A necessidade do Teatro em Moçambique

Em Moçambique as pessoas necessitam do mais básico para viver: o teatro! O teatro em Moçambique faz-se com as ruas (o palco) e os outros (interlocutores). As ruas estão ao rubro, o teatro é por todo o lado, algazarra, desorganização organizada, dança, constante representação. Tudo razões para uma actuação gloriosa.

Numa das ruas que descem para a baixa da cidade um mulandi (preto) quer actuar um pouco, dar um “pezinho” de teatro. O único objectivo: encontrar um mulungo (branco) qualquer com uma aparência talvez ingénua e que pouco ou nada saiba dançar. À distância procede ao casting e escolhe um para contracenar. Por acaso (ou não) fui eu o interceptado eleito.

Num momento único de empatia e puro êxtase sentimental revela-se-me o polícia de alfândega que há poucos meses atrás me recebeu cordialmente no aeroporto internacional de Maputo. Um  sentido abraço e uma pequena conversa acerca do significado que foi e é voltarmo-nos a avistar depois do “fatídico” dia de entrada nos palcos de Maputo. A coincidência parece ser tal e demonstra tanta atenção por parte do nosso actor/colega que acabamos por nos sentir importantes, também actores e  orgulhosos do nosso porte. Então soltamo-nos e contracenamos em plena descida para a baixa da cidade.

A cena prossegue, a empatia cresce, em êxtase e, por segundos, parece que a vida teatral pode mesmo acabar por ali. De repente, num volte-face abrupto, o actor fala-nos do assunto delicado que é o seu carro ter ingloriamente avariado ali mesmo ao lado. Foi nesse preciso momento que me ocorreu que o senhor meu pai já me havia contado ter feito aquela peça há uns bons anos atrás, quando, também ingenuamente branco, por ali passeava. A euforia de estar a participar em tamanha obra, e o choque também violento de ter consciência que aquilo era realmente e apenas teatro, fez com que apenas conseguisse na minha fala  e no meu semblante expressar que não o ia poder ajudar. Depois, ao caminhar sozinho, senti que até gostava de o ter feito, mas algo me dizia que já não tinha meios para actuar…… pois eu já conhecia a peça!

Parece que o teatro é assim mesmo: tem a intenção de se repetir, e assim foi, quando por mais algumas vezes o mesmo actor me abordava para mais umas actuações, destas vezes sentia que me restava o contentamento descontente de acumular representações ao meu currículo vitae.

O teatro, tal como a vida, é assim mesmo em Moçambique, nunca podemos perder a vontade de o representar e de sermos representados. Porque a todo o momento estamos a vivê-lo. O teatro é comunicação. As ruas são um palco pequeno para tantas coincidências e acasos em que o estado dos actores é quase sempre de delírio e dança em terra firme. Vendedores da Calamidade, obreiros da Igreja Universal, cobradores, chapeiros, e o mais insuspeito transeunte, todos eles têm nas veias o teatro. Tudo se desenrola sob o clima da actuação permanente, original, desapegada e descontraída.

Menos descontraído, achei um actor em cima do palco do  Teatro Avenida. A peça era A Menina Júlia e, na casa desta, existia um imponente segurança, vestido a rigor e armado com um altivo pastor-alemão. O papel era pequenino mas inesperadamente de grande exigência, pois o segurança, ao invés de demonstrar um controlo perfeito do animal (como assim se exige a um segurança), podia ver-se na sua cara e trejeitos corporais que não se sentia minimamente à vontade com a presença do alemão que ele próprio possuía.

Então, sempre que o lombo do alemão se entrelaçava na escassa trela, o segurança ficava como que em pânico a tentar, habilidosamente e à distancia, fazer com que, por milagre (que curiosamente acabava por acontecer), o nó se desfizesse. Premonitório deste impasse alemão/segurança pareceu-me o facto de antes da peça intervir uma espécie de “insuspeito transeunte” exclusivamente delegado a se alertar e alertar também o público para que em nenhum momento se instalasse o pânico pois naquela encenação existia um actor muito muito muito especial – o alemão.

O teatro parece estar condenado a misturar-se com a vida. O Teatro Gungu é um exemplo de uma companhia que o faz de forma propositada. E bem.Sentia-me no circo. Talvez porque a minha experiência de circo também seja muito especifica, mas não só. Circo pela quantidade de pessoas, pela algazarra, pelo falatório e reboliço constante dos intervenientes e público, pelo êxtase da plateia e pela quantidade de pipocas que por ali sobrevoavam.

A peça que vi do Teatro Gungu era uma espécie de possibilidade de retrato estereotipado da sociedade moçambicana. A mamã África, o papá África que “tinha curso de ligeiro/pesado dos que dão cabeçada”……ao filho, o álcool, a violência doméstica, os tchilings, as amantes e muitas outras peripécias harmoniosamente encaixadas e bem representadas. Foi uma experiência alucinante e de repente parecia estar a assistir a uma condensação de tudo aquilo que se ouvia dizer ser a vida real das pessoas lá fora.

E, lá fora, o homem da rua que descia para a baixa da cidade, continuava em êxtase a reencontrar pessoas para comemorar o simples facto do teatro ser uma necessidade.

 

por Frederico Bustorff Madeira
Palcos | 8 Março 2011 | arte performativa, gungu, interacção, moçambique, teatro moçambicano, vida