Prefácio a Antologia Temática de Poesia Africana
1Os critérios das nossas antologias têm variado em função do objectivo que nos propusemos atingir, no momento da sua elaboração. Data de 1953 o aparecimento em Lisboa do primeiro Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, organizado em colaboração com Francisco José Tenreiro. Nele figuram seis poetas: Alda do Espírito Santo e Francisco José Tenreiro (S. Tomé), Agostinho Neto, António Jacinto e Viriato da Cruz (Angola) e Noémia de Sousa (Moçambique). Justamente aqueles que, no contexto da época, representavam a vanguarda literária desses países, tanto pelo conteúdo dos seus poemas como pelo papel desempenhado nos movimentos culturais de carácter nacionalista. Em 1958 publicámos a Antologia de Poesia Negra de Expressão Portuguesa2, que, além dos poetas do Caderno, reúne autores de Cabo Verde, da Guiné e também do Brasil. Foi-nos dado justificar, nessa altura, a orientação dos poetas em reivindicar “o orgulho escandaloso da qualidade de ser negro”3. Finalmente, em 1967 apresentámos em Argel a Antologia Temática4.
Na base desta última obra, decidimo-nos agora ordenar uma selecção subordinada ao mesmo critério que privilegia os temas, mas considera também as particularidades geográficas e a ordem cronológica. Repartimos a nossa visão panorâmica em dois tomos cornplementares: o primeiro insere a criação dos anos trinta até ao fim da década de 50, e o segundo, a que foi produzida no contexto histórico aberto pela madrugada de 4 de Fevereiro de 1961, isto é, a guerra de libertação nacional. Este material, precedente de fontes dispersas e de inéditos que nos foram comunicados, sofreu naturalmente o manuseio subjectivo de uma leitura, na permanente pesquisa dos tesouros de essência que a verdadeira poesia nos revela. Vejamos sucintamente as condições concretas do desenvolvimento do fenómeno poético, por referência à formação da consciência nacional. Não existe, no nosso caso, um documento comparável ao Manifesto de Légitime Défense5, que propunha uma “ideologia de revolta” e formulava uma orientação precisa para os escritores negros de expressão francesa; o facto literário surgiu, porém, com ardor e talento, muito antes dos anos trinta deste século, ficando bloqueado, pelo condicionalismo colonial, no interior das fronteiras dos países de eclosão.
Aparecidos em duas épocas distantes, e portadores de experiências diferentes, Costa Alegre, originário de S. Tomé, e Rui de Noronha, de Moçambique, podem ser considerados os precursores da literatura africana de expressão portuguesa, no domínio poético. A obra de Costa Alegre6, vinda a lume em 1916, foi inteiramente escrita em Portugal, por voltas de 1860. O arquipélago de S. Tomé encontrava-se na fase decisiva de mutação das suas estruturas sociais, em que a iniciativa da direcção económica e o controle das riquezas agrícolas eram intensamente disputados pelos colonos aos “filhos da terra”. A poesia de Costa Alegre não regista nenhum eco dessa tensão e não faz nenhuma menção precisa à conjuntura insular. Ela reflecte uma forma de tomada de consciência da condição do negro ferido na sua cor. Atingido no mais íntimo do seu ser pelas humilhações que sofreu num meio social que lhe era hostil, dilacerado pelo isolamento e por decepções amorosas, Costa Alegre refugia-se num universo de autocondenação racial.
Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,
Tu és o dia eu sou a noite espessa
Onde eu acabo é que o teu ser começa.
Não amas! … flor, que esta minha alma adora.
És a luz, eu a sombra pavorosa,
Eu sou a tua antítese frisante,
Mas não estranhes que te aspire formosa,
Do carvão sai o brilho do diamante.
Rui de Noronha exprime timidamente, nos anos trinta, os conflitos suscitados pela sociedade em que se desenrolou a sua existência. Sensível ao espectáculo da opressão, mas isolado na sua démarche, prisioneiro do seu misticismo, o poeta viveu o drama da sua impossível realização, em tanto que assimilado.
Traduz em tom brando de lamentação contemplativa a dor que lhe causava a vida das massas africanas, mas professa claramente a resignação. Rui de Noronha apela, à sua maneira, para a libertação africana, como testemunha o seu soneto “Surge et ambula”:
Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e a mundo rola, o mundo vai seguindo …
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E tu dormes no outro o sono teu infindo …
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Desperta. Já no alto adejam negros corvos
Ansiosos de cair e de beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula …
Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno …
Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz: - África, surge et ambula!
Rui de Noronha esteve, contudo, longe de lançar as bases de uma completa identificação com o seu povo. Entre 1860 e os fins do século passado, num clima de acesas lutas políticas, sucederam-se duas gerações que marcaram a vida intelectual de Angola, particularmente dominada pelo jornalismo. Aproveitando as possibilidades de expressão abertas pela lei portuguesa sobre a liberdade de imprensa, aplicada efectivamente durante um certo período na colónia, os angolanos lançaram jornais e revistas literários. Nenhum poeta se afirmou nessa época, embora o célebre estudioso do ki-mbundu Joaquim Dias Cordeiro da Matta nos tenha legado Delírios, volume de versos rudimentares.
Fundada em Março de 1936, a revista Claridade, primeira manifestação intelectual de conjunto da elite crioula, significou uma viragem no movimento literário de Cabo Verde. Segundo os seus mais ilustres representantes, Jorge Barbosa, Baltasar Lopes (aliás Osvaldo Alcântara) e Manuel Lopes, a preocupação essencial residia na análise do processo de formação social do arquipélago e no estudo das suas raízes. Esses intelectuais, que na sua concepção estética se inspiraram no movimento português nascido em torno da revista Presença e na literatura brasileira, distinguiram-se na poesia e na ficção, bem como nos ensaios sobre as estruturas sócio-culturais do arquipélago.
Os escritores do movimento Claridade, condicionados pela sua formação ideológica, adoptaram um ângulo de visão de “classe” para abarcar o universo insular. Não se atacaram ao fundamento dos dramas da terra (a seca, a fome e a emigração) e muito menos perspectivaram a superação das atitudes resignadamente contemplativas. A sua poesia, dominada pelo tema da evasão, afastou-se do inquérito aos sentimentos populares. Como produto esteticamente acabado do elitismo, ela passou ao lado do clamor das massas das ilhas.
Ao examinarem o processus de aculturação em Cabo Verde, os animadores de Claridade e outros autores afirmaram que as contribuições da cultura africana tendiam a reduzir-se ao nível de sobrevivências ou a diluir-se em função do grau de instrução e de urbanização do meio, enquanto os valores europeus, possuidores de uma maior capacidade de resistência, se impunham e se generalizavam.
(…)
MALHAS QUE OS IMPÉRIOS TECEM. TEXTOS ANTI-COLONIAIS, CONTEXTOS PÓS-COLONIAIS 2
Índice
Manuela Ribeiro Sanches, Viagens da teoria antes do pós-colonial
Agradecimentos
I – Viagens transnacionais, afiliações múltiplas
W. E. B. Du Bois, Do nosso esforço espiritual
Alain Locke, O novo Negro
Léopold Sédar Senghor, O contributo do homem negro
George Lamming, A presença africana
C. L. R. James, De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro
Mário de (Pinto) Andrade, Prefácio a Antologia Temática de Poesia Africana
II – Poder, colonialismo, resistência trans-nacional
Michel Leiris, O etnógrafo perante o colonialismo
Georges Balandier , A situação colonial: uma abordagem teórica
Aimé Césaire, Cultura e colonização
Richard Wright, Tradição e industrialização
Frantz Fanon, Racismo e cultura
Kwame Nkruhmah, O neo-colonialismo em África
Eduardo Mondlane, A estrutura social – mitos e factos
Eduardo Mondlane, Resistência - A procura de um movimento nacional
Amílcar Cabral, Libertação nacional e cultura
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- 1. “Prefácio”. Antologia Temática de Poesia Africana. Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné, Angola, Moçambique. I – Na noite grávida de punhais, Lisboa: Sá da Costa 1975.
- 2. Edição de Pierre-Jean Oswald, Paris.
- 3. “… o dépassement da négritude”, escrevíamos então, “é um facto evidente, entendida como simples afirmação do acto de existir no mundo, sobretudo com a poesia negra de expressão francesa, que constituiu o principal veículo. Mas o poeta negro em nada deve renunciar à sua qualidade ou às suas características; pelo contrário, o fundamento da sua universalidade reside na plena afirmação da sua particularidade que não é puramente étnica, mas tanto histórica como social e cultural, numa palavra, humana.” (Ibidem, p. XIV.)
- 4. No quadro duma colecção de literatura africana de expressão portuguesa, dirigida em parceria com Carlos Pestana Heineken, Tomás Medeiros e Sérgio Vieira.
- 5. Revista lançada em Paris, em 1932, por estudantes da Martinica (Étienne Léro, René Menil, entre outros), precursora do movimento da negritude.
- 6. Versos (2ª edição), Livraria Férin, Lisboa, 1951.