As origens do samba - entrevista a Spírito Santo
Educador, pesquisador, escritor, artista especializado na música afro-brasileira e artesanato musical (organologia), professor visitante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde desde 1995 coordena o projeto de extensão Universitária Musikfabrik, o brasileiro Spirito Santo, (Antonio José do Espírito Santo), 64 anos, é ainda uma pessoa que não aceita as verdades estabelecidas sem questioná-las, doa a quem doer.
O título do seu livro evidencia uma relação entre o samba e o funk. Que relação é essa?
Há uma forte relação sim, mas ela é mais sutil do que parece. É que ambos, samba e funk, são gêneros musicais diaspóricos e irmãos. São uma espécie de síntese urbana da música tradicional que veio da África para as Américas, os work songs, o blues e o rag time dos EUA e coisas como o maxixe dos Oito batutas e Pixinguinha por aqui, os cantos de trabalho das plantations de lá e daqui, saídos de gêneros rurais como jongos, congadas, vissungos, etc. A relação é bem estreita. Uma história que não se explica sem a outra. Isto aparece nítido na evolução do samba carioca.
No livro você questiona algumas verdades estabelecidas a partir da própria origem do samba…
O samba, tal qual o conhecemos, muito provavelmente nasceu do jongo tradicional (manifestação sociocultural dos escravos da área Congo-Angola trazidos para as plantations de café no Rio de Janeiro). Pelas conclusões da minha pesquisa o ritmo seminal do samba teria tido como origem remota entre outros ritmos da área da Angola atual, o kaduke, que é uma dança que era moda em Mbaka (Ambaça) ao tempo de Capello e Ivens (meados do século XIX). Os escravos trazidos para cá nos anos finais da escravidão trouxeram em sua memória esta dança, genericamente conhecida aqui como batuque (e a música a ela correspondente). Esta minha teoria, em parte, é baseada na opinião de especialistas angolanos como Mário Rui Silva e Liceu Vieira Dias, do ‘Ngola Ritmos’, por exemplo.
Mas há outras explicações para esta origem…
A confusão que criaram aqui, já no âmbito de nossa música urbana, nasceu do fato de a palavra samba, num fenômeno típico da cultura popular urbana ou de massa que nascia ali mesmo naquela época, estar virando uma marca muito forte para o nascente mercado fonográfico e radiofônico brasileiro como sinônimo de ‘música popular de negros’, numa época em que o mainstream, o conceito de ‘música para se vender’ também estabelecia as suas estratégicas mercadológicas iniciais.
O fato é que o ritmo que acabou vingando e que ganhou a disputa para ser batizado por fim pelo mercado para sempre como samba, acabou sendo não o maxixe-novo, praticado na Praça Onze da Tia Ciata por músicos populares de elite como Pixinguinha, Donga, etc., mas sim uma fusão de ritmos ‘congo-angolanos’ trazidos para a Corte após a abolição da escravatura pelos negros oriundos do êxodo que se deu das fazendas de café nos anos finais da escravidão brasileira. Eu acredito que é na área do Cais do Porto, onde estes egressos ex-escravos das fazendas de café passaram a trabalhar como carregadores, portanto, que o «verdadeiro» ritmo do samba, tal qual o conhecemos, é fermentado e se cristaliza.
Acredita que se pode determinar o local exato, o espaço físico, o berço do samba?
Acho que não. O que aconteceu foi que a Praça Onze, área boêmia e residencial da classe média negra do Rio a partir do início do século XIX, acabou sendo eleita pela intelligentsia carioca (cronistas, jornalistas, etc.) como sendo lugar de gente negra ‘superior’, espécie de colônia de pretos remediados vindos principalmente da Bahia.
A historiografia do samba por este meu raciocínio teria perdido o foco da questão, concentrada que estava em oficializar uma história do samba restrita apenas a esta limitada área baiana, subestimando todo o resto (a maioria bantu), resto este que, ironicamente seria exatamente a matriz, a raiz de onde o samba ‘de fato’, realmente teria nascido.
Porque isso teria acontecido?
As razões desta marca etnológica do samba para mim são, em primeiro lugar a lógica geocomercial do tráfico transatlântico que priorizou o sequestro para o Brasil de gente da área do antigo Reino do Kongo (e não gente yoruba-nagô, da área da Nigéria atual, como a maioria – contra todas as evidências históricas – ainda acredita) e, em segundo lugar as especificidades assumidas pela estratificação social no Brasil – no Rio de Janeiro e em Salvador em especial – que se caracterizaram pelo isolamento de negros descendentes daqueles escravos em guetos, subúrbios e favelas ou em periferias apartadas das áreas de classe média para cima (brancas), possibilitando a estas comunidades isoladas a manutenção de hábitos ancestrais e a criação de uma cultura específica, com fortes marcas de sua origem africana. Ou seja, ironicamente, se não houvesse racismo no Brasil talvez não existisse samba. Assim o livro tenta contar com o máximo de evidências possível, todos os detalhes desta evolução do gênero samba – que é bem mais complexa do que narrei aqui – inserindo a sua história em seu contexto histórico social.
E o que representa então o samba do Jorjão nessa evolução?
Aí que está. O Jorjão foi um mestre de bateria que, com muita ousadia misturou o samba e o funk numa performance de bateria de samba, no desfile de 1997, dirigindo a escola de Samba Unidos do Viradouro. O Jorjão intuiu esta linha de tempo e esta relação ‘afro-diaspórica’. Foi execrado pelos fundamentalistas. Eu, que estava no júri e dei nota máxima a ele fui castigado e defenestrado do júri da Liga das Escolas de Samba-Liesa. Usei então a performance emblemática do Jorjão como conceito para todo o livro.
Afinal, existe alguma diferença entre samba e Escola de Samba?
As escolas de Samba e o samba são duas coisas bastante distintas. Poucos se dão conta disto, mas as escolas de Samba antes eram Ranchos Carnavalescos, uma coisa que vem remotamente dos ‘Pastoris’ baianos que, por sua vez são originários das ‘Lapinhas’ de origem lusitana, muito populares em Salvador, Bahia, no início do século XX e em boa parte do Nordeste brasileiro. A forma geral dos desfiles das escolas é até hoje isto aí: Pastoris modernizados. Ocorre que a ‘trilha sonora’ destes desfiles, que eram antes valsas ou marchinhas com sotaque europeu, a partir da década de 30 foi trocada pelo ritmo do samba que ficou sendo a partir daí hegemônico, a música oficial dos desfiles. Ou seja, a rigor, o samba é apenas a parte musical dos desfiles (e coreográfica também, claro). O curioso é que quem trouxe tudo isto para o carnaval do Rio – inclusive as influências lusitanas – foram os negros baianos, os mesmos que criaram o Candomblé.
O samba é para mim, portanto geneticamente congo-angolano, com um ou outro ingrediente de ritmos yoruba-nagô, saído do candomblé, somado a diversas e dispersas influências outras da música negra geral da diáspora, com acentuadas marcas da música negra norte-americana, inclusive.
O livro questiona, em algum outro aspeto, a versão oficial sobre as origens da cultura africana no Brasil?
O que o livro questiona com mais veemência é que estas evidentes origens africanas de grande parte da cultura do Brasil não são majoritariamente nigerianas (nagô) como se alega aqui de forma mais ou menos recorrente, mas, ao contrário muito mais bantu ou angolanas. Há também no samba influências evidentes da cultura negra norte-americana – a tese do caráter diaspórico do samba que ressaltei – também muito combatida pelo pensamento oficial que nega, veementemente, esta influência por causa de um nacionalismo xenófobo bem questionável. Questiono enfim esta ‘supremacia nagô’ de forma radical. Este é, aliás, o cerne do debate que o livro propõe. Tento colocar em debate a proposta de que a história do negro no Brasil e todo o resto neste campo precisa ser total e urgentemente revisto. É uma distorção etnológica antiga e muito grave, pois contaminou tudo no campo de nossas ciências sociais com seu viés sutilmente racista. O processo de como esta distorção foi sendo construída ao longo do tempo, por vários agentes, aparece bem nítido no livro.
Onde então mais se evidencia a contribuição yoruba-nagô na música brasileira em geral?
Na música do candomblé, que no Brasil é muito bela, mas está restrita, quase que inteiramente ao âmbito litúrgico, do ritual religioso. É preciso frisar que a música popular urbana de Salvador, Bahia, e do seu Recôncavo (com exceção dos afoxés mais tradicionais) é, por sua vez, predominantemente bantu, com ênfase no Samba de Roda e na Capoeira.
O trabalho de uma vida
Ex-preso político, esteve encarcerado mais de dois anos nas masmorras da ditadura militar; filho de pai descendente direto de angolanos que no século XIX foram trazidos para Minas Gerais; com mais de 40 anos dedicado à música, Spirito Santo resolveu colocar no mercado o fruto de suas pesquisas lançando o seu primeiro livro Do Samba ao Funk do Jorjão, um ensaio etnomusicológico que traz muitas reflexões inéditas acerca das origens e dos significados do samba, o ritmo que define em grande parte a alma do povo brasileiro.
Spirito Santo é na verdade um pesquisador que esteve sempre à frente na luta pelo resgate da história e dos valores culturais da população de origem africana no Brasil. Passados mais de trinta anos desde que criou o grupo musical Vissungo, e com ele realizou uma ampla pesquisa sobre música tradicional africana na região do sudeste e nordeste do Brasil, persiste no projeto que marcou toda a sua vida.
Apesar de ter em vista a publicação de outros ensaios, ocupa-se agora da retomada da pesquisa de campo sobre cantos de trabalho de mineiros escravos, vindos de Angola no século XIX para Minas Gerais para realizar um documentário que terá que ser filmado no Brasil e em Angola.
entrevista publicada originalmente na revista Africa 21