e ocasiões que ele ficou marcado como «o primeiro» na memória coletiva do país. É que Bruno Candé foi o primeiro homem em Portugal cuja morte deu origem a uma condenação de crime motivado por ódio racial. Evaristo Marinho, então de 76 anos, matou por preconceito contra a cor de pele, assim sentenciou a justiça. Candé morreu por racismo a 25 de julho de 2020. Ele que não acreditava na palavra. Nunca foi ativista de punho em riste — levantar o punho só o viram fazer uma vez, numa manifestação, que também não era hábito dele, semanas antes de ser assassinado, para homenagear um americano morto às mãos da polícia, George Floyd.

Naquele dia de 2020, Evaristo não sabia que estava a matar um pai de três filhos. «Não lhe dei tempo» de falar, afirmou em tribunal. Nem sabia que Bruno era um homem com obra feita na Zona J (hoje formalmente conhecido como Bairro do Condado), um bairro que há anos tem o rótulo de má fama. Por ter nascido aqui, Candé teria afinal «tudo para dar errado», como tantas vezes disse. «Mas eu sou o Bruno Candé», acrescentava logo a seguir. Ele, um homem que via no escuro. Via mesmo no meio de uma paisagem tão negra como é a do estigma em torno do bairro onde cresceu e da cor com que nasceu.

Apenas pouco antes de morrer descobriu o verdadeiro amor pela literatura, nas obras de Augusto Curry. Descobriu-o por uma em específico: A Paixão pela Vida. Porque as palavras lhe diziam muito — não fosse ele ator, um dos bons, como lembram os colegas —, tinha decidido que queria escrever um livro. Por esse motivo, durante os últimos meses de vida, quem o via reconhecia ao longe também o bloco de notas que trazia sempre consigo. Um 5x5, capa bordô e amarela, com pontas encaracoladas pelos dedos que as folhearam. Por onde andasse, Bruno puxava do bloco e estendia a pergunta: «Quem são os miseráveis da sociedade?» A resposta vinha de amigos e até de estranhos, de todos os sítios e profissões. Talvez nunca venhamos realmente a saber quem são estas pessoas, algumas que nem no papel se apresentam com nome. Sabemos o apelido de alguns, as idades de outros ou as suas ocupações — médicos, talhantes, atores, engenheiros informáti- cos. São tantos, de todo o lado. Quem são estes miseráveis? Quem é o lixo da sociedade? — repetia a pergunta, depois de também o romancista Victor Hugo ter contado Os Miseráveis ao mundo.

E a cidade de Candé respondeu.

Ninguém lhe sabia a vontade por inteiro — a família chegou a pensar que ele queria escrever um livro biográfico. Quando Candé morreu, descobriram nas gavetas e nas prateleiras dezenas de papéis arrancados daquele bloco de notas companheiro. Frases soltas, opiniões, notas de reportagem na rua, idades apontadas. Quase nunca coisas escritas por ele. E até aqui Candé mostrava-se Candé, como viria eu a saber: um homem de partilha, passando o bloco e a caneta para as mãos de quem ele questionava.

Além destas pequenas folhas, foram encontradas duas A4 onde Bruno ia deixando ideias avulsas sobre o que seria esse livro, todas em torno do questionamento da sociedade em que vivia. Pelas notas que escreveu, percebe-se que a atual composição política nacional o preocupava. A idade, e um grave acidente em 2017, trouxeram-lhe uma visão mais sombria da marginalização da zona em que cresceu: Chelas, aparentemente tão perto de tudo, na ver- dade tão longe.

De cada vez que lhe morria um «irmão» — assim se tratam os amigos no bairro dele —, Bruno questionava por que tinham de pintar mais um rosto nas paredes despidas da Zona J (onde os olhos grandes e o sorriso farto dele também foram parar), quando a sociedade e o sistema é que tinham feito deles os miseráveis, cor- pos incautos sentenciados a cair no abismo. Por isso, ele queria escrever sobre «política, terrorismo, religião, educação, economia e ambiente» — tudo quanto faz mexer o mundo — numa única obra.

Bruno Candé não era de revoltas, dizem os amigos, mas foi sobretudo aquele grave acidente que sofreu em vida, três anos antes de morrer, e que matara já um pouco daquele corpo parrudo que lhe era reconhecido, o que terá levantado dúvidas quanto a ideias que sempre tomou como garantidas. Como o racismo.

Não conheci Candé. Em conversas com amigos e familiares percebi que é provável que, por duas vezes, não nos tenhamos cruzado nos mesmos lugares por uma questão de minutos. Encontrei-o como memória, um ano após a sua morte, para reportar, enquanto jornalista da Mensagem de Lisboa, o legado deste homem num bairro Lisboeta tão polémico como sempre foi a Zona J.

Na verdade, este livro não é sobre um crime ou sobre racismo — embora vá contar, além da vida, a morte. É sobre um homem e sobre como o sítio onde nasceu se espelha naquilo em que se tornou. E acerca de como cada um é capaz de mudar a sua sina. Porque se ela parece traçada para os que nascem na Zona J, uma visita ao bairro mostra a ignorância das nossas suposições.

Candé, não sendo um homem com canudo, era um cidadão curioso e um ator em ascensão, que não ascendeu mais porque a paixão pelo teatro consumou-se como profissão já tarde na sua vida. Também isto é reflexo da marginalização que a cidade impõe àquele pedaço de terra, onde Candé viveu e onde a cultura demora a chegar. Demorava mais antes, até Candé e os amigos ajudarem a mudar isso. A vasta maioria dos teatros situa-se no centro da cidade, alguns a cerca de dez quilómetros do bairro. Os museus, embora geograficamente mais espalhados, não pairam por estas bandas. Foi de facto um marco quando, em 2015, um festival decidiu instalar-se na Zona J. Chamou-se Zona Não Vigiada. Um evento coorganizado pela primeira companhia profissional de teatro a ganhar lá morada — a Casa Conveniente, a mesma que acolhera Candé como ator, ainda antes de mudarem as instalações do Cais do Sodré para o bairro.

Mas não é por não haver instituições culturais por perto que a cultura não acontece por lá. Nas mãos, nas cabeças e nas cordas vocais dos que ali nascem, há talentos conhecidos nas artes visuais e na música. Não por acaso a direção do Rock In Rio decidiu, entretanto, criar um palco sob curadoria da associação Chelas é o Sítio, no qual foi dado o microfone a artistas que são, há anos, vizinhos do Parque da Bela Vista onde decorre o festival.

Do muito que descobri sobre Candé, consigo agora perceber que ele adivinharia esta mudança na cidade, que adivinharia o dia em que o bairro mal-afamado começaria a fazer parte da geografia cultural de Lisboa. Segundo amigos e familiares, numa discussão sobre temas polémicos como o racismo e a marginalidade, era ele o homem que militava com otimismo, que escolhia dar o benefício da dúvida tanto aos oprimidos como aos opressores. Era o homem que via luz no escuro. «Eu tenho amigos brancos, de todo o lado, e eles não me tratam de forma diferente», advogava.

A maneira como morreu soar-lhe-ia talvez a uma história de ficção. Pelo menos, em Portugal.

o ator Bruno Candé assassinado em 2020o ator Bruno Candé assassinado em 2020

De Olossato a Lisboa

Nas paredes da Zona J não falta retrato: é o Bruno Candé, morto com três tiros; é o Barbosa, o rapper que sucumbiu num acidente de mota, mais conhecido por «GQ», um dos homens imortalizado para a geração dos Poetas de Karaoke, ao lado de Sam The Kid. E vamos ver se não haverá espaço para o Pintarolas (José Luís), fadista que terá sido morto pelo enteado do irmão. Cada morte, um rosto eternizado a preto e branco e umas quantas frases de revolta pelo caminho. O bairro já nasceu com a pobreza: desde o início que é terra de imigrantes, no qual todos tentam contornar o caminho da miséria e da exclusão. A maioria dos habitantes sentirá que, partindo daqui, há mais portas de saída do que de entrada e, para muitos, foram as que levaram à morte. A vida de Bruno não se conta de maneira diferente.

As verdadeiras origens guineenses, essas só as conheceu como homem e, por isso, ficou anos sem saber o que era Olossato, o lugar onde a história dele tinha começado, muito antes, na primeira metade do século xx. Naquela tabanca de poucas casas, de gente humilde, trabalhadora do campo e sem comércio, todos vivem da caça, da pesca e do que a terra der. Quem nos conta é a irmã mais velha de Bruno, Olga, ali nascida.

Cadi Candé Marques, uma muçulmana guineense, cruzou caminho com um Português combatente aterrado em Olossato por força da Guerra Colonial, tinha ela 14 anos. Foi com aquele homem que romantizou a vida e de quem acabou por engravidar.

Nasce então esta menina mestiça, Olga, que mais tarde se tornaria também ela mãe dos irmãos — obrigada a crescer rapidamente para ajudar a governar uma casa onde se vivia com grandes dificuldades. Foi por ela que Cadi deixou aquela tabanca. Afinal, na cultura daquela terra, casar é com familiares e ela não estava para cumprir a tradição. Acabou posta na rua, deserdada pela família, e em direção a Bissau. Lá, tornar-se-ia mãe de mais duas crianças, com um Português que estava apenas de passagem pelo país tropical. Quantos soldados não deixaram filhos na guerra?

A jornalista Catarina Gomes contou esta história no livro Furriel Não é Nome de Pai: Os filhos que os militares portugueses deixaram na Guerra Colonial. Em 2013, partiu para a Guiné-Bissau e descobriu rostos da marca colonial de Portugal, deixados para trás quando se pousaram as armas. Descobriu Fernando, toda a vida chamado «resto de tuga», sem saber o motivo. Também Adulai viveu em exclusão, ele que nasceu com pele mais clara e, por essa razão sem razão, era agredido pelo padrasto. Ambos sem respostas para tantas perguntas que os iam pondo à margem de tudo e todos. Como aconteceu com os gémeos Celestina e Celestino: ainda esperam saber por que o jovem militar que está na fotografia que guardam há 40 anos não quer saber deles. São os filhos da guerra, crianças deixadas para trás pelos soldados portugueses combatentes em África.

(…)

 

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por Catarina Reis
Mukanda | 10 Março 2023 | assassinato, Bruno Candé, racismo estrutural, teatro, vida e morte, zona J