Um mapa para configurar mundos
Para lá da literatura narcísica, do sucesso e das regras de mercado, houve muitos momentos nesta edição do Folio de grande engajamento com o pensamento e a imaginação. A vibrante e contagiante curadora Candela Varas criou para o festival literário a Casa Escrevivência, Casa Fulgor e Casa Floresta, e foi nessa última que aconteceu a Roda intitulada ‘Configurações de Mundos: Encontro Inesperado do diverso’. Uma roda que contou com a participação dos escritores Verenilde Pereira, Kaká Werá, Cebaldo Inawinapi, Elvis Guerra, Carola Saavedra, Juan Carlos Galeano, além de Patricia Vieira, Francisco Soares e Carla Santos. Junto ao grupo, Ellen Lima Wassu, Marta Lança e Candela Varas estruturaram os estímulos para o diálogo, em forma de interrogações.
Marcada por uma forte pluralidade de vozes, que apontam diferentes cosmopercepções, a conversa se trançou pelo compartilhamento de histórias ancestrais, modelos de liderança comunitária, e questões urgentes sobre território, biodiversidade e vulnerabilidades frente à crise climática.
Várias falas nos instigaram a questionar a alteridade e a aprender com as vivências, resistências e pensamento indígenas. Por exemplo: resgatar a ideia de parente (par-ente) contra a ideia de família-propriedade-privada; recompor a humanidade na ligação com a terra; somos todos natureza (nunca é demais lembrar), se a usamos como recurso nos magoamos também; a imaginação e alegria na defesa de uma vida íntegra; a literatura como inscrição de histórias apagadas, experimental na forma, nas falas e motivação; a defesa do coletivo e a singularidade no coletivo; inspiração para governanças e práticas não-hierarquizadas de comunidade; as retomadas de terra, recriar culturas e identidades massacradas pela colonização; complexificar a ideia de preservação (na luta por territórios indígenas); a guerra pelas zonas habitáveis na Terra; como viver na crise e no fim do mundo desde sempre.
Para fechar o momento, ou abrir mais a imaginação, a poeta Ellen Lima Wassu leu o poema que construiu durante a conversa, a partir de frases, palavras e percepções que observou entre os participantes na roda. Uma espécie de imagem literária do encontro, que nos ofereceu uma chave para continuar a imaginar coletivamente.
Obrigada, viva a Inquietação!
Um mapa para configurar mundos
pergunta sagrada
par e entes
ampliado a todos os seres
viventes da terra
parentes
porque
habitamos
o ventre
da mesma mãe
quando nascemos
somos “guenda”
conexão profunda
com a capacidade de amar
em persistência e coragem
em caminhada para
as árvore de pássaros
ou de olhos fechados
para o abismo
destruição a olho nu
gente empurrada pra fora
queima, gasolina,
agrotóxico, aniquilação.
sobreviventes desse mundo
de cascas sem alma
persistência e coragem
construção e recriação
luta política
chefias circulares
cantar e cantar historias
ser solidário
o privilégio é servir
com persistência
comunidade e coragem
por toda ilha
por toda terra
palavra é pássaro
palavra é instrumento político
política é retomar a terra
a floresta funciona
a gramática é a terra
a literatura é a terra
a revolução funciona
com persistência, política e coragem
construção e recriação
o privilégio é servir
configurando o mundo
para que a terra possa ser
governada não por dinheiro
mas por poetas.
*Guenda, palavra Zapoteca.
Ellen Lima Wassu