Prefácio do livro "Sinfonia em Claro-Escuro" de Elsa Fontes
Cada indivíduo tem o seu jeito pessoal de encarar um livro e, normalmente, é nas primeiras páginas que se define a futura relação entre eles. Nesta obra, Sinfonia em Claro-Escuro, o móbil da leitura, para além da expetativa de um encontro com a literatura e com pensamentos que não meus, foi o compromisso de deixar aqui uma nota de leitura que faço com prazer pelo enorme carinho que tenho pela Elsa Fontes e que, acho, une as nossas fragilidades e forças.
Um texto escrito na primeira pessoa, à partida, provoca reações diversas, conforme a predisposição para a curiosidade e interpelação para novas histórias, personagens e propostas de cenários para além de pensar que é sempre difícil escrever em primeira pessoa sobre temas que nos envolvem ou compõem o nosso quotidiano seja na lembrança do passado, seja no olhar o presente que traz alegria e alento, mas também agride ao destapar feridas. Também não é fácil referir, por exemplo, a família e amigos sem os envolver no compromisso da escrita que é apenas nosso. No entanto vi que a autora faz tudo isso, aparentemente com facilidade, criando o distanciamento possível e protegendo quem pretendeu proteger.
É uma história de meio século de vida, uma viagem ao passado e ao presente sem rede ou cuidados maiores que revela ocorrências marcantes da sua história e da sua personalidade, factos que normalmente se querem guardados. A autora, com essa abordagem corre o risco, como aliás admite, de ser rotulada de forma negativa ou simplesmente desprestigiada. Reconheço que é preciso força para se expor como ela o faz, mas igualmente coerência para prosseguir na linha do pensamento crítico que definiu para a vida e para o livro.
Embora não seja uma obra concebida para agradar um grande público é, no entanto, uma sucessão de oferendas, sobretudo no que se refere ao amor que tem pela família, à admiração que cultiva por alguns amigos ou sua memória, ao carinho que sente pelas terras por onde andou e que lhe deram um olhar maior sobre o mundo, suas gentes e diferenças. Trata-se de um livro de pormenores e lembranças, de luta e exposição só possíveis de transmitir de forma tão forte e incisiva pela escrita em primeira pessoa. Li-o principalmente como uma chamada de atenção para uma sociedade caraterizada por certa crueldade ou desumanização face a quem, pensamos, ocupa um lugar diferente de nós.
Os conteúdos agrupados em três períodos, devidamente certificados com registos oficiais, nomes e datas revelam os papéis desempenhados pelas pessoas com quem contactou ao longo dos anos e dos vários cenários. O leitor é mobilizado para a leitura, sem enganos ou aparências outras, apenas entrando por vontade própria na viagem que a autora propõe neste texto escrito, conscientemente, com imensa honestidade. Por isso alguma dor perpassando as letras, por isso a alegria e a saudade pontuando as páginas, por isso a revolta perante uma situação de saúde que não criou e de que é vítima.
A Elsa tentou criar algum distanciamento, alterando o seu nome, para poder identificar-se com indivíduos que ela julga seus iguais nas circunstâncias e história e quis mostrar que não teve ou não tem nenhuma responsabilidade na história que ela carrega, mas uma vez mais são os conhecimentos adquiridos ao longo da formação e da experiência de vida que fazem soltar o grito ou, melhor, compor esta narrativa.
Devo referir que me ficou a sensação do propósito pedagógico da autora em mostrar ao leitor e às variadíssimas pessoas ou grupos com quem contacta e convive o calvário que é ser-se portador de uma doença que ultrapassa o corpo para se alojar no espírito, mas que, contudo, continua ditando ordens e pulsações, uns dias de força, outros de astenia total. No entanto, em nenhuma palavra descortinei a intenção da autora de entrar em autodefesa, de se desnudar para aumentar a fragilidade e requerer maior compreensão ou afeto do leitor.
Percebi, sim, uma chamada de atenção para muitos de nós que, do alto dos nossos conceitos e certezas nos julgamos saudáveis, perfeitos, inatacáveis e únicos, e não conseguimos a generosidade de olharmos os outros de forma descomplexada sem os instintos ridículos, preconceituosos e estigmatizantes que conduzem ao esquecimento dos seres e sua despersonalização.
A Elsa ao optar ser Luzia pretende tornar-se mais uma desconhecida no meio da multidão, mas imediatamente recusou a nova roupagem, porque reconheceu que o nome não é o mais importante e nem sequer o elemento que nos faz diferentes dos outros, e assumiu-se verdadeira tão só para dizer: sou assim e sou humana, não igual a ninguém, mas não menos do que qualquer outro ser. Sou assim e esta é parte da minha história de vida.
Praia, 24 de Outubro de 2020