"Os 'factos' não são apenas extraordinários e de enorme singularidade".
Prefácio a História de Angola, de Alberto Oliveira Pinto
Não é demais reconhecer que ainda é difícil, muito difícil mesmo, escrever a história dos espaços, dos territórios e dos povos que constituem hoje em dia os Estados africanos. Angola é, evidentemente, parte receptora desta dificuldade real, sentida por todos os especialistas – investigadores, docentes, pedagogos e divulgadores de todos os géneros–, pese embora a impressão contrária que o grande público, mesmo o “letrado”, como costuma dizer-se, possa ter.
Eis-nos perante o primeiro embaraço. Deveremos dizer “Estados” africanos ou “nações” africanas? Angola, que é “o objecto” analisado nesta obra e “o sujeito” activo da narração, não escapa a essa problemática geral. Decerto que essa dificuldade persistente da historiografia africana não será suplantada tão cedo, pois deve-se a uma conjunção inextricável de factores ao mesmo tempo objectivos e subjectivos.
Em primeiro lugar, os “factos” não são apenas extraordinários e de enorme singularidade. É muito frequente, em regiões e territórios constitutivos dos espaços políticos actuais, os “factos” emergirem, em termos espaciais, de uma maneira difícil de explorar, mercê do seu desequilíbrio e da sua extrema desigualdade conforme os enquadramentos geográficos. Os “Estados”, os “reinos” e os “impérios” dominam tanto o espaço da escrita histórica quanto a memória “oficial” contemporânea, quando na realidade as formações sociais e políticas se revestiram durante muito tempo de extraordinária diversidade e fluidez, de que aliás se encontram vários exemplos neste livro.
Além disso, esses factos apresentam-se de maneira muito desequilibrada. Encontramo-nos na presença de pouquíssimos factos para os períodos remotos e de muitos factos, pelo menos aparentemente, para os períodos recentes. Mas a natureza desses factos não é idêntica, de um período para o outro ou, em termos mais globais, de um tema a tratar para o outro. Durante períodos demasiado longos, Angola evidencia-se como uma excepção positiva, de tal modo parece privilegiada pela abundância das “fontes escritas”. Mas de que – ou melhor, de quem – é que falam essas “fontes”? Dos “angolanos” de anteontem e de ontem? É necessária a vontade e a sorte de um garimpeiro para encontrar a pepita rara sobre o que foram esses homens e mulheres de outrora, assim como um conhecimento comprovado, associado a um mínimo de empenhamento, para sobre eles fornecer interpretações adequadas. São, portanto, poucas – muito poucas – as fontes, comparativamente com os dados contemporâneos que mais nos informam sobre os “angolanos” de hoje. Mas, de ontem até hoje, de que “angolanos” se trata? Das rainhas, dos reis, dos comerciantes ou de qualquer pessoa? Questões sobremaneira essenciais, pois “a nação” é, evidentemente, “toda a gente”. Se a história escrita não consegue falar de “toda a gente”, então é a história de quê?
Não há apenas os factos, reduzidos na maioria das vezes a datas ou a figuras de indivíduos ilustres ou incontornáveis. Também temos que considerar o perfil geral do continente africano e das suas partes constitutivas na longa história do mundo. Nessa história “global”, que doravante não podemos deixar de ter em conta, Angola ocupa uma posição superior e de grande visibilidade. Qual o quinhão de Angola no desenrolar tão duradoiro da história do mundo? E, na própria África, qual foi a quota-parte de Angola, entre as partes constitutivas a que hoje chamamos “nações”? Essa porção e esse papel terão sido os mesmos para todos? Senão, quais terão sido as diferenças, porquê essas diferenças e de que natureza, em que épocas, sob que iniciativas e com que efeitos no imediato e na perenidade? Bem se vê, em se tratando de Angola, que a problemática da “mundialização” (a “mundialização arcaica”, précapitalista, dos séculos XV ao XIX, e a “mundialização moderna”, capitalista, a partir do século XIX) é, incontestavelmente, parte integrante da sua história. Temos, portanto, que encarar esta problemática da “mundialização” da perspectiva de uma longevidade de mais de meio milénio.
Será de estranhar que o Professor Alberto Oliveira Pinto tenha decidido consagrar vinte capítulos ao desenrolar desta história de tão longa duração? Na verdade, não é o número de capítulos nem a quantidade que importam, e sim a sua organização e a sua articulação. Para já, estes vinte capítulos vêm romper, muito afortunadamente, com o fastidioso recorte trinitário entre o “pré-colonial”, o “colonial” e o “pós-colonial”. Esta opção arrasta uma outra, a de uma “história narração”, em lugar e em vez de uma “história problema”, segundo uma distinção cara ao historiador François Furet. Eis uma escolha marcada pela preocupação da prudência e pela aposta na durabilidade. Muito paradoxalmente, a “história problema” de Angola é bem conhecida, muito mais conhecida do que sua história narração. É essa a que é professada pelos especialistas de todas as ciências sociais, a justo título atentos às transformações, às práticas, às tendências e aos desafios contemporâneos de Angola. Sabe-se da pertinência, forçosamente passageira, desses trabalhos. A opção aqui feita em favor da “história narração”, solidamente apoiada numa cronologia densa e detalhada, não exclui a exposição nem a análise dos problemas. Tal é, em primeiro lugar, o caso da questão dos conceitos, noções e palavras que utilizam, quer os especialistas, quer os profanos, para designar as realidades sociais e políticas angolanas: etnias; tradições; Estado; reino; império; fronteira; aliança; expansão; conquista… Tal é, igualmente, o caso da questão das relações entre os mitos e a história: os mitos fundadores das formações políticas locais; mas também os mitos que acompanham as tão longas relações entre Angola e Portugal e fabricados, tanto do lado português, como do lado angolano. E tal é, finalmente, o caso da questão das oscilações socioculturais, espirituais e políticas, quer se trate do “nascimento” dos Estados, das “conversões” religiosas reais ou imaginárias, da “apropriação da escrita” e, evidentemente, das efervescências intelectuais que desabrocharão logo a seguir à II Guerra Mundial.
Existe, em suma, uma espécie de fé que percorre todo o relato de Alberto Oliveira Pinto. Quem se admirará disso, quando é conhecida a ligação íntima que a prática e o conhecimento da história entretecem com a consciência política? Para nos convencermos, basta ver a meticulosidade com que sistematicamente são desmontadas as figuras ditas heróicas que o colonialismo português não se cansou de exaltar. A contrario, ao longo do quase milénio abrangido pela narração, deparamos com a multiplicação de personalidades femininas e masculinas, por vezes míticas, cuja gesta constitui, em definitivo, o fio condutor da história de Angola. Uma história construída com sangue, mas também alicerçada num combate contínuo e, por fim, vitorioso contra a barbárie da espoliação esclavagista e colonial. Uma história que testemunha, pela sua enorme duração, a vitalidade inextinguível da Sagrada Esperança de Agostinho Neto.
Paris, 18 de Outubro de 2015