Para ler Giz

(Comece esse texto com o Giz na mão. Leia as página 97 e 98. Se ainda não o tiver, continue)

Você já viu uma onça? Já insistiu no cruzamento entre o seu e o olhar de um jaguar? Já acariciou o fim e o começo quando um felino, unhas grandes, dorso em contorção, pelo arrepiado, para perto de si e decide que é aqui o acontecimento que fará tudo começar: tornar-se ao mesmo tempo aquele que mata, aquele que manda matar e aquele que morre. 

Caso a sua resposta seja “não”, recomendo que evite este livro. Recomendo que dê meia volta, que não se arrisque. Se você tem medo de tudo aquilo que não está no seu controle, talvez seja melhor evitar Gisela Casimiro. 

(leia agora a página 66)

Ela é felina. Felina, sorrateira, sabida, charmosa e perigosa, perigosíssima: unhas grandes, dorso em contorção, pelo arrepiado em cada um dos seus poemas.

Aos poucos, seus sonhos serão os sonhos dela e os dela serão os seus.

você se tornará ela e o avesso dela. 

De piada em piada, há riscos que não podemos passar impunes.

Escorpião, ela diz.

(agora, 76)

Gisela nasceu 6 anos antes de mim e é muito mais nova, muito mais inocente e velhíssima, antiquíssima, a mais velha de todas, toda ela sábia. É múltipla: escritora, atriz, performer, artista, ativista. É Portugal. Aquele Portugal que Portugal não quer reconhecer que é Portugal.

Entenda: não me leve à mal. Talvez você não esteja entendendo meu ponto.

Você talvez já tenha lido Erosão e eu torço honestamente para que sim. Ou então a Gisela prosa, contista, cronista. Você pode ter lido Gisela em turco, mandarim, alemão, espanhol ou inglês. Pode ter visto em um dos festivais literários em Portugal, Turquia, Macau, Moçambique, Alemanha, Cabo Verde ou Espanha. 

Lançamento de Giz, de Gisela Casimiro, foto de Diana MendesLançamento de Giz, de Gisela Casimiro, foto de Diana Mendes 

(E aí, sinceramente, torço ainda mais para que tenha feito, e que tenha fugido de mesas em Óbidos ou Huelva para tomar ginginha ou sangria e dar muitas e muitas risadas com ela. Eu fiz algumas vezes e recomendo. 

Mostra que Gisela sabe o que a literatura nunca está onde querem que esteja.)

(volte para a página 59)

Você ainda pode ter visto Gisela em espetáculos no CCB, São Luiz ou TBA. Pode ter visto Gisela em dramaturgia no belíssimo “Casa com Árvores Dentro”,  ou na peça “Campeã Nacional de Dificuldade” ou na exposição “Erro 417: Expectativa Falhada” ou nas exposições individuais e coletivas  em que participou por aí mundo afora. De repente foi como ativista no INMUNE  de algum tempo ou na UNA - União Negra das Artes? 

Bom, não sei, pode ser que você já tenha visto ou lido Gisela por aí.

E tomara que sim. Acontece que a minha questão não é tanto se você já viu a Gisela. A minha dúvida é: você viu MESMO? 

(siga para 60)

Você olhou o mistério? Contemplou? Você foi capaz de olhar a felina que habita o escorpião que é Casimiro?

Gisela onde quer que você a encontre é poeta. E aqui, em Giz, temos Gisela em estado puro, afiado, contadora de história em metáforas.

Perceba:

Há momentos em que um aborto é o que ele é. 

(Página 23)

Há momentos em que a dor é o que ela é. 

(Página 18)

Há momentos em que é um convite para enfrentar. 

(Página 55)

Há momentos em que o sangue de tantas e tantas crianças racializadas como não brancas que são assassinadas brutalmente no Brasil, em Portugal ou nos EUA ou… transborda e quem não afoga não tem coração. E são sempre os mesmos que afogam.

(agora, página 32)

Gisela reflete em “Giz” o género, o corpo, os direitos humanos, as questões raciais, a violência, a guerra, a família, o amor, o quotidiano. 

O livro é carne, é manifesto, é afogamento. O livro é uma mistura de trauma, falha, dor, reflexão, gente, muita gente, sonho liberdade e vida. É a vida. 

(caminhe para 48)

Lançamento de Giz, de Gisela Casimiro, foto de Diana MendesLançamento de Giz, de Gisela Casimiro, foto de Diana MendesLançamento de Giz, de Gisela Casimiro, foto de Diana MendesLançamento de Giz, de Gisela Casimiro, foto de Diana Mendes

“Giz” é, segundo Gisela:

“O livro mais duro. É o meu único nome, são uns quantos diminutivos, é o que ficou depois de passar pela Erosão. O giz vem do calcário. É o resto de uma pedra enorme que carreguei e ainda carrego, apenas de outra forma. Paisagem e pó.

Uma matéria com que me entretinha na hora de almoço na escola, ocupando paredes e chão, infância e adolescência; na pedreira procurar fósseis e tentar não cristalizar em formas impostas e auto-impostas. É deixar que as coisas me pesem durante menos tempo, poder apagar e reescrever dores, memórias, hábitos, crenças e comportamentos de outra forma, mais leve.”

E o Giz, pensei eu, se desfaz e vira aquilo que gruda, que nos cola, que pinta a mão de quem o segura e, aos poucos, percebo no ato de limpar as minhas mãos o quanto de mim há nessa matéria, a cor de minha mão, a minha responsabilidade de minha racialização branca na branquitude. Latina, brasileira, mas branca. E suas consequências. O meu quotidiano de mulher branca brasileira. 

Então, me vejo aqui: olhando a pantera negra. Lendo Gisela, não paro de pensar na risada de Angela Davis. Na força da luta radical e na leveza de quem dá o pulo. Afinal, aqui está o assunto que nós evitávamos para não confrontar a morte em nossas mãos, esse Giz a pintar o sangue e nos ajudar, a branquitude, a escalar com mais facilidade. (Lembro: Portugal que Portugal não quer reconhecer que é Portugal. E é Brasil que não reconhece que é Brasil.) 

Mas a pantera negra que é Casimiro está aqui. O silêncio desse encontro, nas entrelinhas dos versos. O cruzamento entre o seu e o meu olhar através da poesia. O fim e o começo quando um felino desses, felino escorpiano, unhas grandes, dorso em contorção, pêlo arrepiado, pára perto de nós e decide que é aqui o acontecimento que fará tudo começar: tornar-se ao mesmo tempo aquele que mata, aquele que manda matar e aquele que morre. 

É, Gisela.

(pule para 96)

Ela diz:

“Coisas como eu. O giz parte-se tantas vezes, como eu. Mas continuamos a poder escrever mesmo com o pedaço mais pequeno.”

Tem tão pouco de pequeno no Giz que, partido (a), segue a criar.

Tem humanidade, tem cura, tem coragem, tem escolha, tem tempo. 

E o tempo é a onça mais feroz para quem escreve. E não só.

O Giz é incrivelmente leve: curtinho, pesado, afiado. Como quem sabe que o humor é lança. Navalha, Emicida diz. “Que nos acorda para dentro”. 

(agora 92)

Unhas grandes, dorso em contorção, pelo arrepiado e o poema acontece.

(por fim, 85)

Quem quiser comprar o livro, pode adquiri-lo aqui.

 

Giulia Pinheiro apresentando o livro, foto de Diana MendesGiulia Pinheiro apresentando o livro, foto de Diana MendesDino de Santiago, Lançamento de Giz, de Gisela Casimiro, foto de Diana MendesDino de Santiago, Lançamento de Giz, de Gisela Casimiro, foto de Diana Mendes

por Maria Giulia Pinheiro
Mukanda | 21 Agosto 2023 | apresentação livro, Gisela Casimiro, Giz, maria giulia pinheiro, poesia