Ver com um olho
O título é em referência ao grande poeta português, Luís de Camões. A apresentação usa a perda do olho direito como uma metáfora para problematizar o lado da expansão portuguesa que até há pouco merecia menos destaque nas percepções portuguesas do significado da sua própria história. A questão que a apresentação coloca, portanto, consiste em saber de que maneira certas coisas se furtaram ao olhar português e como a sua recuperação pode contribuir para a reconciliação de Portugal com os valores usados como lentes na interpretação gloriosa do seu passado.
Sei que os ânimos andam muito exaltados por aqui. Por isso, quero dizer logo que venho em paz. Como a gente diz na minha língua co-materna, o Tsonga, mathlarhi hansi, isto é, “armas no chão”. Se eu trouxesse armas comigo e as pusesse no chão, tenho a certeza de que perceberiam o gesto como uma oferta de paz. Parece-me mais evidente do que produzir um lencinho branco do bolso, ou agitar uma folha de oliva, mas, pronto, as mensagens dos brancos são muito mais complexas e sofisticadas… Hei-de voltar a esta questão dentro de instantes, pois ela é central para o que gostaria de partilhar como sinal de gratidão por me terem convidado a fazer parte deste interessante projecto.
Então, eu venho em paz e para enfatizar isso gostaria de admitir algumas coisas públicamente. São três. A primeira é, digamos, ética. Eu não parto do princípio de que ser vítima de maus tratos faça de mim uma pessoa eticamente superior. E isto não é porque talvez eu mereça esses maus tratos. Não. O comportamento moralmente repreensível diz respeito ao seu próprio autor. Quem se porta mal tem um problema com os valores que o definem como ser moral portador de consciência ética. Essa foi a primeira coisa que, como disse, é de natureza ética. Ela tem desdobramentos nas outras duas coisas.
Antes de mencionar a segunda, gostaria de partilhar convosco o relato dum evento histórico de grande significado para Portugal, nomeadamente a derrota do Imperador de Gaza, o famoso Ngungunhana, às mãos do destemível Capitão Mouzinho de Albuquerque. Gungunhana era um déspota que se entregava a actos a todos os títulos vis, pelo menos na perspectiva portuguesa que, como sabemos, do ponto de vista civilizacional é maior. Não tenho nenhum problema em admitir isso. Eu aprendi e continuo a aprender dos portugueses, desta grande nação que tão bem representa os ideais europeus. Pois bem, no outro dia estava a ler a biografia de Mouzinho de Alburque escrita pelo General Ferreira Martins nos anos sessenta. A minha atenção ficou prresa à descrição que nela se faz do momento de entrada triunfal de Mouzinho e seus homens em Chaimite, “espécie de de cidadade santa dos vátuas”, como o General Martins escreve. “Vátuas” é o nome pelo qual era designado o povo liderado pelo déspota africano.
O General Martins escreve, e eu cito:
Propositada e hàbilmente procurou Mouzinho humilhar o potentoso régulo diante dos seus súbditos, forçando-o a sentar-se no chão (o que ele nunca fazia), acto de força que, na guerra preta, que já então mais confiada se aproximara da palissada, ‘produziu grande alarido, batendo com as zagaias nas rodelas, em sinal de aplauso e espanto. Em seguida mandou fuzilar o Manhune, o alma danada do Gungunhana e nosso inimigo de sempre, e o Quêto, o único irmão do Muzila (pai do Gungunhana e seu antecessor no império vátua) que fizera a guerra contra os portugueses e tomara parte no combate de Coolela. E os dois fuzilamentos, ali mesmo, diante do régulo sucumbido, foram novo motivo de entusiasmo entre os assistentes pretos, que o manifestaram ‘com ruidosos e repetidos bayetes (vivas!), o que mostra bem que eles confundem perfeitamente a força e coragem com a crueldade e que é absolutamente necessário destes exemplos para os dominar e fazermo-nos respeitar.
Para os efeitos da minha argumentação aqui considero o fuzilamento sumário dum “inimigo de sempre de Portugal” assim como a constatação segundo a qual o facto de os “assistentes pretos” fazerem confusão entre a força e a coragem, por um lado, e a crueldade, por outro, ser útil ao desiderato de dominação e de Portugal se fazer respeitar constatações perfeitamente inofensivos reveladores da grande responsabilidade que pesa sobre uma nação civilizada como Portugal. A segunda coisa, portanto, parte daí mesmo e é também de natureza ética. Falta-me imaginação para ser sofisticado.
É assim, quando duas pessoas que têm sistemas ético-normativos diferentes fazem mal uma a outra, surge um problema complicado. Primeiro, esse acto “maldoso” pode, na perspectiva dum dos sistemas ético-normativos, não consubstanciar maldade pelo que a conversa aí fica complicada. Se os meus antepassados “vátua” – como se diz por aqui – se arrogam o direito, como guerreiros, de massacrar crianças, violar mulheres e queimar culturas dos seus inimigos porque isso é compatível com o seu sistema ético-normativo, o português que for vítima disso em guerra com os “vátuas” – e nós sabemos pelos livros de história, mas também por tudo quanto se diz sobre a cultura cristã, sobre o Iluminismo e, naturalmente, sobre o Lusotropicalismo, que os portugueses são um povo de brandos costumes incapazes de fazer mal a uma mosca, não pode fazer muito; não são um povo “selvagem”, pronto! A questão então é de saber se os portugueses teriam o direito de exigir desculpas dos “vátuas” por eles terem feito aquilo no qual acreditam.
Acho que não. O único que os portugueses podem esperar é que seja possível demonstrar que o comportamento “vátua” está em contradição com o sistema de valores “vátua” e chamar atenção aos “vátua” para esse facto. Vimos, porém, que eles confundem força e coragem com crueldade, logo, são partidários dum sistema normativo algo problemático que provavelmente não é incompatível com esse tipo de excessos.
Dito doutro modo, se um português fosse capaz de mostrar que os “vátuas” agiram duma maneira que viola os seus próprios preceitos morais, seria legítimo que o português esperasse dos “vátuas” que eles se envergonhassem do que fizeram. O português não pode exigir isso. Como pessoa civilizada que é só pode esperar que isso aconteça. Se não acontecer, o que é provável, pois os “vátuas” são conhecidos como pessoas que convivem alegremente com as suas incongruências, o português não tem outro remédio senão engolir em seco. Pior ainda, os “vátuas” têm o hábito de se defenderem com recurso a duas falácias.
Uma consiste num ataque à pessoa, isto é procuram por coisas feias dos portugueses – por exemplo, deixarem-se eliminar pelo Uruguai ou não deixarem estrangeiras subirem autocarro… – para sugerirem a ideia de que eles não merecem melhor tratamento. A resposta da ética é curta e simples: dois males não perfazem um bem!
A outra falácia consiste no relativismo histórico segundo o qual, os actos em questão, não estariam em contradição com os valores defendidos na altura em que foram praticados. Os “vátuas” não são cristãos, mas se fossem esse recurso ao relativismo histórico soaria assim: história bíblica da Lot…
O problema com esta postura é que faz da moral algo parcelado e, por isso, pouco vinculativa. Essa é a terceira coisa que gostaria de dizer. É também de natureza ética. Continuo o mesmo orador, portanto, a falta de imaginação persiste. É uma espécie de niilismo. Essa postura desiste da nossa humanidade, pois não contempla a possibilidade de aprendizagem do passado. A experiência humana torna-se numa série de fragmentos sujeitos à conveniência particular. O que vale é apenas o que vale num certo momento. Se um “vátua” matou, violou e aterrorizou há dois séculos, mas hoje pensa diferente, prontos, a vida continua. Foi o tempo!
Mas aí eu me pergunto: que valor tem o meu compromisso de hoje com o respeito pela dignidade humana se ele não me obriga não só a torcer o nariz perante o que os meus antepassados fizeram, mas também a honrar os valores que defendo hoje distanciando-me desse passado tenebroso? Mas, prontos, estou a falar dos “vátuas”, um povo “bárbaro” naquele jeito inocente típico de comunidades que se encontram ainda nos antípodas da civilização e que, por isso, precisam ainda do braço firme e condutor de quem por uma razão superior soube extrair da sua própria trajectória histórica ensinamentos valiosos consubstanciadores duma moral universal superior. Esse tipo de contradição é normal em povos como os “vátuas”. Não são cristãos para a gente estranhar, por exemplo, que não sejam capazes de assumir responsabilidade por erros cometidos por antepassados distantes, mas regularmente vão à Igreja expiar pecados dum casal sem espinha dorsal para dizer “não” a uma serpente. Nem vale dizer que pena que Adão e Eva não tenham sido chineses para, ao invés de dar ouvidos à serpente, a tivessem comido na hora!
Posto isto, já posso começar a dizer algumas coisas sobre o título que dei à esta comunicação: “Ver com um olho”. Acho uma coincidência feliz que o grande trovador da grande nação que Portugal é seja uma pessoa que só via com um olho, pelo menos durante uma boa parte da sua vida adulta. Parece-me uma metáfora fortuita que nos ajuda a entender o rumo que as discussões sobre a História passada e presente têm assumido. Quando comecei a falar fiz recurso a uma expressão da minha língua materna, “mathlarhi hansi” (armas no chão) para não só dizer que vinha em paz, mas também para destacar algo que torna o encontro de hoje e de todos os que se seguirão no contexto desta excelente iniciativa, nomeadamente que a História, mais do que ser o sentido que conferimos ao passado, é um espaço de inteligibilidade mútua. Se somos capazes de manter esta discussão sobre responsabilidade nacional, pecados passados e presentes, racismo, multiculturalismo, etc. é porque, duma ou doutra forma, nos entendemos, mesmo que não estejamos de acordo.
Infelizmente, neste tipo de discussões temos a tendência de descurar este aspecto. Se nos entendemos é porque temos algo em comum, a nossa humanidade, que vai para além do consenso em torno do significado exacto que este ou aquele termo, este ou aquele evento histórico, este ou aquele acto político devem ter. A base desse entendimento não é necessariamente uma moral geneticamente partilhada. Esse foi o erro, se me permitem, que uma certa maneira de abordar o mundo que emergiu da expansão europeia de há cinco séculos – e que continua ainda – cometeu. Confundiu o particular com o geral, o local com o universal e tomou um momento historicamente fortuito – o ascendente europeu sobre o resto do mundo – como a confirmação duma eleição particular à condição de normal universal na base da qual tudo o resto seria julgado. O que aconteceu foi algo como interpretar o acaso que deu a Portugal Cristiano Ronaldo, o melhor futebolista da actualidade, como a confirmação do direito inevitável, necessário e incontornável que Portugal historicamente teria de determinar o que é bom para o futebol e como ele deve ser praticado. Assim, a forma específica como se joga futebol em Portugal passaria a ser a norma na base da qual se distribuiriam notas às outras maneiras de jogar futebol no mundo, incluindo a prerrogativa de Portugal de usar os outros – e, como já acontece, se servir deles – para promover a sua maneira de jogar futebol como destino incontornável da humanidade.
A base do nosso entendimento, contudo, não é isso. A base do nosso entendimento é a nossa capacidade de aprendermos dos nossos actos. Entendemo-nos porque somos capazes de aprender a avaliar situações, distinguir o que é bom do que é mau e, por via disso, produzirmos normas éticas que estão acima das práticas e costumes locais. Entendemo-nos porque somos sujeitos históricos e como tal temos esta capacidade de dela aprendermos. Aprender da História significa sabermos quando um acto não pode ser repetido e, se for, quando devemos torcer o nariz. Aprender da História não significa ter sensibilidade para as circunstâncias temporais e culturais que justificam certos actos. Significa, isso sim, ter uma ideia bem clara das razões que devem levar todo o indivíduo sensato a condenar uma acção ainda que ela, aos olhos de quem a praticou, ou do tempo em que ela foi praticada, faça todo o sentido. Aprender da História significa reforçar o compromisso com o que sabemos hoje distanciando-nos do que aconteceu ontem.
“Ver com um olho” significa promover uma miopia cultural que reduz os grandes feitos de Portugal à mera manifestação de acidentes históricos independentes duma narrativa normativa trans-histórica. O que faz dos “Descobrimentos” uma grande epopeia, isto é, o que faz do contacto entre a África e a Europa pelo intermédio de Portugal, um grande momento da História da humanidade não é o que eles dizem sobre o gênio português, pois mesmo os “vátuas” teriam içado velas à procura de lugares menos frios e de melhores condições de vida se em algum momento da sua existência tivessem tido a impressão de estarem a viver mal. O que faz dos “Descobrimentos” uma grande epopeia – eu uso o termo “Descobrimentos” ciente de toda a controvérsia que ele encerra – é a capacidade de deles se extrair algo que reforce o sentido de História como espaço de inteligibilidade mútua. Essa inteligibilidade mútua radica na empatia, na nossa capacidade de sentir a dor do outro bem como na resistência à tendência de encolher os ombros e dizer que só certas dores humanas é que nos incomodam.
Como descendente de “vátuas” que vive num mundo fruto desse encontro de culturas, leio com revolta e repulsa o relato feito pelo General Martins. Nisso não me entrego a nenhum anacronismo normativo. Aplico simplesmente o que a convivência me ensinou, nomeadamente que como ser humano devo me distanciar de qualquer acto vil em qualquer momento da História.
Artigo para comunicaçao no projeto NAU! a decorrer no Porto.