Brasilin, Cabo-Verdão
Se só na última década do século XX a música cabo-verdiana começou a ser conhecida no Brasil – como, de resto, em grande parte do mundo –, o mesmo não aconteceu no sentido inverso. Sempre que se fala ou escreve acerca da própria música cabo-verdiana, a influência brasileira é apontada, seja no que diz respeito à morna, cuja origem já foi apontada como estando na modinha, seja o landu, muitas vezes associado ao que no Brasil era designado como lundu, de origem africana.
Contudo, os estudos até hoje publicados não esclarecem a que ponto esta provável influência pode também ter sido no sentido Cabo Verde-Brasil, em tempos remotos, e, portanto, se, ao receber e recriar músicas de lá, Cabo Verde não estaria “repescando” uma nova versão de algo que já tinha sido seu.
Num dos textos do seu livro Combates pela História, o historiador António Leão Correia e Silva apresenta uma versão alternativa à letra de Pedro Rodrigues que diz “Cabo Verde é um brasilin”, afirmando, por outras palavras, que, de certa forma, o Brasil é que é um “cabo-verdão”.
Há muito que investigar por aí. Fiquemos, para já, com o que há escrito sobre a influência no sentido Brasil-Cabo Verde. Pedro Cardoso, no seu livro Folclore Cabo-verdiano (publicado em 1933 e reeditado em 1983 em Paris pela Solidariedade Caboverdiana), dedica um capítulo a estes fluxos.
Depois de lembrar que desde os primeiros tempos da colonização os portos do arquipélago recebiam regularmente navios brasileiros e que Cabo Verde foi o destino da deportação de dois parceiros de Tiradentes na Inconfidência Mineira – um dos quais, José Resende Costa, tem descendentes na Praia –, Pedro Cardoso aponta o facto de que, na altura em que escreve o seu livro, “só o Porto Grande de S. Vicente continua sustentando relações directas com o Brasil, recebendo e transmitindo às outras ilhas, com os produtos da sua indústria, músicas, cantos, modinhas, expressões e até modas tipicamente brasileiras.”
O escritor Baltazar Lopes da Silva, por sua vez, ao escrever sobre o compositor B.Léza no jornal Voz di Povo, em 1981, fala da grande influência brasileira na juventude cabo-verdiana dos anos 20 e 30, que adoptou novos estilos, maneiras de falar, músicas e danças – o Carnaval, por exemplo, que até então era o tradicional entrudo português, passa a contar com desfiles, até à data inexistentes.
B.Léza foi um claro exemplo disso, e é consensual que a inovação que introduziu na morna, o meio-tom, tenha sido fruto da influência dos tocadores brasileiros que os navios de guerra e mercantes despejavam regularmente no Porto Grande.
Esta afinidade fica também explícita na letra de uma morna, Brasil, alusiva à visita a Cabo Verde do sociólogo Gilberto Freire, no início dos anos 50. Mas também nas muitas marchas de carnaval que compôs, na mais perfeita tradição daquelas produzidas à época no Rio de Janeiro. Poderíamos ainda especular se o próprio nome Floriano, com que baptizara o seu clube cultural na ilha do Fogo, não seria uma alusão ou homenagem ao marechal Floriano Peixoto (1839-1895), um dos primeiros presidentes da República do Brasil.
Outro grande nome da música cabo-verdiana cuja obra revela a influência brasileira é o violonista Luís Rendall, autor de muitos solos em que passeou por vários géneros musicais, como valsas, foxes e sambas, englobados no chamado choro, criado por grupos instrumentais brasileiros do fim do século XIX.
Antes de chegar aos discos que há décadas os cabo-verdianos vêm gravando e nos quais, além de influências, muitos temas brasileiros aparecem mesmo gravados por diferentes grupos, cantores e instrumentistas, vejamos alguns registos que a imprensa cabo-verdiana nos deixou para exemplificar esses contactos.
Em 1938, a selecção de futebol do Brasil, de volta da França, onde fora disputar o mundial de futebol, visita S. Vicente (Notícias de Cabo Verde, 15.07.1983). A confraternização não deve ter sido inferior à de dois anos antes, quando o navio-escola Almirante Saldanha passou pelo Porto Grande, dando pretexto a jantares, concertos e bailes que reuniram, durante alguns dias, a nata da sociedade mindelense e a oficialidade do navio (Notícias de Cabo Verde, 19.10.1936).
A 23.04.1940 é reproduzido por esse jornal o artigo “O Brasil em Cabo Verde”, no qual o jornalista Arnon de Mello (pai do ex-presidente Fernando Collor de Mello), revela, ao fim de uma viagem às ilhas, as suas impressões sobre São Vicente e as afinidades entre o Brasil e Cabo Verde, referindo o samba e a morna.
Em 1951, Gilberto Freire visita Cabo Verde[1]. O Boletim de Propaganda e Informação publica, em Junho, o poema Você, Brasil, de Jorge Barbosa. Em Novembro, Félix Monteiro escreve sobre esta visita, que dará origem à veemente reacção de Baltasar Lopes da Silva (que na altura se encontrava justamente no Brasil, em licença graciosa) ao que o sociólogo escreveu no seu livro Aventura e Rotina, sobre aspectos que observou no arquipélago e que contrariavam as ideias defendidas na altura pelo escritor claridoso.
Falar de Baltasar Lopes da Silva é lembrar Claridade, movimento que deixou patente também os contactos cabo-verdiano-brasileiros, no âmbito da literatura. Como curiosidade, vale referir uma entrevista do escritor João Condé a Alfredo Margarido, publicada pelo mesmo Boletim em Julho de 1959, em que o brasileiro afirma que, dez anos antes, o Jornal de Letras, que dirigia no Rio de Janeiro, tinha 22 assinaturas em Cabo Verde, o que lhe chamara a atenção, diz, por ser muito para um jornal do género em ilhas perdidas no Atlântico…
Por essa altura, era a companhia aérea brasileira Panair que fazia a ligação de Cabo Verde com Portugal, antecedendo a TAP. Através de uma edição d’O Arquipélago de Dezembro de 1963, ficamos a saber que o “Voo da Amizade”, como era chamado, passava a realizar-se três vezes por semana, ao invés de duas, como até então.
Do “Voo da Amizade” à actual ponte aérea para Fortaleza, muita trocas continuaram a ser feitas, por ar, mar, satélite ou mail. Uma novíssima geração de artistas cabo-verdianos que foi respirar os ares e sons brasileiros – como Gamal, Vera Cruz, Isa Pereira, Lúcia Cardoso – desponta com recriações interessantes. Mas, antes de chegarmos a eles, vejamos os que os precederam.
Na música, o que faz sucesso no Brasil também faz em Cabo Verde. Basta entrar num autocarro na cidade da Praia para comprovar que, não fosse o zouk, a hegemonia seria verde-amarela, em várias rádios crioulas. Das letras melodramáticas do que no Brasil se chama “brega” (irmão do “pimba” português), aos alegres pagodes cariocas e axés baianos, jamais esquecendo “o rei” Roberto Carlos nem os temas da novela do momento, música brasileira é o que não falta.
Não terá sido casual – ao contrário, é bastante reveladora do impacto que tinha a música na altura entre o público cabo-verdiano – a escolha do Morango do Nordeste para as campanhas eleitorais, legislativa e presidencial que saíram vitoriosas em 2001. E a música continuou a render em Cabo Verde, mais tarde na voz do cantor Roger, em ritmo de zouk.
Mas já era assim há mais de 50 anos. Tanto que Fernando Quejas, ao começar a cantar em programas de caloiros em Portugal, no fim dos anos 40, interpreta vários temas brasileiros que já levava das tocatinas na Praia, onde chegavam via rádio de ondas curtas as vozes de Nelson Gonçalves, Orlando Silva e Sílvio Caldas e os sambas de Ary Barroso. “A morna e a música brasileira eram as nossas músicas”, afimou-nos o cantor.
Outro músico dessa época, que passou por Portugal e percorreu vários países apresentando-se como “artista afro-brasileiro”, foi o mindelense Eddy Moreno (Adolfo Silva, já referido). Numa fotografia antiga reproduzida há anos num jornal, podemos vê-lo tal e qual o cliché do malandro carioca, com uma T-Shirt às riscas e chapéu de palha de aba curta.
No disco que veio a gravar já nos anos 80, em Paris, pouco tempo antes da sua morte, a composição intitulada Solo B.Léza, que provavelmente terá aprendido de ouvido, pelas cordas do violão do antigo companheiro, é nada mais nada menos que o clássico do choro brasileiro Odeon, de Ernesto Nazareth – informação que ficamos a dever ao conhecimento minucioso do arquivista da RCV no Mindelo, Francisco Sequeira, sobre todo o material que tem sob seu cuidado.
Enquanto Quejas cantava em Lisboa e Eddy corria mundo, em Mindelo o posto experimental CR4AC – também chamado “rádio Pedro Afonso”, alusão ao seu fundador – faz um concurso de vozes com um prémio de 10 escudos, de acordo com a recordação do vencedor de uma dessas iniciativas, na altura um garoto que mal alcançava o microfone, pelo que teve de subir a uma cadeira para poder entoar a moda sertaneja em voga na altura: “Quem me ensinou a nadar… Foi o peixinho do mar…” Era Djosinha, pela primeira vez a cantar na rádio. Ele que saíra de casa às escondidas da mãe, foi denunciado pela sua própria voz, que ela ouviu pelo rádio.
Alguns anos mais tarde, e ainda antes de cantar mornas, Titina estreia-se aos 12 anos num espectáculo de variedades que o Clube Castilho fazia anualmente. O vice-presidente do clube ouvira-a cantarolar em casa e pediu ao pai que a deixasse participar. E assim começa a sua vida de palco, com o samba-canção É Quase Certo, sucesso do momento na voz de Ângela Maria.
Saltando cerca de uma década, e para os estúdios holandeses onde foram gravados os primeiros discos da Morabeza Records, vamos encontrar novamente Djosinha a interpretar temas brasileiros: em Regresso do Voz de Cabo Verde, há Menina Moça, Recado e Mulher de 30. No ano seguinte, no LP Partida, empresta a voz ao célebre tema de Dorival Caymmi, Nem Eu.
Djosinha pode talvez ser considerado o maior cantor cabo-verdiano de música brasileira. Em diferentes discos, como vocalista do Voz de Cabo Verde ou a solo, o seu repertório verde-amarelo conta, entre outros temas, com Mas que Nada, Que Pena, A Volta do Boémio, Por Causa de Você, Bangalô de Chocolate, Coração Vulgar e Súplica Cearense, um clássico do repertório de Luiz Gonzaga cuja letra é a versão brasileira de Sina de Cabo Verde – morrer de fome, sem chuva, ou afogado por ela.
Luís Morais por sua vez, também com o grupo ou nos muitos discos em nome próprio que produziu na sua longa carreira, faz do seu clarinete um “chorão” de primeira. Sem contar Mechê, do Voz de Cabo Verde, que é um disco de choro de cabo a rabo, com temas brasileiros e cabo-verdianos – e possivelmente um dos melhores do grupo – irá gravar, entre outros temas, para citar só os mais conhecidos: Manhã de Carnaval, Água de Beber, Madame Fulana de Tal, Meditação, Caminhemos, Candelária, Serra da Boa Esperança, Você Abusou, Modinha, Porque Negamos, Não Deixe o Samba Morrer, Sábado em Copacabana e Ninguém me Ama.
Neste último caso, faz uma recriação inusitada – para quem conheceu primeiro as interpretações brasileiras – deste depressivo samba-canção que é um símbolo da música de dor-de-cotovelo dos anos 50, ao transformá-lo num saltitante samba, deixando de lado, na sua versão instrumental, a canção e com ela a tristeza da letra.
Por sua vez, Bau, que descobre os recursos do cavaquinho como instrumento solista ao ouvir os choros de Waldir Azevedo – e que cria a sua própria versão do instrumento a partir do brasileiro – vai gravar temas deste compositor em vários dos seus CD, começando por Delicado, no primeiro, Top d’Coroa, até Brasileirinho, no mais recente, Silêncio, no qual aparece também o mestre do violão Dilermando Reis, com Maguado. O tema que abriu o concerto de Cesária no Olympia, em Paris, e do qual resultou o CD com este título, é também de Waldir Azevedo, Guanabarino, intepretado justamente por Bau, na altura líder do grupo que acompanhava a cantora.
Por outro lado, no tema que leva o seu próprio nome, da autoria de Hernâni Almeida, e que Bau grava em Blimundo, não passa despercebido como trecho incidental os inconfundíveis acordes de Berimbau, de Baden Powell. Mas o celebrado violonista brasileiro aparece muito antes disso na cena discográfica cabo-verdiana.
Baden Powell terá sido, nos anos 60, uma das influências do jovem Humbertona, que nos apontou os discos brasileiros como uma das ferramentas do seu aprendizado ao violão e veio a gravar, de Powell, Consolação, naquele que foi o seu verdadeiro encontro com os sons brasileiros: o LP Stora Stora, com o seu primo Waldemar Lopes da Silva e o brasileiro Marcelo Melo – mais tarde fundador, no Recife, do Quinteto Violado.
Há no disco temas cabo-verdianos e brasileiros, e entre estes podemos ainda destacar Asa Branca (Luís Gonzaga), Canta Maria (Geraldo Vandré), Viramundo (Gilberto Gil) e Samba Erudito (Paulo Vanzolini). Um LP histórico, seja do ponto de vista dos encontros Cabo Verde/Brasil, seja da luta pela independência, pois a PIDE proibiu a entrada do disco no arquipélago com a capa, que trazia uma fotografia de Waldemar e Humbertona, na altura já conotados com o PAIGC.
Ainda nos anos 70, mas sem conotações políticas nem as preferências musicais dos universitários de Louvain, em Paris e arredores o grupo Les Flammes alinhava com uma música brasileira mais popular, ao gosto das comunidades cabo-verdiana e portuguesa que frequentavam os bailes animados pela voz de Mário Pop e o grupo Les Flammes.
Além de tocados nos bailes, foram gravados por este grupo vários temas de Roberto Carlos e outros sucessos do momento no Brasil, como Eu Digo Adeus, Proposta, Amada Amante, Além do Horizonte, Sorria, Atitudes, entre outras. A maior parte, músicas que os próprios brasileiros mais jovens desconhecem, de compositores como Odair José ou Luís Américo, mas inesquecíveis para quem foi por elas bombardeado na época.
Enquanto isso, em Lisboa, Longino grava Maria, Eu Te Amo, A Distância e o antigo samba Laranja Madura. O Voz de Cabo Verde, já com nova formação, ataca com O Show já Terminou, Por Causa de Você, Sou Filho da Véia e Pare de Tomar a Pílula. Pouco anos depois, será a vez de Leonel Almeida gravar Você e Retalhos.
Amândio Cabral – com Manhã de Carnaval, num disco dos anos 70 gravado nos EUA –; Manecas Matos com dois sucessos de Maysa – Ouça e Meu Mundo – no seu único LP; Cotchy como vocalista do efémero Ques Moce com A Volta do Boémio (que vez por outra ainda podemos ouvir na voz de Paló, em actuações na Praia), são outros casos de uma longuíssima lista. Sem esquecer Cesária Évora – Negue, Beijo Roubado e, em dueto com Marisa Monte, É Doce Morrer no Mar, incluída na edição brasileira de Café Atlântico.
Albertino (Acaba a Valentia), Teresa Lopes da Silva (Sinhá Maria), Celina Pereira (Avé Maria no Morro), Manuel de Candinho (Mágoas de Cabocla) e o grupo de rap Triumph, este a retomar a antiquíssima marchinha Mamãe eu Quero, são mais alguns exemplos.
A música brasileira, como se vê, atravessa um vastíssimo leque de intérpretes e grupos cabo-verdianos. Por outro lado, longe das hierarquias estabelecidas pela crítica do outro lado do Atlântico, o repertório brasileiro destes artistas é de um notável eclectismo, reunindo num mesmo saco desde o panteão mais elitista da MPB e do samba tradicional – Tom & Vinícius, Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho, Ataulfo Alves… – ao mais popularesco e descartável. E às vezes, até num mesmo disco, como Internacional, de Luís Morais, onde encontramos tanto o clássico Berimbau, de Baden e Vinícius, como Olha que Coisa Linda, do breguíssimo Lindomar Castilho.
No sentido inverso, de gravações brasileiras de música cabo-verdiana, pouca coisa há a apontar. Alcione terá sido a pioneira, ao gravar num disco de 1983 o tema Regresso, também conhecido como Mamãe Velha, cuja letra é um poema de Amílcar Cabral. Em 2001, reaparece em São Vicente di Longe de Cesária Évora, em dueto com Caetano Veloso.
Carlinhos Brown, por sua vez, em Omelete Man, gravou Direito de Nascê, de Manuel de Novas, mas com a letra vertida para o português. Nesta mesma linha, o menos conhecido Ray Jo (Raimundo José) gravou algumas coladeiras num CD intitulado Cabo Verde e Amarelo. Martinho da Vila, em Lusofonia, apresenta versões de Dança Má Mi Criola (Toy Vieira) e de Nutridinha (Ti Goy), contando nesta última com a participação de Celina Pereira.
Há inda a referir o Quinteto Violado, cujo fundador, Marcelo Melo, trazia dos tempos de estudante na Bélgica a memória dos temas cabo-verdianos. Em 1988 o grupo foi convidado a actuar em Cabo Verde, do que resultou, no ano seguinte, o LP Ilhas de Cabo Verde, cuja gravação teve como consultor Nhelas Spencer, de quem o disco traz Sodade, Tem Pena de d’Mim, além de Fidjo Magoado, de Jotamonte, e vários temas populares.
Século XXI. Entre os mais recentes exemplos de influência ou inspiração brasileira na música produzida em Cabo Verde podemos citar: Djinho Barbosa, que foi estudante no Brasil e em cujo disco de estreia, Trás di Son, transparece algo do som mineiro de Flávio Venturini, Tavinho Moura e companhia… Isa Pereira e o irmão Valdo, que no regresso da universidade carregaram para Cabo Verde várias ideias de fusão, que vão revelando pouco a pouco nos seus concertos… Lúcia Cardoso, também ela estudante no Brasil, que surpreendeu ao voltar à Praia para as suas primeiras actuações em público com um repertório da mais sofisticada MPB…
Danae, por sua vez, reeditando a estratégia escolhida por Fernando Quejas há meio século, principia a sua discografia com sotaque brasileiro. Quanto a Mayra, fã de Caetano Veloso, embora não tendo gravado nenhum tema brasileiro no seu primeiro disco, teve sempre um ou outro no seu repertório em palco, para além de ter-se cercado da cumplicidade musical dos instrumentistas brasileiros que a acompanham e de contar com a participação, em Navega, do bandolim de Hamilton de Holanda. Jacques Morelembaun, por sua vez, entre outros músicos brasileiros, aparece no segundo álbum.
Lura, que há já algum tempo encontrou o seu rumo, passou anos, no início da sua carreira e sobretudo no palco, a imitar as intepretações da brasileira Alcione, coisa para a qual a sua voz poderosa estava particularmente apta. Tal como Diva Barros, que ainda não deixou emular a “Marrom” (este texto teve a sua primeira versão escrita em 2004), mas que certamente o fará, quando por sua vez encontrar um caminho próprio.
Acrescente-se à lista anteriormente apresentada o tema Corintiano, que Kim Alves gravou em Dança das Ilhas, numa homenagem a Luís Morais. Só que, julgando ser a música da autoria do clarinetista mindelense – cujo nome provavelmente aparece como sendo o autor, na capa do disco em que a gravou –, Kim interpretou na verdade um tema da autoria de do brasileiro Luís dos Santos, também conhecido como “Saraiva”. Saliente-se também o quanto este disco presta tributo, embora não mencionado explicitamente, aos dois pilares brasileiros da obra musical de outro Luís – Rendall, neste caso: o solos de violão e o choro.
Prosseguindo neste âmbito das gravações de temas brasileiros, vale citar Maria de Barros, com Manhã de Carnaval, que ela conheceu na infância, através do filme Orfeu Negro, num contexto totalmente distante dos conhecidos contactos Cabo Verde-Brasil, já que a cantora passou a infancia na Mauritânia e foi aí que ouviu a música pela primeira vez.
Na vertente dos encontros, fica uma referência à gravação de Mário Lúcio com Gilberto Gil, no CD Mar e Luz, do cantor e compositor cabo-verdiano, e à Morna Brasileira, do casal crioulo-brasileiro Ricardo e Vera de Deus, gravada em Fragmentos, álbum deste pianista brasileiro radicado na Praia. E ainda a gravação de Dudu Araújo, em Pidrinha, de uma composição do brasileiro Riko Dorileu, cujo contacto em Lisboa com a comunidade musical cabo-verdiana, resultou num tema intitulado É Morna, mais tarde gravado também por Nancy Vieira. Outro brasileiro, Rodrigo Lessa é também exemplo de trocas musicais Brasil-Cabo Verde, apresentando em finais de 2006 um trabalho que parte da sua convivência com Toy Vieira, Vaiss, e outros músicos crioulos, em Portugal e em Cabo Verde.
A maior parte dos trabalhos referidos neste segmento foram editados no ano de 2006, o que revela que os pontos de contacto entre os dois povos e os encontros humanos e musicais que daí resultam continuam intensos e cada vez mais na ordem do dia.
Texto publicado originalmente no livro Notícias que fazem a História. A música de Cabo Verde pela Imprensa ao longo do século XX (ed. de autor, Praia, Cabo Verde, 2007)
[1] Refira-se, a título de curiosidade, que em visita à Fundação Gilberto Freire, no Recife, fiquei sabendo que uma fazenda da família, hoje propriedade de um neto do sociólogo brasileiro, chama-se “Morabeza”, evidente reminiscência da visita dos anos 50.