Raquel Varela e a branquitude como lugar de fala hegemónico e silenciador na esquerda portuguesa
No dia 15 de Março, a historiadora portuguesa Raquel Varela publicou um texto, comentando o assassinato político de Marielle Franco. Nele, achou necessário não apenas ridicularizar o conceito de ‘lugar de fala’, como igualmente retratar o povo negro e favelado de uma forma perfeitamente elitista. Tendo sido confrontada com inúmeras reacções críticas mais ou menos indignadas, denunciando o racismo e classismo do seu texto, a autora respondeu numa demonstração de arrogância e orgulho (tipicamente) branco: incapaz de reconhecer nas críticas alguma razão que fosse, coloca-se antes no lugar de vítima, denunciando ‘ameaças’ recebidas.
A terem sido feitas, as ameaças são de inadmissíveis. Isso não nos impede, contudo, de confrontar Raquel Varela com as suas afirmações. A verdade é que a sua ‘defesa’ mais não é do que um redobrar da ofensa inicial. Nela, Varela declara desconhecer que ‘ser branca e europeia era um insulto’, que até nem é tão branca assim, que como filha de alentejanos até tem sangue mouro. Que tem pergaminhos antifascistas e anti-racistas na família, que é muito mais velha do que grande parte dos críticos (aos quais manda ‘comer muitas torradinhas com leite’) e que tem muito trabalho feito ‘sobre o papel dos movimentos negros de libertação, trabalhadores forçados no derrube da ditadura portuguesa’. Remata concluindo que o seu ‘lugar de escolha de vida’ é ‘ao lado dos trabalhadores: brasileiros, portugueses, noruegueses ou chineses’.
Retrato mais puro e cristalino do que falamos quando falamos de branquitude, da violência discursiva arrogante e condescendente que lhe é inerente, da sua falta de noção e consciência, nem por encomenda. Tem razão Raquel Varela para ficar surpreendida ao ver adjectivos como ‘branco’ e ‘europeu’ mobilizados negativamente. Branco e europeu nunca são insultos, mas sempre apenas qualificativos neutros, o universal. Já o mesmo não se pode dizer de negros/pretos, de ciganos, de indianos/monhés ou de chineses, etc… E aí mesmo reside o problema denunciado pelos críticos da branquitude, uma lógica de poder disseminada e inconsciente, que abrange a totalidade do espectro político. Uma lógica cujos efeitos e violências Raquel Varela, enquanto mulher europeia branca que é, nunca poderá compreender da mesma forma que os sujeitos racializados — não obstante toda a sua militância, produção académica, e história familiar. Pela parte que me toca, portanto, pode Varela guardar as ‘torradinhas com leite’ para si mesma.
A gravidade deste incidente torna-se ainda maior, contudo, se considerarmos que não se trata de um caso sem precedentes. De facto, já em 2014 a autora se envolveu numa polémica semelhante, tendo respondido nos mesmos termos aos seus críticos, entre os quais me contava. Uma resposta que não me deixou outra opção senão abandonar o colectivo da Revista Rubra — projecto editorial dirigido por Varela e do qual fui um dos membros fundadores —, pondo termo à relação de anos de camaradagem e amizade que nos unia. Embora tenha achado por bem, até agora, guardar o mais absoluto silêncio sobre esse incidente (tirando uma breve nota após a minha demissão), esta reincidência torna a sua revisitação incontornável.
A estória conta-se em poucas palavras: A 7 de Outubro de 2014, o site de direita Pensar Lisboa publicou uma entrevista com a autora, questionando-a sobre o que gostava mais e menos na cidade. Em resposta, Raquel Varela declarou gostar das tascas, da economia familiar de pequena-escala e das mercearias tradicionais. Desagradava-lhe, pelo contrário, a invasão de turistas, hostels, fast food, mercearias asiáticas (isto é, de indianos, paquistaneses e bangladeshianos) e lojas chinesas, o IVA e a lei das rendas.
Tal como agora, também então tais declarações despoletaram inúmeras críticas e, tal como agora, também então a autora respondeu de forma sobranceira e arrogante. Apesar de, enquanto ‘asiático’, ter sentido tais declarações como pessoalmente ofensivas, a lealdade para com a organização e para com os meus camaradas de longa data impediu-me de contribuir para o debate público sobre o assunto. Restringindo a minha crítica ao foro interno, expressei-a num tom de moderação, comedimento e compreensão, a que não era de todo obrigado face à gravidade da situação. As respostas que obtive tiveram o condão de me ensinar como a branquitude é implacável, não aceitando dos sujeitos racializados senão o rendimento e capitulação total: confrontada com a minha exigência de um retratamento e clarificação pública, assim como, a nível interno, de um pedido de desculpas pessoal, (pois enquanto ‘asiático’, tais declarações ofenderam-me pessoalmente), Raquel Varela reagiu de forma em tudo semelhante à que podemos agora observar, recusando-se a reconhecer qualquer legitimidade às críticas, e escusando-se a qualquer descida do pedestal em que se coloca. Após um mês de polémicas internas, durante o qual me confrontei com a desconsideração, o desrespeito, e inúmeras micro-agressões vindas da autora (secundadas por outros dos meus camaradas co-fundadores), decidi por fim que não tinha condições para manter a minha pertença àquele colectivo. Não tendo sido, como se pode imaginar e como saberá quem quer que tenha passado por semelhantes processos de ruptura, uma decisão tomada com gosto, ela acabou por se revelar extremamente libertadora. Desde então, a política anti-racista e decolonial, e a crítica da branquitude normativa e hegemónica, têm constituído eixos norteadores do meu pensamento e da minha intervenção pública, no que tenho sido acompanhado por um número crescente de outras vozes que se têm destacado na esfera pública portuguesa.
Não é necessário ser-se detentor de quaisquer dotes divinatórios para antecipar a reacção de Varela ao que aqui digo, uma reacção que não poderá ser senão fiel à arrogância e orgulho branco que a caracterizam. Quero portanto deixar claro que não se trata aqui de qualquer fulanização da discussão, nem tão pouco de um acerto de contas com o passado. Assim é porque, apesar de tudo, não nutro hoje por Raquel Varela qualquer ressentimento — a minha atitude relativamente a ela é hoje uma de saudável indiferença, quando não mesmo de reconhecimento pelo papel que desempenhou para uma viragem definitiva no meu pensamento e intervenção política. Para além disso, considero que o incidente a que faço referência, assim como este mais recente, não são ambos senão expressões particulares, no contexto da esquerda portuguesa, da branquitude racista que caracteriza a sociedade em geral, necessitando portanto de ser submetidos a análise crítica no que a essa mesma particularidade diz respeito.
De facto, se muito foi já dito e escrito sobre o racismo português, e o modo como a sua denegação lusotropicalista constitui um obstáculo ao seu combate, muito menos atenção tem merecido a forma como, no seio das esquerdas, esse obstáculo geral se vê reforçado por obstáculos particulares. Assim, no seu artigo no Público de 29 de Janeiro, intitulado Racismo em Portugal: desafios para a esquerda no século XXI, Joacine Katar Moreira e Piménio Ferreira afirmam correctamente que “[o]s partidos políticos portugueses, tanto à esquerda como à direita, são reflexo da sociedade e representam, portanto, as relações e as posições de poder nela existentes”, as quais “por sua vez, são o resultado das dinâmicas históricas e dos desequilíbrios daí resultantes”. Tal explica, efectivamente, o “pouco investimento dos partidos políticos em candidatos negros e ciganos”, cujas comunidades são consideradas eleitoralmente pouco merecedoras de atenção. Ainda segundo os autores do artigo, tal ausência de representação contribui por seu turno para a ausência de debate público e político sobre questões que afectam particularmente os sujeitos racializados. Se esta análise é no geral correcta, ela contudo não toma em consideração as resistências e os obstáculos particulares do regime de branquitude em vigor nas esquerdas portuguesas, as mesmas resistências e os mesmos obstáculos que silenciam a discussão do sexismo e violência sexual e de género nas suas fileiras. Como escreve a jornalista britânica Laurie Penny, um artigo de opinião de 2013 analisando a crise profunda que se abateu sobre o Socialist Workers’ Party, na esteira de um caso de violação de uma militante do partido por um dos seus dirigentes:
“Dizer que a esquerda tem dificuldade em lidar com a violência sexual não significa que esse problema lhe seja exclusivo. Há, no entanto, uma teimosa recusa em aceitar e lidar com a cultura da violação que é peculiar à esquerda e aos progressistas em geral. Ela tem precisamente a ver com a ideia segundo a qual, por virtude de sermos progressistas, por virtude de lutarmos pela igualdade e justiça social, por virtude da nossa, lá está, virtude, estamos de alguma forma acima de ser pessoalmente responsabilizados no que diz respeito a questões de raça, género e violência sexual.”
À luz da minha experiência pessoal, esta passagem descreve primorosamente as dificuldades de discutir as questões do racismo e da branquitude no seio da esquerda portuguesa. A branquitude de esquerda recusa-se terminante e furiosamente a reconhecer e admitir o seu racismo e a reconhecer a sua hegemonia exclusionária e silenciadora. Quando confrontada, a branquitude de esquerda não hesita em puxar pelos seus galardões para silenciar os seus críticos não-brancos, como se tal lhe devesse valer créditos ou fosse um cartão para escapar à cadeia no monopólio.
Esta situação é, de facto, exasperante e desesperante. Mas sabemos que, para citar o título de um recente livro da histórica militante negra americana Angela Davis, “a liberdade é uma luta constante”. A questão, então, é que meios e tácticas implementar ao serviço das nossas estratégias emancipatórias? Sem querer ser peremptório, e reconhecendo que tais respostas terão que ser encontradas no decurso dos combates levados a cabo por quem, ao contrário do que é o meu caso, se encontra no terreno de luta, queria terminar este meu contributo com algumas linhas de reflexão.
É minha opinião que, para lá de combates centrais, como a alteração da lei da nacionalidade ou o reconhecimento das identificações étnico-raciais nos censos, revela-se essencial a formação de um sujeito político que, partindo do que a teórica feminista indiana Gayatri Chakravorty Spivak designou por ‘essencialismo estratégico’, seja capaz de se unificar a partir de uma recusa radical e antagonista da branquitude. Isso implica uma recusa da assimilação, bem como a denúncia do lugar opressivo de onde partem discursos como os de Raquel Varela, ou práticas como as da solidariedade performativa e apropriativa do apelo coletivo, por parte de mulheres brancas, à vigília em memória de Marielle do passado dia 19 de Março em Lisboa. Evidenciar e denunciar a branquitude onde quer que ela se manifeste, criar os nossos próprios espaços de encontro, os nossos próprios meios de comunicação, as nossas próprias ferramentas de intervenção política. Forçar o protagonismo e a visibilidade colectiva a que temos direito, custe o que custar. Silenciar quem nos silencia, marginalizar quem nos marginaliza, excluir quem nos exclui.
Nas últimas eleições presidenciais norte-americanas, Bernie Sanders disputou as primárias do Partido Democrata com um programa e uma política muito mais representativa dos interesses e necessidades dos negros e minorias do país que a de Barack Obama alguma vez foi, tendo por isso merecido o apoio de figuras como Cornell West, Erica Garner, Linda Sarsour, Hamid Dabashi, ou Rosario Dawson. Como milhares de pessoas em todo o mundo, também eu nele depositei as minhas esperanças para enfrentar um poder americano que, tanto a nível doméstico como internacional, produz e reproduz o racismo, a exploração, a guerra infinita e todas as formas de opressão e dominação. Não obstante tal apoio, nunca condenei o acto de disrupção das activistas reivindicando-se do Black Lives Matter numa das suas acções de campanha. Se foi um erro, foi um erro que aponta no sentido certo, e portanto, nas palavras da revolucionária polaca Rosa Luxemburgo, um erro fecundo e valioso. Contra a branquitude exclusionária do sistema político português, contra o racismo de todos os Arménios Carlos e todas as Raquéis Varelas da esquerda portuguesa, contra a neutralização, cooptação e assimilação, urge adoptar uma política de confronto e antagonismo radical. Não contaremos até que, juntas e juntos, nos façamos contar.