Uma apresentação: Comitê Invisível (a partir do Brasil)
O Comitê Invisível vem publicando textos desde o ano de 2007. Os seus livros têm um tom bastante próprio: se algumas vezes lembram um panfleto ou um manifesto, outras tantas se parecem com textos acadêmicos ligados à filosofia e à teoria política. Em alguns momentos, ainda, adquirem o tom de literatura contemporânea, americana ou francesa ou japonesa (imagine-se, aqui, um autor contemporâneo qualquer que questiona o uso que se faz de um aplicativo de sexo em detrimento do sexo – ou algo do tipo).
A invisibilidade dos membros do Comitê talvez não seja tão importante quanto tudo aquilo que seus escritos tornam visível. Ainda assim, qualquer pesquisa simples na internet oferece algumas informações sobre seus membros.
A primeira das informações é aquela que associa o caso que ficou conhecido como “Os nove de Tarnac” ao primeiro livro do Comitê, A insurreição que vem. Em resumo, um grupo de amigos que vivia numa propriedade rural foi acusado de sabotagem. O sistema francês também os acusou de pertencerem ao Comitê Invisível. Nenhuma prova atestou esse vínculo.
A segunda informação diz respeito ao vínculo do Comitê com uma revista que circulou entre 1999 e 2001. Enquanto revista, possuiu dois números. Depois disso, há alguns livros que circulam por aí com a assinatura Tiqqun, com textos que parecem ter nascido nas publicações da revista (Introdução à guerra civil, Uma metafísica crítica…, Isso não é um programa, são títulos já traduzidos para português, por exemplo).
Houve, também no caso da revista Tiqqun, um conjunto de associações possíveis entre Tiqqun, Comitê Invisível e o caso de Tarnac.1
De todo o modo, queremos insistir naquilo que os escritos do Comitê Invisível, associados ou não a Tiqqun, trazem para o campo do visível e que tem enorme importância para o ativismo e a militância de esquerda nos dias que correm.
OS LIVROS E SEUS CONTEXTOS
Além dos números da revista e dos livros que levam a assinatura Tiqqun, o Comitê Invisível publicou três obras que, juntas, vêm compondo os debates travados no campo das lutas contemporâneas, dos meios militantes e ativistas ao âmbito acadêmico.
O primeiro livro, A insurreição que vem, foi publicado originalmente em 2007. Dispomos de uma tradução para o português, impressa pela Edições Baratas, em 2013.2 É um livro que esteve diretamente associado ao caso dos prisioneiros de Tarnac. Escrevem eles sobre o assunto:
“A incriminação por terrorismo de pessoas que foram acu- sadas não tanto de algumas simples sabotagens (notavelmente contra uma linha do TGV), mas principalmente por terem escrito um livro, evidentemente aumentou o interesse por seu conteúdo, fazendo com que o livro A insurreição que vem não tardasse a se tornar um best seller e, assim, um tipo de clássico”.3
Aos nossos amigos: crise e insurreição foi publicado em 2014 (no Brasil, em 2018 pela n-1 Edições). Segundo os próprios escritores, o livro resumiu – com base em uma investigação realizada nos vários continentes – a sequência que se abriu com a “crise de 2008”, prolongada com as “primaveras árabes” e, finalmente, fechada pelos diferentes “movimentos das praças”.4
O último livro, Motim e destituição agora, publicado em 2017 e traduzido no Brasil pela n-1 Edições, tem como canteiro de obras as lutas contra a lei trabalhista francesa desencadea- das em 2016. É com este ponto de partida que o Comitê quis “sondar o pano de fundo desta era” – a nossa.5
Embora seja reconhecível um “tom” que marque a autoria de cada livro, há pelo menos uma nota dissonante em cada uma das obras.
O conjunto de escritos em A insurreição que vem está mais focado em uma espécie de diagnóstico da catástrofe que se anuncia ao término da primeira década dos anos 2000. O sufocamento de nossos modos de viver, de amar, de trabalhar, de fazer trocas – ele prenuncia um caminho. Este caminho é o da insurreição que vem.
Assim, o primeiro livro faz uma cartografia negativa do mundo que habitamos. Ou seja, para além de disputar o mundo tal como ele nos aparece, é necessário sair dele, de suas organizações, de suas instituições e criar novas formas de habitá-lo.
Aos nossos amigos parte de um novo pano de fundo: as insurreições chegaram. Os escritores afirmam terem-se espalhado mundo afora para cobrir as diferentes formas com que a insurreição se apresenta. Há claramente uma mudança no tom do texto, que passa a ser muito mais agressivo, declarando guerra àqueles que não são seus amigos.
Sobretudo, nesta segunda obra são enunciados com maior nitidez os contornos daquilo que o Comitê Invisível entende como frentes de batalha: não se trata em absoluto de fazer lutas para disputar o que aí está (as instituições, por exemplo), mas sim de bater em retirada, de criar um funcionamento outro que possa nos fazer prescindir do modo como o mundo está organizado.
Em Motim e destituição agora, cujo título original é apenas Agora, há um tom menos belicoso. O canteiro de obras está mais enxuto, por assim dizer. A principal fonte de pensamento é a análise tática e estratégica que toma as lutas contra a reforma trabalhista francesa de 2016, o que parece ajudar o Comitê a sair da excitação do livro anterior. Diminuem também os ataques nominais aos outros pensadores que se põem a analisar a mesma constelação de outro ponto de vista, com outra rede conceitual.
Torna-se mais nítida ali uma dada forma de ler e de pensar o mundo. O Comitê coloca para funcionar em seu texto um conjunto de conceitos, tais como o de poder destituinte, formas-de-vida, comunismo, potência, experiência; propõe tomar de volta para si o que hoje se organiza na forma da política, da economia, das organizações, das instituições. A citação de um “amigo” parece resumir esse processo: “A solução para o problema que você vê na vida, é uma forma de viver que faça desaparecer o problema”.
REDE CONCEITUAL: POTÊNCIA DESTITUINTE, PODER CONSTITUINTE
Nessa rede conceitual mobilizada pelo Comitê, vale destacar a mútua implicação que se nota com a obra de um intelectual italiano cujas análises tiveram muito impacto nas ciências sociais brasileiras nas últimas duas ou três décadas. Trata-se de Giorgio Agamben.
Será fácil encontrar na literatura acadêmica crítica do período referências a diversos conceitos produzidos por Agamben no conjunto de sua longa pesquisa: estado de exceção, vida nua, profanação, potência, singularidade qualquer. Mas é especialmente no âmbito do que podemos chamar de “potência destituinte” que há uma imbricação praticamente indistinta entre as análises conduzidas pelo Comitê e a obra deste filósofo.
Na conferência “Elements for a theory of destituint power”, Agamben cita o Tiqqun da Introdução à guerra civil em sua exposição sobre o conceito de “forma-de-vida”: “Tiqqun desenvolveu esta definição em três teses, afirmando que: 1) A unidade humana elementar não é o corpo – o indivíduo –, mas a forma-de-vida, que 2) Cada corpo é afetado por sua forma-de-vida como por um clinâmen, uma atração, um gosto; e que 3) Minha forma-de-vida não se relaciona ao que eu sou, mas a como eu sou aquilo que sou.”6
O conceito central, ao que tudo indica, é mesmo o de potência destituinte. “Desapareçamos”, “Destituamos o mundo” são títulos de capítulos presentes nos livros do Comitê. “O comunismo é o movimento real que destitui o estado de coisas existentes”, conclui um capítulo.
Aventa-se, assim, desativar as grandes formas constituídas que operam sobre nossas vidas: economia, religião, linguagem, política. Não seria uma recusa, mas uma “destituição constituinte”, que somente as formas-de-vida poderiam colocar em funcionamento. Que Agamben faça todo um estudo sobre as formas-de-vida entre frades e mosteiros parece bastante sintomático de onde e de como este tipo de situação poderia ser instaurada…
No pólo oposto, e francamente destacado como inimigo, estaria o poder constituinte e um outro filósofo italiano também muito presente na literatura insurgente brasileira: Antonio Negri. O que é possível rastrear aqui e ali nos textos de Tiqqun, do Comitê Invisível e do próprio Agamben é que a treta é antiga, remontando ao próprio movimento da autonomia operária italiana.
Em seu último texto com Michael Hardt, Assembly, podemos ler esse debate bastante vivo. Às críticas que pretendem invalidar a ideia de poder constituinte – como estas de Agamben e companhia –, Hardt e Negri opõem a possibilidade de rearticular o conceito “acompanhando o modo como está sendo reinscrito na prática” e considerando “a mate- rialidade e a pluralidade dos processos revolucionários”.7
É claro que todos os pressupostos são outros e, consequentemente, é outra a disputa pelos mundos que podem ser criados a partir dos levantes da segunda década do século XXI. Negri entende que, ao invés de abandonar as instituições, é necessário inventar um outro tipo de instituição. Ao invés de entender os processos na chave da exceção, Negri os entende na chave do excesso, ou seja, de um transbordamento da potência afirmativa da cooperação.
LINHAS FORTES, LINHAS FRACAS
O conjunto dos textos do Comitê Invisível torna visível ao menos quatro linhas distintas de percepção do estado de coisas e das lutas por sua transformação: i) a análise de conjuntura; ii) a análise tática e estratégica; iii) a crítica à esquerda; iv) a análise dos modos de vida.
O vigor e a potência de seus textos não deixam de apresentar problemas diversos: a arrogância de suas críticas; a concentração em lutas de caráter metropolitano; a ausência de explicações consistentes sobre como se vai destituir tudo; o eurocentrismo de seus conceitos e métodos; a adoção de uma única perspectiva para interpretar e alimentar as lutas.
Os fragmentos agrupados nas páginas que se seguem, no artigo Amigos e amigas dialogam com um comitê invisível, dificilmente dão conta dessas tantas linhas possíveis de leitura deste conjunto de análises, genealogias, insultos, frases de efeito, influências de teorias e da disputa das ruas.
Mas desejam instaurar um debate inescapável ao ativismo contemporâneo: “para o que segue o mundo”.
Ler o artigo na revista Tuíra nº 02.
- 1. Lendo o seguinte artigo será possível encontrar uma boa organização deste histórico: Guerrilha performática: arte-política e terrorismo estatal, de William Osório. Disponível em: http:/www.artes. uff.br/uso-improprio/trabalhos- completos/william-osorio.pdf
- 2. Disponível em PDF no site da editora: https:/edicoesbaratas. wordpress.com/2013/07/04/a- insurreicao-que-vem/
- 3. TGV é um sistema de trens de alta velocidade. Tradução livre. Comitê Invisível, 2019. Prefácio da edição italiana. Original disponível em: https:/www. ilfattoquotidiano.it/2019/03/15/ comitato-invisibile-il-libro- dei-nemici-numeri-uno-del- macronismo-dalla-rivolta-delle- banlieue-ai-gilet-gialli/5039101/).
- 4. Idem
- 5. Idem.
- 6. Tradução livre. Original disponível em: https:/livingtogetherintheheartofthedesert.files.wordpress. com/2014/02/agamben-elements-for-a-theory-of-destituent-power-1.pdf
- 7. Michael Hardt e Antonio Negri. Assembly: a organização multitudinária do comum. Tradução de Lucas Carpinelli, Jefferson Viel. Editora Filosófica Politéia, 2018, p. 49.